Sobre a racionalidade, e a “vitória” nas discussões

Existem discussões racionais. Tais embates consistem na apresentação e confronto de ideias antagônicas. Baseiam-se na existência de contradições: afirmações, ou ditos, contrárias. Discussões racionais podem e devem ser conversas amistosas e educativas, tendentes a conduzir um, ou ambos os debatedores, a algum novo aprendizado.

Se alguém afirma algo, e outro nega, EVENTUALMENTE, a contenda é passível de uma solução racional. Tal resultado pressupõe o conhecimento do TIPO de discussão em pauta. O desconhecimento do tipo da discussão costuma gerar completa confusão no embate, inviabilizando

qualquer possibilidade de racionalidade. É o que se vê em discussões infantis. A maioria dos adultos raramente consegue algo mais que isso, daí a busca pela “vitória” em discussões, feito que, usualmente, corresponde a uma manifestação de poder, algo análogo a um urro, ou a uma patada animal. A “vitória” nesses casos, consiste na reiteração da posição de domínio, costuma ser conseguida com o auxílio de posturas, gestos, e, especialmente, por meio de alterações na intensidade vocal. Gritos têm um papel preponderante em tais contendas, estabelecendo quem manda no grupo. Apresentamos esse comportamento atávico desde quando éramos indistintos de chipanzés.

Quando os leões abatem uma grande presa, dividem-na entre urros, patadas e mordidas. A similaridade entre tais embates e as discussões irracionais são bem claras.

Discussões racionais não se assemelham tanto a tais embates, baseiam-se, fundamentalmente, no estabelecimento de contradições (fato que será “negado”, ou que gerará protestos de dialéticos e outros irracionalistas). Gritos não possuem nenhum papel nas discussões racionais, não alteram o peso de argumentos racionais.

Mas, retornemos aos tipos de discussões, sem tal conhecimento, frequentemente descambaremos para irracionalidades.

Podemos debater sobre questões factuais, ou empíricas. Consistem em afirmações sobre eventos, ou objetos: tal coisa é assim. Uma afirmação factual pode ser contraditada por outra. A solução do dilema, normalmente, exige algum tipo de testemunho. Costumam ser extremamente tolas e aborrecidas as discussões factuais, alguns tolos podem gastar horas debatendo questões do tipo:

— Paris é a capital da Inglaterra. — Não, Paris é a capital da Alemanha!

Nesse caso, os dois tolos estariam discutindo sobre questão factual. Em outros tempos precisávamos consultar alfarrábios, quase nunca à mão, para resolver tais contendas, livros nos quais a pesquisa podia se revelar cansativa ou infrutífera. Hoje a internet as resolve com facilidade.

A prossecução de discussões desse tipo sugere o desejo dos contendores de estabelecer a ordem das bicadas, de determinar quem é a figura dominante no grupo. O prolongamento da contenda costuma conduzir a cenas bastante similares à de chipanzés gritando e agitando os braços em desafio a outros. As situações aventadas são bastante análogas, correspondem ao mesmo tipo de coisa.

Algumas questões não são passíveis de discussão racional por envolver questão excessivamente subjetiva:

— Bolo é mais gostoso que brigadeiro. — Não, brigadeiro é mais gostoso que bolo.

Nenhuma racionalidade caberá na discussão.

O não reconhecimento do tipo de questão tratado pode levar a situações constrangedoras. Certa vez enviei artigo científico para revista biológica renomada provando a impossibilidade da existêcia de algo denominado “ring species”, ou espécies com distribuição em anel. O artigo consistia em demontração de que o conceito é contraditório. O árbitro tolo encarregado de julgar o artigo negou minha conclusão, e a publicação do artigo, baseado em evidência empírica. Embora confessando-se confuso com a argumentação (muito simples e contundente) asseverou a existência de espécies correspondentes ao conceito, “provando” o erro de meu argumento. Especialistas costumam ser criaturas ignorantes.

É comum darem trelas a ditos equivocados como — “Contra fatos não há argumentos”, estabelecendo a preponderância das afirmações factuais sobre as lógicas, um equívoco. Poderia ser dito, embora sem nenhum apelo popular ou emocional, que contra bons argumentos não pode haver fatos. Recomendo aos que duvidarem dessa afirmação procurar, por exemplo, uma bola quadrada, ou um número maior que 10 e menor que cinco. Sei que as recomendações acima ensejarão certas tentativas de construção de conceitos que se adequem aos “objetos” propostos. Aliás, os matemáticos definem algo como uma “bola quadrada” ao trocar a usual “distância euclidiana”, por outra do tipo: d=x+y. A conceituação pressupõe a alteração conceitual. Creio que os números acima suscitarão apenas objeções ainda mais banais, como a de quantidades que tenham sofrido variações. De fato, impossibilidades lógicas, reveladas pelas contradições, incitam afirmações peremptórias, definitivas. Conclusões lógicas preponderam sobre as factuais.

