Re-caminhos em Mia Couto - pequeninas análises...

Faz algum tempo que me dediquei ao estudo da África, mais precisamente á de Moçambique e sobre a obra do jornalista moçambicano Mia Couto. Nesta busca constante em aprimorar minha visão sobre o mundo, procurei entender o olhar deste escritor. Através dele, fui re-descobrindo novos caminhos, outros escritores, uma nova história, que deveria ser contada. Desta forma, procurei construir um discurso que, por um lado, me permitisse interagir e entender o olhar que circundam as crônicas de Mia Couto, na busca de uma coerência ao tema proposto e, por outro lado, me possibilitasse construir uma identidade intelectual que se constituiria, à medida que avançasse nas pesquisas.

Tive de me lançar num universo ainda desconhecido. Busquei entender, a importância do olhar etnográfico do Jornalista, a necessidade de termos profissionais preocupados em preencher as lacunas que foram sendo deixadas ao longo da história da humanidade. E, nesta busca constante, busquei conhecer os caminhos, assim como as vozes e as direções a seguir. Percebemos a importância de se trabalhar a narrativa e os efeitos que as letrinhas podem sinalizar ao reconstruirem as pontes que re-ligam a nossa própria história, pois; do contrário, como diria Drummond, “(...) vai ser, então, um mero jornalista, sem qualificação. O jornalista que realmente se dedica à crônica é necessariamente um escritor (...)” (ANDRADE, apud NETO, 1994, p 32).

A narrativa literária do jornalista moçambicano ultrapassa o estético e assinala o encontro entre o cultural e o tempo histórico no qual está inserido. É possível conhecer hábitos, costumes e linguagens de uma sociedade a partir de seus textos literários. Entender o processo de quebra e rompimento com o velho jornalismo – com todos os padrões e rigidez que ele impõe - não é tarefa fácil. Mia Couto, em meio à informação, leva o leitor a refletir, não deixando que fique de fora da história, como nas narrativas tradicionais. O ato de trabalhar a informação, é uma arte para poucos, como Walter Benjamin detecta:

A informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada ela precisa ser compreensível em si e para si. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam frequentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é imcompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável pelo declínio (BENJAMIN, 1995. p. 203).

O ato de tecer estes fios, levando a informação de forma coerente, como descreve Benjamin, dão sentido, cor e movimento à narrativa, fazendo de Mia Couto um dos cronistas mais respeitados da atualidade. Mas uma questão se faz presente: quem narra uma história é quem a experimenta, ou quem a vê? Com fios interligados, este estudo dialoga questões importantes dentro do Jornalismo, como o ato de escrever, narrar, com grandes nomes da literatura universal, ligados ao teatro, á música, e às Ciências Sociais Aplicadas.

Alguns críticos, diriam que esta mistura de poesias, este gosto pela literatura, do querer conhecer e abraçar ao “outro”, como forma de riqueza, acréscimo, seria algo kitsch. Não tendo tido a possibilidade de aprofundar estas questões, embora tenha estudado Estética e Cultura de Massas, creio que existe uma cultura dentro de cada um de nós, algo pessoal, assim como tem o universal. E não me preocupo que esteja fazendo muita mistura. O importante é que este é o meu ser. Encontro-me assim, nesta mistura sem limites, de literatura africana, de clássicos dos clássicos da música francesa, sou esta "colcha de re-atalhos", que sobrevive entre os tempos, a contragosto dos que possuem conhe-cimento. Não sou mercadoria, sou uma teia interligada.

TERRITÓRIOS

"O que mais dói na miséria é a

ignorância que ela tem de si mesma.

Confrontados com a ausência de tudo,

os homens abstém-se do sonho,

desarmando-se do desejo de serem outros".

(Mia Couto, Vozes Anoitecidas)

O trecho acima, está presente em “Vozes Anoitecidas”, uma das obras de Mia Couto da chamada literatura ficcional, trabalhando temas como a guerra, o descaso dos governantes, a entrega dos sonhos dos povos perante a vida. Toda a obra de Mia Couto vem carregada destes personagens, sobreviventes de guerras, de fome, da busca pela própria identidade. Como vemos, é mesmo uma guerra sem fim, porque em meio à Globalização, os homens estão cada vez mais presos às vaidades da vida, não percebendo o essencial, o que precisa urgentemente ser repensado. A História é um emaranhado de fios retorcidos, que foram aos poucos delineados pelas mentalidades dominantes da época.

Deixamos-nos levar por idéias e conceitos que nem ao menos conhecemos. Não buscamos cientificamente a adequação cultural e, aos poucos, vamos vivendo como fantoches, nesta dança des-encontrada, repetindo discursos produzidos pelos que estão no poder. O acúmulo de normas e bandeiras, com todos os seus prós e contras, jamais foram interrogadas se eram ou, se são mesmo necessários. E vemos que este ritual de levantar bandeiras, ditar regras e impor sobre outros determinados conceitos, como verdades absolutas, não tem fim. Um exemplo atual, desta barbárie foi vista no Afeganistão. Aliás, é algo que vemos todos os dias mas, justamente por nos termos acostumado, esta violência tornou-se banalidade.

Num quadro como o que acabamos de descrever, como se configura o continente africano? A África refaz um passado, que chega por vezes, tão distorcido aos jovens, que estes, são incapazes de reconhecer que este continente faz parte deste mundo. A sociedade atual vive como que enfeitiçada pelos conceitos propagados pela cultura de massa, pela publicidade autoritária. Vemos que os discursos de ontem, são refeitos com uma nova roupagem, mas, na essência, nada mudou. Não houve descolonização, o que aconteceu, foi que tais colônias agora estão nas mãos de outras nações. Tudo isto, porque se tornou cômodo, não trabalhar a história, e assim, deixaram com que os sonhos morressem, porque a grande maioria dos jovens de hoje em dia, não se interessa por questões como a oralidade, a tradição. Estão presos aos fios da corrida desenfreada, que no fim, não leva a nenhum lugar, porque o principal, nunca é considerado como prioridade.

