Quais Histórias queremos contar?
O estudo e a compreensão das sociedades do passado permeado pela consciência do continuum espaço/tempo é o objeto de pesquisa da historiografia. Um mergulho em acontecimentos e conjunturas econômicas, sociais e culturais em contextos políticos e períodos históricos distintos. Saber evidenciar traços do passado no presente e perceber as mudanças e permanências da História são algumas das posturas adotadas pelos historiadores. No século XIX, a História é reconhecida como um campo de conhecimento das Ciências Humanas. Ao longo do “século das ciências” foram desenvolvidas metodologias e perspectivas para a pesquisa e o tratamento das fontes históricas. A História tradicional privilegia os “fatos” e “heróis” ressaltando os feitos políticos e militares e as decisões das elites econômicas. Essa historiografia conservadora emergia dos dados compilados nos documentos e narrativas oficiais. Uma abordagem positivista que se perpetuou durante séculos concomitante as perspectivas marxistas explorando a ótica da luta de classes. O materialismo histórico- dialético fundamentou a compreensão da história da classe trabalhadora e desnudou as relações de exploração e opressão nas sociedades.
Nas primeiras décadas do século XX, precisamente a partir de 1929 com a publicação da revista intitulada Annales d’Histoire Économique et Sociale, fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch.na França, dando início a Escola dos Annales. Uma reviravolta nas teorias da História no bojo de célebres historiadores como March Bloch e Lucien Febvre sucedidos por gerações de intelectuais que adotaram as novas abordagens propostas. Descortinaram-se outras maneiras de se “ver” a História colocando em evidência o imaginário, as memórias, o cotidiano e a cultura. As histórias dos sujeitos “invisíveis” afloram e reivindicam sua importância no curso da aventura da humanidade e as mulheres, as crianças, os operários começaram a ser temas de estudos historiográficos. Paradigmas emergentes deram voz e visibilidade para as populações marginalizadas e subalternas que não tinham reconhecimento ou importância na História tradicional. Afinal, quais Histórias queremos contar se a História é um mosaico de versões, olhares e narrativas diferenciadas? Vejamos um exemplo: A expansão marítima europeia do século XV e XVI, os documentos que eram produzidos favoreciam os colonizadores na “conquista” das novas terras e suas riquezas. Para as populações nativas ameríndias o contato inter-étnico resultou num longo processo de exploração e usurpação do território que culminou em mais de cinco séculos de genocídio indígena. Para uns as glórias da Conquista, para outros a degradação da Invasão cristalizando uma versão parcial e Eurocêntrica dos acontecimentos históricos. O conceito de Verdade se esvai no ar. O conhecimento da História fornece as referências fundamentais para os indivíduos de uma sociedade, orientando sua visão de mundo e o seu “estar no mundo”, suas origens familiares de povo ou nação e é um lastro para a identidade cultural. A História não explica tudo - e nem tem essa pretensão - mas nos situa no mundo e dá conforto emocional e psicológico as pessoas. Compreender os acontecimentos históricos em larga ou curta escala é saber um pouco de si e da História da Humanidade.
Nosso contato com a História vem de berço com a família e a comunidade. Um exercício interessante é construir sua “Arvore Genealógica” registrando seus antepassados e localizando suas origens familiares. As fotografias revelam detalhes congelados no tempo, o instante do “click” nos dá subsídios para uma viagem no tempo. Como historiador gosto das histórias não contadas, suprimidas e abafadas. A História dos excluídos da História. A enfadonha versão oficial dos fatos não correspondem as novas demandas, uma narrativa segregada do contexto social. Tenho ânsia de privilegiar as comunidades tradicionais, os trabalhadores, as pessoas comuns ou marginalizadas que fizeram e fazem parte da História. Uma História engajada na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Com as raízes plantadas no passado com os olhos no futuro, valorizando o simples e o complexo, propondo revoluções no pensar e agir no intuito de transformar o que está posto. Os “heróis” e os “ilustres” donos dos discursos oficiais estão com os dias contados. Os personagens e sujeitos históricos exigem seu espaço, querem erigir seus monumentos e serem ovacionados em datas comemorativas. Do submundo da História nascem horizontes subversivos com o teor de responsabilidade de ter a consciência de quais são as Histórias que estamos (re) produzindo no vasto limiar do século XXI. O dilema humano na essência de SER fruto da sua própria História; de um, de todos e de ninguém!
Publicado no jornal A Folha/Torres e Jornal Litoral Norte RS.