Uma constatação bastante usual consiste no fato de que, se sua crença se baseia na razão você tentará defendê-la de maneira racional. Não recordo ter visto algum matemático batendo na mesa e aumentando a voz em defesa de um teorema. Teoremas, aliás, são obtidos de maneiras apaixonadíssimas. Matemáticos podem passar meses, ou até anos, imersos em reflexão profunda sobre as questões tidas como absurdas, ou estranhíssimas, por outros. Poucos religiosos, e pouquíssima outras criaturas debruçam-se tão apaixonadamente sobre questões tão abstratas e distantes das questões aflitivas cotidianas. Apesar da paixão intensa, não utilizam demonstrações de poder para convencer seus ouvintes. A razão se sobrepõe até ao poder, fato que, aliás, coloca a racionalidade sempre sob a mira dos poderosos que permitem, apenas, as rebeldias irracionalistas. De acordo com o poder, todos os rebeldes devem se comportar de maneira irracionalista, rebeldias irracionais são estimuladas, as racionais não são permitidas.

Se “ensinarmos” para uma criança que 8+7=14, e para outra que 8+7=16, elas talvez briguem pelo fato. Não me surpreenderia uma altercação exaltada decorrente de tais crenças, dado serem ambas dogmáticas. Pode-se ensinar, dogmaticamente, qualquer coisa. Então podemos ter:

— Oito mais sete são quatorze.

— Não, oito mais sete são dezesseis.

— OITO MAIS SETE SÃO QUATORZE!

— NÃO SÃO! SÃO DEZESSEIS!

— (PUL, tapa na mesa). QUATORZE!

— DE-ZES-SEIS!!

Tendo aprendido o fato dogmaticamente, não resta aos contendores outro argumento que não aintimidação. O que puder gritar mais alto o fará, vencendo, assim, a discussão, similarmente aos leões e chipanzés. O murro na mesa talvez sugira um outro endereçado ao nariz do interlocutor, induzido-o a se calar admitindo, desse modo, a razão do oponente. Cabe notar que argumentos dotados de tal contundência serão compreendidos também por cães, chipanzés e até pelos leões!

Uma criança que tenha aprendido a somar, por outro lado, não terá esgotado seus argumentos, e poderá contraargumentar mostrando sete dedos e adicionando suas quantidades, uma a uma, à anterior. Procederia, então, à contagem: oito, nove... quinze, enquanto marcava os dedos já englobados pela contagem.

Note que, talvez, o dogmático permaneça alheio à contagem, sem compreender seu significado, nem sua conclusão, sem conseguir relacioná-la com a discussão precedente, o que o levará, provavelmente, a se exaltar ainda mais.

Aquele que sabe somar, não será convencido pelos gritos, nem pelo murro. Contrastatrá suas razões à gestualidade ameaçadora. Eventualmente, músculos e revólveres poderão induzir o oponente racional ao silêncio. Nunca abalarão sua convicção, no entanto.

George Orwell percebeu, no entanto, que circunstâncias extremas e muito especiais podem nos convencer de que 2+2=5. Posteriormente tal fenômeno ficou associado à síndrome de Estocolmo. Lembremos que o poder não admite barreiras que o limitem. Vivemos tempos estranhos. Creio que tais circunstâncias possam suspender nossa razão. Acarretarão, creio, nesses casos, efeitos colaterais bastante evidentes.

Retornando à normalidade, e a supondo, esperamos encontrar na criança que sabe somar a tranquilidade para justificar racionalmente sua conclusão. Cabe notar que a insistência de um dos dogmáticos acabaria por denunciar algum dogma, ou sustentação irracional, existente na raiz da justificativa racional da soma proposta pelo outro. Assim, a exigência do dogmático obrigaria o oponente a justificá-la, feito, provavelmente, acima da capacidade da criança. Uma pessoa culta talvez o fizesse, mesmo nesse caso, poderia ser instado a justificar o dogma anterior que sustentou sua nova conclusão. Qualquer raiz que se apresente como fundamento do conhecimento revelará ser o dogma fundamental admitido pelo defensor da racionalidade. Sintetizarei o que disse acima: todo conhecimento se baseia em algum pressuposto, em algum princípio dogmático. Tal constatação justifica o irracionalismo e sua vertente mais comum, o relativismo. Tudo, então, seria relativo; nenhuma racionalidade seria, de fato, possível. Contra ambos, relativismo e irracionalismo, aponto as diferenças de nível dos pressupostos postulados pelas argumentações racionais e pelas irracionais.

Crítica ao irracionalismo

Nunca conheci um irracionalista coerente, todos os que conheço, e são muitos, tentam sempre argumentar de maneira racional, sacando irracionalidades da cartola apenas quando se encontram sem argumentos. Um irracionalista coerente se comportaria como um louco, “argumentando” de maneira sempre completamente tresloucada, não falando coisa com coisa. Seria incoerente para um irracionalista até mesmo utilizar em um debate as palavras de qualquer língua, por que razão o fariam? Mas não se pode exigir coerência de um irracionalista, todos eles ririam disso; preferem ficar livres para, a qualquer instante e a seu bel prazer, utilizar seu coringa: os argumentos irracionais, ilógicos. Farão isso sempre que se sentirem derrotados, e aqui retornamos a um dos pontos centrais aqui tratados, a “derrota” na discussão.