Conceitos como o de cultura, memória e narração, associados à noção de experiência, foram trabalhados por Walter Benjamin. Para ele, essas noções são ferramentas capazes de re-construir uma história e ou uma cultura, que não seja conseqüência de uma maquete já planejada, de um lugar igual, homogêneo e vazio. Esta construção estaria embasada, segundo ele, em uma temporalidade já saturada de “agoras”.

... a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo de saturação de 'agoras’... A história universal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio (Benjamin, 1994, p. 229-31).

Na visão de Benjamin, a cultura tinha que garantir um sistema, onde as práticas sociais e simbólicas pudessem interagir. Busca garantir, assim, as particularidades de cada um, fazendo com que os atores sociais lutem pelos seus ideais, pelos seus espaços e pela sua autonomia para poderem escolher seus representantes. Nesta interação, as relações sociais são desenvolvidas através da sua diversidade, tendo como base, a História, a memória e as experiências de outrora, garantindo a estes atores, a capacidade de entender e conhecer para poderem se afirmar, como seres independentes e pensantes.

Em sua quase totalidade, a mídia brasileira se propõe imparcial, instituindo a falácia de que é possível dissociar definitivamente informação de opinião. Desde a sugestão da pauta até a diagramação final, estamos sujeitos a filtros internos que nos levam a um lado em detrimento de outro, refletindo nossa opinião a respeito, como não poderia deixar de ser. Em maior ou menor medida, toda produção jornalística contém a opinião de pelo menos um membro da redação.

A apregoada exclusão da opinião da maior parte do jornalismo se manifesta como véu para os leitores, induzidos a confiar cegamente no material divulgado pela mídia, ignorando os interesses e pontos de vista ocultos que movem as engrenagens do jornalismo. Nas palavras de Carlos Chaparro, “trata-se de um falso paradigma, porque o jornalismo não se divide, mas se constrói com informações e opiniões. Além de falso, está enrugado pela velhice de três séculos” (www.comunique-se.com.br – 01/06/1996).

Vivemos em um mundo inventado, com fios tecidos sobre mentiras e barbáries. A humanidade caminha cegamente em um presente que grita o passado da “carochinha”, na esperança do futuro utópico. Experimentar voltar no tempo, refazer os caminhos de civilizações inteiras, pode ser a chave que vai nos sustentar neste amanhã. A mídia recria os fatos, de acordo com a conveniência do governo, dos empresários. O que deveria ser informação se transforma em um grande espetáculo, com direito a replay nas cenas principais. De meias verdades, o mundo vem-se arrastando há séculos e por conta disto, vivemos uma guerra que se eternizou. As exclusões se ampliam de forma crescente, países inteiros ficam em estado de calamidade, a fome e a mortalidade infantil são problemas que se arrastam e que não são resolvidos, porque os poderosos preferem gastar milhões numa guerra, destruindo civilizações inteiras ao invés de tentarem diminuir a desigualdade que assola o mundo.

Conforme refere Mia Couto (2005, p. 39):

A maior ameaça que pesa sobre a América não são armamentos de outros. É o universo de mentira que se criou em redor dos vossos cidadãos. O perigo não é o regime de Saddam, nem nenhum outro regime. Mas o sentimento de superioridade que parece animar o seu governo. O seu inimigo principal não está fora. Está dentro dos EUA. Essa guerra só pode ser vencida pelos próprios americanos. Eu gostaria de poder festejar o derrube de Saddam Hussein. E festejar com todos os americanos. Mas sem hipocrisia, sem argumentação e consumo de diminuídos mentais. Porque nós, caro Presidente Bush, nós, os povos dos países pequenos, temos uma arma de construção massiva: a capacidade de pensar.

Acredito que ser um jornalista é, antes de tudo ter o lado cidadão, humano e consciente do dever para com as pessoas. Ao escrever a Carta ao Presidente Bush, Mia Couto foi de uma profunda sensibilidade, denunciando fatos que outros, freqüentemente deliberadamente omitem. Como forma de intervenção, ao invés de usar armas, Couto usou as letras.

E disse ainda...

Sou um escritor de uma nação pobre, um país que já esteve na vossa lista negra. Milhões de moçambicanos desconheciam que mal vos tínhamos feito. Éramos pequenos e pobres: que ameaça poderíamos constituir? A nossa arma de destruição massiva estava, afinal, virada contra nós: era a fome e a miséria. Alguns de nós estranharam o critério que levava a que o nosso nome fosse manchado enquanto outras nações beneficiavam da vossa simpatia. Por exemplo, o nosso vizinho - a África do Sul do "apartheid"- violava de forma flagrante os direitos humanos. Durante décadas fomos vítimas da agressão desse regime. Mas o regime do "apartheid" mereceu da vossa parte uma atitude mais branda: o chamado "envolvimento positivo". ANC esteve também na lista negra como uma "organização terrorista!". Estranho critério que levaria a que, anos mais tarde, os taliban e o próprio Bin Laden fossem chamados de "freedom fighters" por estrategas norte-americanos. Pois eu, pobre escritor de um pobre país, tive um sonho. Como Martin Luther King certa vez sonhou que a América era uma nação de todos os americanos. Pois sonhei que eu era não um homem mas um país. Sim, um país que conseguia dormir. Porque vivia sobressaltado por terríveis factos. E esse temor fez com que proclamasse uma exigência. Uma exigência que tinha a ver consigo, Caro Presidente. E eu exigia que os Estados Unidos da América procedessem à eliminação do seu armamento de destruição massiva (id. Ibidem, p. 33-34).

É esta a atitude de encarar os fatos e não cruzar os braços que deveria existir no Jornalismo. Não creio que a História pode continuar a ser escrita sobre ruínas de povos inteiros. Os livros não foram feitos, para serem escritos usando tinta-sangue. A África vive hoje, conflitos de todos os níveis. A obra de Mia Couto, é este caminhar entre fronteiras. Ele reflete sobre um continente que foi dividido pelas potências coloniais, que retalharam e destruíram diferentes etnias e culturas. A ruptura que fizeram na África foi de tal modo profunda, que ainda hoje o continente sangra. Segundo ele:

A África não pode ser reduzida a uma entidade simples, fácil de entender. Nosso continente é feito de profunda diversidade e de complexas mestiçagens. Longas e irreversíveis misturas de culturas moldaram um mosaico de diferenças que são um dos mais valiosos patrimônios do nosso continente. Quando mencionamos essas mestiçagens, falamos com algum receio, como se o produto híbrido fosse qualquer coisa menos pura. Mas não existe pureza quando se fala da espécie humana. Dizem que não há economia atual que não se alicerce em trocas. Pois não há cultura humana que não se fundamente em profundas trocas de alma (id. Ibidem, p. 19).

Percebemos que grande parte do conhecimento que temos sobre a África, vem de um território essencialmente ocidental. O continente africano é um mosaico de diferentes etnias, linguagens, climas e culturas que foram se modificando ao longo dos séculos, em decorrência de diferentes processos: como a partilha da África, a descolonização, os movimentos nacionalistas, a assimilação dos valores herdados ao longo dos tempos e os já esquecidos.

Quando se fala de África de que África estamos falando? Terá o continente africano uma essência facilmente capturável? Haverá uma substância exótica que os caçadores de identidade possam recolher como sendo a alma africana? (...) É a própria pergunta que necessita ser interrogada. São os pressupostos que carecem ser abalados. E onde se enxergam essências devemos aprender a ver processos históricos, dinâmicos sociais e culturais em movimento (id. Ibidem, p. 11).

O Continente Africano foi integrado no sistema internacional de comércio e colonização desde o século XV. A História dos cinco séculos vividos pelos europeus na África, impedindo que os africanos construíssem seu futuro, começou com um erro de julgamento. Na visão do mundo e na política então praticada pelos europeus, a África aparecia como um obstáculo, um empecilho que precisava ser contornado. A partir daí, foi sempre uma sucessão de erros grotescos praticados com inaudita crueldade.

Encontramos, (...), aqui o homem em seu estado bruto. Tal é o homem na África. Porquanto o homem aparece como homem, põe-se em oposição à natureza: assim é como se faz o homem. Mas; porquanto se limita a diferenciar-se da natureza, encontra-se no primeiro estágio, dominado pela paixão, pelo orgulho e a pobreza; é um homem estúpido. No estado de selvageria achamos o africano, enquanto podemos observá-los e assim tem permanecido. O negro representa o homem natural em toda a sua barbárie e violência; para compreendê-lo devemos esquecer todas as representações européias. Devemos esquecer Deus e a lei moral. Para compreendê-lo exatamente, devemos abstrair de todo o respeito e moralidade, de todo o sentimento. Tudo isso está no homem em seu estado bruto, em cujo caráter nada se encontra que pareça humano (Hegel, 1995, p 193-194).

Grande parte dos equívocos e acúmulo de pré-conceitos remonta ao século XIV. Nos séculos XIX e XX o pensamento ocidental desencadeia a construção de um conjunto quando imagens que levam á cristalização de visões e estereótipos, segundo os quais todo africano é selvagem. Hegel dizia que a África não tinha História e que nada acrescentaria estudá-la, porque os “homens vivem ali na barbárie e selvageria, sem fornecer nenhum elemento à civilização”. Para Antônio Risério (2004, p. 64).

A diferença de raça, de credo e de Cultura não foi vista pelos europeus como riqueza. A diferença foi considerada inferioridade. Uma falsidade que predominou nos meios intelectuais, foi a de que os africanos, não tiveram história antes do contato com a civilização branca. Só que a África, conheceu a guerra, a moeda, a escravidão, muito antes de os europeus pensarem em “conquistar novos mundos”. O desprezo dos europeus pela cultura africana, começa deste ponto, ao achar que não existia exploração dentro da África, entre eles, assim como diferentes costumes, línguas e formas de comércio – é reduzir os africanos a seres inferiores. “O problema é que - por manipulação política, truque, cegueira ou estrabismo ideológico - se construiu, no mundo ocidental oitocentista e na África do século XX, a fantasia de que os negros essencialmente bons haviam caído, desde o século XV, nas garras cruéis dos brancos, seres essencialmente maus.

Praticamente, tudo o que se extraiu e produziu na América poderia ter ser realizado na África. Na verdade, tudo estava lá, e melhor, próximo da Europa: as riquezas naturais, a fecundidade do solo e, sobretudo, a mão-de-obra que não precisaria ser transportada, além mar. Ou seja, a permanência desta mão-de-obra seria uma prática muito mais rentável aos cofres das nações européias. Não se pode esquecer que no próprio continente africano existia, desde há muito tempo, a prática da escravidão - reis, foram agentes do tráfico negreiro, envolvendo-se ativamente no grande comércio transatlântico. Isto explicaria, por exemplo, o tráfico de escravos para outros continentes.

Muito antes de europeus colocarem o pé no continente africano, havia escravos no reino do Congo. A estratificação social do reino, por sinal, era de uma nitidez absoluta. Havia a aristocracia, um segmento de homens livres e a massa escrava. A aristocracia formava uma casta, desde que seus membros eram impedidos de se casar com plebeus. A parte pesada dos trabalhos agrícolas recaía, evidentemente, sobre os escravos (Risério, 2004, p.63).

Os conflitos africanos existem antes mesmo da autodenominação de “nações” pelos europeus. O significado de Estado, na África está relacionado com a identidade étnica. Assim, temos exemplos da Nigéria e Benin, no século XV, que tinham Estados como uma sólida burocracia, com sua realeza, o clero, a classe militar e até mesmo os escravos. Na Etiópia, verificamos um Estado que se mantém há séculos, no qual diversas famílias reinvindicam a legitimidade do trono. Aos poucos a identidade clássica foi-se baseando, sobretudo, no cristianismo e no judaísmo.

O problema é que - por manipulação política, truque, cegueira ou estrabismo ideológico - se construiu, no mundo ocidental oitocentista e na África do século XX, a fantasia de que os negros essencialmente bons haviam caído, desde o século XV, nas garras cruéis dos brancos, seres essencialmente maus (Risério, 2004, p.64).