Como adiantei antes, a vitória ou derrota nas discussões é uma expectativa daqueles que não se guiam pela razão, mas pelo poder. A vitória significará para ele uma pontuação no jogo de poder perpetrado no embate similar ao dos leões. O vencedor sai fortalecido do embate, o vencido vê-se subjugado.

A discussão racional busca o esclarecimento, não o poder. Resulta em aprendizado.

Quando levada a termo, a discussão racional expõe o absurdo de uma das posições. Não há “meia incoerência” a incoerência é sempre total. Erros levam, logicamente, a outros erros e esses podem ser logicamente amplificados. Não existe absurdo ligeiro, nem meio absurdo, todo absurdo é completamente absurdo. Aliás, um teorema lógico consiste na prova de que tudo, absolutamente tudo, decorre de uma contradição. Isso inclui todos os equívocos possíveis. Assim sendo, todos os equívocos são decorrentes de qualquer contradição, não havendo meio erro.

Retorno agora aos “níveis” dos pressupostos aventados anteriormente, esclarecerei a expressão. Os programadores de computador utilizam a expressão “alto nível” para se referir a programas e aplicações ao alcance do usuário final. Refere-se a comandos simples, disparados usualmente por cliques, mas resultantes em consequências complexas. Um exemplo de comando de alto nível é o clique no ícone que abre um determinado programa; a ação muito simples, o clique, dispara consequência complexa, a abertura do aplicativo. Ações de baixo nível são efetuadas pelo programador, consistem, por exemplo, na confecção das linhas de código. Consistem, frequentemente, em comandos incompreensíveis pelo usuário comum, e resultantes em efeitos, por vezes, bastante sutis, como uma breve alteração interna no programa em construção.

Seguindo a nomenclatura dos programadores, podemos discernir sentenças de alto e de baixo nível nas discussões racionais, sendo as de baixo nível as mais fundamentais, as bases da discussão, seus fundamentos. Dois debatedores devem compartilhar algum conhecimento comum, caso discordassem, absolutamente, quanto a todas as coisas, nenhuma conclusão entre ambos seria possível. Tal caso nunca ocorre, dado que, por mais que discordem, todos nós concordamos sobre questões de baixo nível. Assim, em uma discussão racional buscamos o conhecimento compartilhado pelos contendores, aquilo com o qual todos concordam. A partir daí, buscam-se as discordâncias, tentando encontrar nelas uma incoerência no caminho que teria levado do conhecimento compartilhado por ambos, à discordância evidenciada pela discussão. Um dos caminhos, se as possibilidades se excluem, não é coerente, não existe. Se os pressupostos em questão são de nível suficientemente baixo, haverá consenso entre ambos os debatedores em relação a eles, o que permitirá a descoberta da origem da incoerência e o isolamento do erro. Mas não haverá vitória nem derrota, como ocorre ente os chipanzés e os leões, nem afirmação de poder; haverá aprendizado. Um dos debatedores perceberá ter estado equivocado, abraçará a posição contrária terá aprendido. Em discussões racionais tal resultado é, de fato, esperado. Pessoas racionais tendem a se surpreender ao se perceber em erro, e a ficar agradecidas por ter sido instada a reconhecer o fato. Costuma haver certa alegria nesse reconhecimento.

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Vivemos um momento estranho em virtude da polarização política que inundou o país recentemente. O fenômeno é mundial, provavelmente indicativo da preparação de uma grande guerra.

Discussões políticas raramente são racionais, frequentemente, assemelham-se bastante às contendas entre chipanzés, definidas por gritos, gestos ameaçadores e posturas de desafio. O aumento do volume sonoro durante a discussão é forte indício da ausência de racionalidade. Atitudes emocionais são fortíssimos indícios de argumentos irracionais, devemos atentar a isso quando estivermos debatendo.

Irracionalistas propugnam a impossibilidade da racionalidade, e não veem motivos para pudores nesses casos, argumentarão que todas as discussões são necessariamente assim. Em qualquer caso, os que se acreditarem portadores de bons argumentos tenderão a apresentá-los de maneira tranquila e em tom usual, aumentando a voz apenas em resposta a atitudes análogas perpetradas previamente pelos oponentes. Os que não tiverem razões, gritarão.

No Brasil a importância da televisão no convencimento das pessoas é gigantesca. Em outros países, a manipulação da opinião pública através da internet deverá se tornar, de imediato, uma grande preocupação. As possibilidades de manipulação intensa através do google, facebook e outros, deverão levar a restrições nesses instrumentos, do contrário o poder econômico comprará os governos do mundo inteiro.

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Em suma, leões, chipanzés, crianças e fascistas buscam a vitória nas discussões, pessoas racionais buscam o aprendizado e o consenso.