A Partilha da África desencadeou a rivalidade regional/étnica. Os europeus obrigaram membros de diferentes etnias a ter uma convivência. É de se imaginar que isto desencadearia grandes conflitos que até hoje vigoram nos países africanos. Etnias inteiras foram divididas, e com isto os costumes, a língua, o desequilíbrio reinou, porque os africanos aos poucos foram perdendo a noção de identidade, se viram perdidos em meio a outros povos, com outros costumes. A partilha foi de certa forma, uma arma estratégica, para destruir o povo. Ao dividirem nações, as potências coloniais realizaram a partilha das riquezas. No pensamento dos que dominavam a época, o que não era possível dividir deveria ser aniquilado. Deste modo, assistimos ao derramamento de sangue sem sentido, ás epidemias, ao esfacelamento de todo um continente, que vive até hoje impregnado da dor de outrora. Isto explica um pouco o estado sócio/político/econômico em que se encontra grande parte do continente africano.

África vive uma tripla condição restritiva: prisioneira de um passado inventado por outros, amarrada a um presente imposto pelo exterior e, ainda, refém de metas que lhe foram construídas por instituições internacionais que comandam a economia (Couto, 2005, p. 11).

Estamos em pleno século XXI, e nada sabemos de países como Moçambique. Poucos, como o jornalista moçambicano, Mia Couto, têm a coragem de mostrar os passos destes des-caminhos, e tirar o véu que cobria a história de sua terra. O pouco que sabe, vem em forma de fontes oriundas de agências de notícias que estão, em sua maioria, respaldadas aos interesses capitalistas. Temos de formar Jornalistas capazes de trabalhar o seu olhar, no meio em que vivem, como faz Mia Couto. Talvez desta maneira, poderemos desfazer certos estigmas que foram impregnando na sociedade. Em meio á complexidade instaurada nos tempos modernos, necessitamos estudar a fundo a História e, para tanto, precisamos olhar á nossa volta. Como salienta Benjamin (1994, p.225) “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é tampouco, o processo de transmissão da cultura”.

Viemos de elos totalmente desfeitos, de grandes lacunas, e assim continuamos. O homem do amanhã nada saberá sobre cultura, porque para ele, cultura é uma massa, um gosto homogêneo, algo que se transformou em modismo e tudo isto é passageiro, descartável. Vivemos numa época onde nada mais permanece, na qual o processo de busca deixa todos perturbados.

O colonialismo não morreu com as independências. Mudou de turno e de executores. O atual colonialismo dispensa colonos e tornou-se indígena em nossos territórios. Não só se naturalizou, como passou a ser cogerido numa parceria entre ex-colonizadores e ex-colonizados.Uma grande parte da visão que temos do passado do nosso país e do nosso continente é ditada pelos mesmos pressupostos que ergueram a história colonial. Ou melhor, a história colonizada. O que se fez foi colocar um sinal positivo onde o sinal era negativo. Persiste a idéia de que a África pré-colonial era um universo intemporal, sem conflitos, nem disputas, um paraíso feito só de harmonias. Essa imagem romântica do passado alimenta a idéia redutora e simplista de uma condição presente em que tudo seria bom e decorreria às mil maravilhas se não fosse à interferência exterior. Os únicos culpados dos nossos problemas devem ser procurados fora. E nunca dentro. Os poucos de dentro que são maus é porque são agentes dos de fora (Couto, 2005, p. 11).

A Guerra Colonial que ocorreu em Moçambique, de 1961 a 1974, está impregnada de descaminhos. Estiveram em confronto as Forças Armadas Portuguesas e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), criada em 1962. Pela parte portuguesa, a guerra era sustentada pela idéia de que Moçambique era seu território, numa perspectiva de nação pluricontinental e multirracial. Pela parte dos Movimentos de Libertação, a guerra se impunha como princípio de autodeterminação e independência.

A FRELIMO tinha como líder Eduardo Mondlane, que acabou sendo assassinado em 1969, substituindo-o Samora Machel. Era uma época em que a guerrilha imperava em terras moçambicanas, assim como em outras ex-colônias portuguesas, como Angola e Guiné-Bissau. Tais movimentos trouxeram a instabilidade política á ditadura de Salazar que governava Portugal e, em 25 de Abril de 1974, ocorre a Revolução dos Cravos. O 25 de Abril de 1974, trouxe alterações à natureza do regime político português. Os novos dirigentes de Portugal, foram forçados a aceitar os princípios da autodeterminação e independência das colônias, pelo que as fases de transição foram negociadas com os respectivos movimentos.

Os africanos acreditam que os outros têm a obrigação histórica de os retirar da miséria. Esta visão já estava presente no discurso da luta armada, quando se retratava os inimigos como "infiltrados". Isto acontecia, apesar do aviso do poeta que dizia que "não basta que seja pura e justa a nossa causa; é preciso que a justiça e a pureza existam dentro de nós". Nossas fileiras, nesse tempo, eram vistas como sendo compostas apenas de gente "pura". Se havia mancha, ela vinha de fora, que era o lugar onde morava o inimigo (id. Ibidem, p. 12).

Por isto a importância do olhar etnográfico no jornalista, do cuidado que ele deve ter com o meio que o cerca, com a História, porque ela invariavelmente irá ter suas conseqüência. Sendo assim, somos todos co-autores nesta jornada.

Em 1975, Moçambique consegue a tão sonhada independência. As pessoas se viram em constante busca pela identidade. Tal conceito, não pode ser encontrado ao olhar pra nós mesmos, mas ao fazermos o trabalho inverso, nos voltarmos para o outro como sendo, nossa extensão. Este exercício cabe ao profissional da comunicação explorar, de maneira, que compreenda que ao se aproximar do outro, estará aproximando-se mais e mais de sua própria essência.

Creio que a história oficial do nosso continente foi submetida a várias falsificações. A primeira e mais grosseira destinou-se a justificar a exploração que fez enriquecer a Europa. Mas outras falsificações se seguiram e parte delas destinaram-se a ocultar responsabilidades internas, a lavar a má consciência de grupos sociais africanos que participaram desde sempre na opressão dos povos e nações da África. Esta leitura deturpada do passado não é apenas um desvio teórico. Acaba por fomentar uma atitude de eterna vitima, sugere falsos inimigos e alianças sem princípios (id. Ibidem, p. 14).

EN-CANTADOR

O nome Mia Couto, surgiu “(...) por causa dos gatos. Eu era miúdo, tinha dois ou três anos e pensava que era um gato, comia com os gatos” – Este é António Emílio Leite Couto, que nasceu em Moçambique no ano de 1955, sendo filho de portugueses habitou desde sempre as fronteira existentes entre Europa e África – mas reforça: “não tenho raça. Minha raça sou eu mesmo”.

Iniciou o curso de Medicina, na Universidade Eduardo Mondlane, não chegando a concluir o mesmo. Durante o processo de descolonização de Moçambique fez o curso de Biologia e, ao mesmo tempo, trabalhou no jornalismo, tendo como opção de vida, re-escrever a história. Trabalhou também, como professor universitário, intercalando seu tempo com estudos sobre o teatro e sobre impactos ambientais.

Mia Couto, possui uma linguagem híbrida que transita entre o coloquial e a língua culta, sendo o resultado de sua convivência com as estórias e o saber africano, vindo da cidade da Beira, e das vozes que carrega de seus antepassados, oriundos de terras lusitanas.

Medicina eu fiz até o segundo ano; estudei três anos, repeti o segundo ano e repetiria infinitamente o segundo ano. Eu tenho tantas profissões porque não quero ter nenhuma. É uma estratégia de não ser coisa nenhuma. Porque a partir do momento que eu me entendo a mim mesmo como sendo biólogo ou sendo escritor ou sendo jornalista ou sendo outra coisa qualquer, eu acho que fecho algumas janelas para o mundo e passo a ter uma relação que depois se encaminha sempre por aí, e eu não quero. Acho que é um empobrecimento (“Folha de S. Paulo”, 21/07/2002).

Entendemos que Mia Couto ao tratar da situação de miséria humana e das conseqüências da guerra, como pano de fundo da maior parte de sua literatura, opta por fazê-lo, aproximando-se do realismo/fantástico, gênero bastante propício. Além de apresentar os acontecimentos metaforicamente, envolve o leitor com uma crônica-conto que apresenta uma narrativa aparentemente sobrenatural e mística, além de ser uma literatura engajada histórica e socialmente. Ao apresentar características próximas aos dois gêneros, Mia Couto consegue expor sua ideologia enquanto cidadão e filho de Moçambique, além de apresentar a História de seu país a seus leitores. A arte de narrar parece estar em crise. Segundo (Benjamin, 1994, p.201-03):

A arte de narrar está definhando porque a sabedoria - o lado épico da verdade - está em extinção... Cada manhã recebemos notícias de todo mundo. E, no entanto, somos pobres em história surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações.

Benjamin, como poucos, soube trabalhar questões pertinentes à História, à Cultura, no momento em que o Nazismo corroia toda uma época, na qual a verdade vinha sempre acompanhada de meias-mentiras. A configuração da narrativa de Mia Couto, permite a retomada de um tipo de literatura, como instrumento de mudança.

Em uma entrevista à Folha de São Paulo, no dia 18 de novembro de 1998, o escritor do livro “O País do Queixa Andar”, nos esclarece sobre quem narra a História:

eu faço parte do mundo do litoral, uma zona humana do litoral de Moçambique, que, menos moçambicana do ponto de vista folclórico, é aquela que está fabricando a moçambicanidade. Qualquer indivíduo, aparentemente mais originário do que eu, aqui em Maputo, ou em outros lugares, vive um mundo muito semelhante ao meu, com um percurso, com preocupações, com referências muito semelhantes. Eu não preciso, assim, apresentar provas de identidade.

E argumenta, “a procura de identidade (...), é uma procura infinita”. Ainda na entrevista a Folha de São Paulo, Couto completa: “A estrutura narrativa e a linguagem que procuramos estão muito pouco atravessadas pela oralidade. Não nos deixamos enamorar por ela”.

Mais adiante conclui:

(...) metade da arte narrativa está em evitar explicações (...) O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação (id. Ibidem, p.203).

Entender a narrativa de Mia Couto e a desconstrução do que foi fundado no imaginário coletivo – a discriminação racial, e outros problemas que os africanos enfrentam foi um dos motivos que me levaram a refletir a sobre a literatura de Couto e ver em seus mecanismos uma ponte dentro do jornalismo, sendo primordial em tempos como os de hoje, o profissional de comunicação ter consciência do resgate da história, do não deixar perderem-se em lacunas as tradições.

Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido... E, no interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo em que seu modo de existência (id. Ibidem, p. 168-169).

Mia Couto, interage com o leitor – em um processo constante de busca da essência moçambicana, da meninice, como ele mesmo disse em entrevista ao jornal A Capital:

Todos nós temos essa infância guardada, que mais ou menos nos ensinam a domesticar, a esquecer, a olhar como lugar improdutivo. As crianças não se encaixam bem na idéia que é pedida hoje de ser rentável, responsável. Todos temos essa sobrevivência da infância (Couto, 2000).

Percebemos que sua narrativa não se reduz apenas a um espaço e realidade específica, ela é universal, na medida em que consegue dialogar com outras culturas.

A produção textual é uma atividade verbal, a serviço de fins sociais e, portanto, inserida em contextos mais complexos de atividades; trata-se de uma atividade consciente, criativa, que compreende o desenvolvimento de estratégias concretas de ação e a escolha de meios adequados à realização dos objetivos; isto é, trata-se de uma atividade intencional que o falante, de conformidade com as condições sob as quais o texto é produzido, empreende, tentando dar a entender seus propósitos ao destinatário através da manifestação verbal; é uma atividade interacional, visto que os interactantes, de maneiras diversas, se acham envolvidos na atividade de produção textual (Koch, 2000, p.22).

Na perspectiva das palavras de Koch, verificamos que a construção textual de Mia Couto está ligada ao cotidiano do povo moçambicano. Couto consegue fundir a tradição oral africana à tradição literária ocidental. A prosa de Mia Couto tem êxito em criar atmosferas surrealistas e fantasmagóricas, a partir de uma ligação concreta com a realidade.

Mas era mais as esperas do que as horas. E o cansaço era sua única caricia. Ela adormecia-se, um leve sorriso meninando-lhe o rosto. E assim por nenhum diante. Desconhece-se a data, talvez nem tenha havido, mas num dos seus olhares demorados, a velha encontrou um brilho cintilando num canto do tecto. Era uma teia de aranha. Ali onde apenas o escuro fazia esquina, havia agora a alma de uma luz, flor em fundo de cinza. A velha levantou-se para mais olhar o achado. Não era a curiosidade que lhe puxava o movimento. Assustava-lhe a sua transparência demasiada. E, de logo, lhe surgiu a pergunta que luz tecera aquele bordado? Não podia ser obra de bicho. Não. Aquilo era trabalho para ser feito por espírito, criaturamente. A teia podia só ser um sinal, uma prova de promessa. Decidiu-se então a velha surpreender o autor da maravilha. A partir dessa tarde, seus olhos emboscaram o tempo, no degrau de cada minuto. Esquecida do sono e do sustento, não houve nunca sentinela mais atenta. Até que, certa vez, se escutou um rumor quase arrependido, desses feitos para ser ouvido apenas pelos bichos caçadores. Por uma breve fresta se injanelava uma aranha. Era de um verde pequenino, quase singelo. Com vagaroso gesto a velha foi tirando o vestido do caixote. Usava os mais lentos gestos, fosse para o bicho não levar susto (Couto, A Velha e a Aranha. Cronicando, 1991).

Observamos no trecho do conto A Velha e a Aranha, de autoria de Couto, que além da questão da guerra civil em Moçambique, aborda questões como a esperança, a solidão, questões ideológicas capazes de mostrar uma realidade fantástica e, ao mesmo tempo cruel e que, muitas vezes, depende do olhar que temos sobre as coisas. Para Benjamin (1994, p. 224) “Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo tal como ele propriamente foi. Significa apoderar-se de uma lembrança na forma em que ela cintilou no instante do perigo”.

Analisar um discurso requer encontrar determinadas marcas, vestígios deixados aqui, ali e mais adiante pelos sentidos. O discurso é, invariavelmente, a relação entre sujeitos, o que nos obriga a admitir que os sentidos nunca estão “lá” no texto, mas são constituídos intersubjetivamente. Em uma de suas reflexões sobre o narrador na obra de Nikolai Leskov, Walter Benjamin, dentre outros autores que pensaram sobre a construção da narrativa, refere-se à arte de narrar como atividade em vias de extinção.

Benjamin, afirma que a narrativa tem o seu fio utilitário, que pode estar embasado em algum ensinamento moral, em alguma sugestão ou em algum olhar sobre os fatos. Sendo assim, o narrador também seria alguém capaz de ouvir e dar conselhos. E é este tipo de narrativa que vemos nos textos de Couto.

Estar no 'além' é habitar um espaço intermédio, como qualquer dicionário lhe dirá. Mas residir no 'além' é... ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para reescrever nossa contemporaneidade cultural... tocar o futuro em seu lado de cá. Nesse sentido então, o espaço intermédio 'além' torna-se um espaço de intervenção... (id. Ibidem, p. 168-169).

Em uma entrevista ao jornalista Omar Ribeiro Thomaz, da Folha de São Paulo, no ano de 1998, Mia Couto disse, entre outras coisas, que na sua geração, os brasileiros tiveram uma grande influência na produção literária moçambicana. “Imagino que uma das razões é que de fato existe uma outra cultura remanejando a mesma língua”. E salienta, “há uma sugestão dos autores brasileiros de que é possível arredondar a língua portuguesa, ou seja, introduzir complementos de outras culturas nesta língua”. E é o que vamos perceber nos textos de Couto, quando descreve “o processo que está sendo feito em Moçambique, do ponto de vista de toda a dinâmica social do país”. O autor ainda explora as diferentes formas de usar a língua portuguesa em produções de texto, as diferentes maneiras de poder trabalhar as palavras, misturando-as, modificando-as. Assim, o escritor moçambicano diz que “é uma língua que está a se pegar com outras culturas, que estão tentando introduzir seus valores (...)”. Em meio às entrevistas, Couto falou sobre a escrita e sua predileção pelos autores brasileiros, dentre eles, “Jorge Amado, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade (...)”. Informou que João Cabral de Melo Neto teve grande influência em sua obra literária, concluindo que “todos esses marcaram uma geração com muita força”.

Em uma entrevista ao Jornal do Brasil, do dia 29 de agosto de 1998, época em que foi homenageado pela Academia Brasileira de Letras, onde foi eleito como sócio correspondente, ocupando a cadeira número cinco, Couto fala sobre sua obra:

Meus contos, por exemplo, só podem se passar em Moçambique. Eu só posso escrever o que eu escrevo porque nasci e vivi em Moçambique, não imagino que isto seja uma coisa que possa passar de outra maneira senão através das vivências profundas. Agora se me perguntas quanto é de Moçambique que existe ali, eu não sei, porque isto implica em definir o que é moçambicano e o que não é, o que é um debate um pouco complicado. Moçambique é feito de muitas mestiçagens, de muitas trocas, principalmente nas áreas litorâneas onde sempre vivi. Áreas de mosaico cultural, onde há vários povos e existem várias influências culturais. Mas Moçambique é tudo isso, esta zona de troca (JORNAL DO BRASIL, 1998).

O jornalismo do dia-a-dia está pautado sobre a superfície dos acontecimentos, sobre a imediatez do fato. Desta maneira, a tarefa de ir mais a fundo e trabalhar o olhar, o acontecimento, fica a cargo de cronistas, editorialistas e articulistas. Estes, sim, têm a tarefa de pesquisar os aspectos mais escondidos da notícia.

Este é um momento de abismo e desesperanças. Mas pode ser, ao mesmo tempo, um momento de crescimento. Confrontados com nossas mais fundas fragilidades, cabe-nos criar um novo olhar, inventar outras falas, ensaiar outras escritas. Vamos ficando, cada vez mais, a sós com nossa própria responsabilidade histórica de criar uma outra história. Não podemos mendigar ao mundo uma outra imagem. Não podemos insistir numa atitude apelativa. Nossa única saída é continuar o difícil e longo caminho de conquistar um lugar digno para nós e para nossa pátria. E esse lugar só pode resultar da nossa própria criação (Couto, http://www.manoelcarlospinheiro.com.br 15/06/1996).

Existem hoje, vários tipos de definições sobre a crônica. Uns dizem que é uma subliteratura, outros, que é a soma do jornalismo com a literatura. Enfim, ela é mesmo um gênero nem sempre identificado, mas que está sempre levando o leitor a refletir, relembrar suas raízes históricas, ou mesmo aprender a ler entre as palavras. Através da interação, do diálogo com o leitor, com o cuidado em olhar a sua volta, re-fazer a história, retirar certas pedras – pré-conceitos. São estes os mecanismos que Mia Couto utiliza para construir suas crônicas e tirar seu leitor da passividade (mental) e fazê-lo refletir naquilo que, a princípio, parecia menor; apresentando uma realidade re-criada.

Couto, encharcado de seu tempo, transpõe em linhas toda uma cultura aprisionada durante séculos de história. O escritor do País do Queixa Andar, consegue dialogar com seu leitor, possui uma cumplicidade ímpar, que o leva à reflexão sobre os fatos. Ele traz a história para a vida de cada um de seus leitores.

Toda crônica é uma intensa evocação dessa comunidade, que em si é uma das razões – ou das justificações – da alusividade que torna as crônicas muitas vezes impossíveis de se ler sem notas. Como em toda comunidade verdadeira, há um fundo de experiência compartilhada, e que portanto pode ficar subentendida, implícita: o humor, muitas vezes, tem a sua origem neste tipo de experiência (Gledson, 1996, p.29).

Nos anos 80 e 90, Mia Couto, coloborava como autor de algumas crônicas que recebiam o nome de Queixatório, e mais tarde de Imaginadâncias. Foram quatro semanas, em que o escritor moçambicano publicava em linhas textos divertidos, mas ao mesmo tempo com olhar sobre o mundo que o cercava. Estas crônicas, foram reunidas no Livro: O País do Queixa Andar. O próprio título da obra, já leva em si, um teor de ironia, uma crítica social que aos poucos vai se evidenciando no transcorrer das páginas do livro.

O que Mia Couto diz logo no prefácio, dá para entendermos o motivo que a Crônica, pode ser um instrumento que o Jornalista pode dispor para re-fazer a história, com o seu olhar etnográfico, a busca pela verdade.

A fórmula usada pelo jornalista foi o de “ensaiar o humor ligeiro e breve”. Afinal, ele não estava nem na literatura e nem “esgravatando na manchamba do jornalismo”, estava em uma zona de intervenção, na “linha de fronteira”.

Logo no prefácio, Mia Couto, fala do que acredita ser o verdadeiro jornalismo; um jornalismo “livre, interventivo, criativo e original”. Assim, ao caminharmos aos poucos pelas linhas que Mia traça, vamos delineando fotos e olhares de um jornalista comprometido com o seu tempo.

A primeira crônica fala de como é mais fácil a entrada de estrangeiros em Moçambique, e nela trabalha a questão de como até mesmo na África existe o chamado pre-conceito. Ao lermos seu texto, constatamos esse fato:

(...) Foi então que surgiu um estrangeiro, mandando em inglês, com a carteira cheia de dinheiro. Comprou a porta, comprou o porteiro e meteu a chave no bolso. Depois, nunca mais nenhum moçambicano passou por aquela porta que, em tempos, se abria de Moçambique para Moçambique (Couto, 2003, p. 9).

Ao lermos a Crônica Porta, podemos verificar as marcas do colonialismo, como ele reside ainda nas pessoas. Esta reflexão pode aplicar-se ao Brasil, que mesmo depois de 5006 anos de independência, uma grande parte de seu povo ainda possui uma baixa auto-estima, por assim dizer. O brasileiro sem pre acha que o que vem de fora é melhor, desvaloriza-se a si próprio. Este tipo de pensamento, domina as ex-colônias, como se fosse um parasita. Para Mia Couto (2005, p. 156) “O problema parece ser que o de que nós próprios – os do Terceiro Mundo – nos conhecemos mal. Mais grave ainda: muitos de nós nos olhamos com os olhos dos outros”.

Percebemos, então, que onde deveríamos perceber possibilidades, dinâmicas, nos colocamos como vítimas, ficamos imóveis, porque os nossos olhos foram educados a nos identificarmos de uma maneira errônea. Pegamos com o olhar do outro e, na verdade, tal perspectiva só nos reduziu a seres menores e á exclusão. Como Couto (2005) defende, “temos de aprender a pensar e a sentir de acordo com uma racionalidade que seja nossa e que exprima a nossa individualidade”.

Na crônica entitulada, Abaixo o Corredorismo, existe um olhar político sobre a relidade em Moçambique, que apesar da independência, tornou-se refém não só dos países estrangeiros, mas de alguns que acham que podem delimitar os passos das pessoas. O autor olha com um certo humor e estranhamento, o modo como as pessoas mantêm-se imobilizadas e acatando as ordens de ditadores que procuram, e muitas vezes o conseguem, apropriar-se de nações inteiras.

Caros leitores: eu pergunto. É bom assim ser-se espetado pelas estruturas superiores. E se o pico não estava devidamente desinfectado? Será que as nádegas de um nopiapense têm esse destino a nível nacional? Conquistamos a indepenência para agora nem nos podermos sentar com ambos lados das nossas traseiras partes? Agradeço a devida atenção e peço desculpa se faltei ao respeito a qualquer um ( Couto, 2003,p. 49).

Mia Couto trabalha nesta crônica a linguagem oral de Moçambique. Além de fazer uma denúncia, aproveita para resgatar em sua narrativa a tradição. Usa metáforas evidencia a busca pela indentidade, não a mistifica, procurando desligá-la das amarras do passado. Defende a própria capacidade de pensar e entender que, nas origens da oralidade, pode-se costurar um raciocínio que aos poucos vai delineando um novo olhar, porque ele se pode configurar numa ferramenta de reinvidicação.

O escritor não é apenas aquele que escreve. É aquele que produz pensamento, aquele que é capaz de engravidar os outros de sentimentos e de encantamentos. Mais do que issso, o escritor desafia os fundamentos do próprio pensamento. Ele vais mais longe do que desafiar os limites do politicamente correcto. Ele subverte os próprios critérios que definem o que é correcto, ele questiona os limites da razão (Couto, 2005, p. 63).

O Escuro, é uma crônica que remete muito ao lado machista que carregamos, na qual um homem bem sucedido, de posses, possui normalmente amantes e isto é visto como aceitável. No caso da trama descrita por Mia Couto, o personagem da história era fiel a sua esposa, mas os amigos não acreditavam, tinham medo de que o exemplo dele pudesse “contaminar a cidade”. É tamanha a assimilação deste estereótipo de homem, “macho”, que a esposa ao saber, fica furiosa, entra em prantos, porque para além de ser normal, tal questão é como possuir status.

Depois de mais calma, ela pede que ele jure. Américo não sabe o propósito da jura, mas obedece logo. Que sim, que jura pelo mais sagrado.

- Jure que vai mudar de comportamento.

Américo balbuciou inexistentes palvras. Ela o beijou na testa, deitou-se e apagou a luz. O escuro se espalhou pelo quarto. E um escuro entrou na alma de Américo (Couto, 2003, p. 84-85).

Viver de aparências, esta é a questão dos dias atuais, e isto é algo tão aceito, que se a pessoa não é o centro de atenções, muitas vezes é excluída. “Em Moçambique não é preciso ser rico. O essencial é parecer ser rico” (Couto, 2005, p. 27).

Ao tratar de questões como a ostentação, o acúmulo de coisas materiais, desnecessárias, Mia, sabe trilhar este universo de forma que possa tocar as diferentes sensibilidades dos leitores. Vivemos um progresso que, paradoxalemnte, regride. As pessoas usam máscaras, fabricam um mundo, como Couto (2005) diz, “Os nossos endinheirados-ás-pressas não se sentem bem em sua própria pele”. E nesta imitação, nesta tentativa de ser algo, na busca do tudo aparente, não percebem que as coisas que são fundamentais na vida, como o amor, o respeito, não podem ser comprados e, assim, vivem para garantir o status entre todos e manter a pose, “o amante de um pode ser, amanhã, amante de outro”.

E Mia Couto nos ensina...

Muitas vezes jovens me perguntam como se redige uma peça literária. A pergunta não diexa de ter sentido. Mas o que deveria ser questionado era como se mantém uma relação com o mundo que passe pela escrita literária. Como se sente para que os outros se representem em nós por via de uma história? Na verdade, a escrita não é uma técnica e não se constrói um poema ou um conto como se faz uma operação aritmética. A escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar quee stá para alem da lógica que a escola e o mundo moderno nos ensinam.É uma outra janela que se abre para estrearmos outro olhar sobre as coisas e as criaturas (Couto, 2005, p. 45).

Conhecer a obra de Mia Couto, o universo que o cerca, me conectou com um mundo até então desconhecido, que aos poucos tornou-se morada, isto me ajudou a refazer-me em meio às ruínas. Sendo assim, o jornalista tem esta importante missão que é ter este olhar etnográfico, observar as coisas a sua volta, e transmitir sempre a grandiosidade, ver na noite a sua beleza, porque nem só o dia é belo. Saber dialogar o simples é saber entender o mundo que nos cerca.

O grande segredo do Jornalismo está então, na capacidade de escutar, olhar e entender. Neste exercício de nos deixarmos enamorar pela arte de escrever, o que certos olhares nos transmitem, e assim, revertendo lacunas, retirando os pré-conceitos e barreiras do caminho.

Acredito que o jornalismo, como uma Ciência, tem se fechado em seu mundo, aos poucos, vemos a importância de se criar elos com outras ciências, de abrir novas possibilidades. A História, a Sociologia, Antropologia assim como outras Ciências Sociais, deveriam fazer parte do olhar do profissional da comunicação.

Regresso, por fim, ao universo da escrita literária. Só se escreve com intensidade se vivemos intensamente. Não se trata apenas de viver sentimentos mas de viver por sentimentos. A escola muitas vezes nos “aconselha” a olhar o mundo através de uma só janela. E acreditarmos que só é verdade aquilo que for sujeito ao veredicto da ciência. Assim fechamos a nossa disponibilidade para outras verdades. Ficamos mais pobres, mais centrados no nosso isolamento (Couto, 2005, p. 49).

A ciência, foi se convertendo em algo pouco científico, “uma acomodada daquilo que se pensa ser realidade”, observa Couto (2005). Com o passar dos tempos fomos perdendo a inquietação, a vontade de ir fundo em determinadas questões, de conhecer outros saberes, olhares e Mia, salienta, “perdeu-se a disponibilidade para experimentar outras vias de conhecimento”.

Ao estudar este olhar de Mia Couto, fui aos poucos conhecendo novos mundos, incrível como o olhar deste moçambicano, foi se desdobrando para outros universos e a partir destas dobras, descobri novos diálogos - Brecht, na Alemanha e Prévert em Paris. As peças foram ligando-se, e como Mia Couto fala da importância da poesia, do contemplar e de viver em sentimentos, acredito que somos fios interligados em re-atalhos O estudo de Couto me propiciou abrir novas janelas, até então desconhecidas e que aos poucos foram interagindo, criando formas e sentimentos, ao mesmo tempo, me ensinou a arte de observar as pequeninas coisas, do dia-a-dia.

Acredito que ser um jornalista é, antes de tudo ter o lado cidadão, humano e consciente do dever para com as pessoas. Temos de formar Jornalistas capazes de trabalhar o seu olhar, no meio em que vivem, como faz Mia Couto. Talvez desta maneira, poderemos desfazer certos estigmas que foram impregnando na sociedade. Em meio á complexidade instaurada nos tempos modernos, necessitamos estudar a fundo a História e, para tanto, precisamos olhar á nossa volta.

Deixamos-nos levar por idéias e conceitos que nem ao menos conhecemos. Não buscamos cientificamente a adequação cultural e, aos poucos, vamos vivendo como fantoches, nesta dança desencontrada, repetindo discursos produzidos pelos que estão no poder.

Esse olhar ao redor e o descobrir novas possibilidades e descortiná-las em meio às Crônicas, é um dos desafios no mundo que vivemos. Precisamos adquirir a capacidade de responder aos nosso próprios questionamentos. Para assim se poder “criar um mundo plural em que todos possam mundializar e ser mundializados” (Couto, 2005, p. 155).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Isabela Lage
Enviado por Isabela Lage em 12/07/2007
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