A Cabala é um sistema de interpretação desenvolvido pelos estudiosos da religião judaica para estudar a Bíblia e desvendar os grandes segredos contidos na palavra de Deus, que no entender dos mestres dessa religião, esse formidável monumento literário que os judeus legaram ao mundo, encerra. Para esses estudiosos da religião de Israel, a Bíblia teria sido escrito em código, utilizando as propriedades que o alfabeto hebraico possui, de combinar letras e números para criar novas palavras, apresentando a cada combinação feita, um significado diferente.
Assim, a Cabala se fundamenta na idéia de que o alfabeto hebraico constitui uma forma de escrita que vem de um mundo superior ao nosso, pois foi desenvolvida para fins de comunicação entre Deus e os seus agentes, os construtores do universo, constituídos por dez Ordens angélicas, surgidas em cada uma das dez manifestações que Ele emanou, nos quatro mundos da sua ação criadora. Essas dez manifestações são aquelas que estão representadas na Árvore da Vida.[1]
Os arcanjos ensinaram a Cabala a alguns homens na terra, escolhidos especialmente por Deus para receber essa sabedoria, com a qual a própria humanidade pode contribuir para a tarefa de construção do mundo planejado pelo Criador. Daí o termo “Cabala” significar, numa tradução livre, “tradição recebida”, pois o seu conteúdo semântico, inacessível ao vulgo, só pode ser comunicado a alguns iniciados. Nesse sentido ela seria uma espécie de código secreto, de caráter sagrado, cujo conteúdo deve ser interdito aos profanos.
Diz-se que os sons e os valores numéricos desse alfabeto, devidamente combinados, formam palavras e signos que contém as grandes verdades físicas e espirituais que formatam o universo em todas suas partes, sejam elas materiais ou espirituais. Conhecer cada combinação e seus significados é o grande ensinamento dessa tradição. Daí a Cabala ter desenvolvido uma semiótica própria, cujo entendimento, por parte de não iniciados nessa disciplina, parece ser inacessível. Na verdade, porém, o que se observa na Cabala é muito mais a utilização de um sistema de comunicação, próprio das culturas orientais, que apela para o uso frequente de metáforas e signos para dar significado aos conteúdos mais profundos da mente humana, que a linguagem cotidiana não consegue representar. Por isso a Cabala só pode ser estudada e compreendida através do chamado método iniciático, no dizer de Ouspensky,[2] ou o método fenomenológico, utilizado por Teilhard de Chardin.[3] Pois é somente através de uma pesquisa que integre as descobertas da ciência físico-química-biológica, com a capacidade inata do espírito humano para intuir, que se pode entrar no universo cabalístico com alguma luz que nos permita compreender as grandes verdades reveladas por essa tradição.
 
Historicamente, há dois tipos de Cabala. Um é aquele que nasceu da necessidade de os judeus criarem para si uma forma de linguagem que servisse de defesa contra o acirrado anti-semitismo que se desenvolveu contra o povo de Israel desde as suas origens, derivado do fato de os israelitas terem se afastado do convívio com outros grupos em razão das suas crenças um tanto elitistas e de certo modo, chauvinistas, bastante diferentes dos demais. Esse tipo de Cabala, que pode ser chamado de prática, ou operativa, segundo acreditavam seus praticantes, hospedava, em princípio, um sistema de alta magia, que tinha por objetivo a invocação dos poderes do mundo sobrenatural para realizar os desejos do operador. É nesse contexto que se situam os milagres, as visões e profecias realizadas pelos antigos profetas do Velho Testamento e as famosas lendas cabalistas que atravessaram séculos e que ainda hoje povoam a imaginação das pessoas, servindo inclusive de fonte para formidáveis trabalhos literários. [4]
 
Mais tarde surgiu outro tipo de Cabala, que podemos chamar de filosófico ou especulativo. Este constitui um sistema de pensamento e disciplina de conduta moral que foi desenvolvido por um grupo de filósofos, a maioria de origem judaica, a partir do século XII da era cristã, provavelmente na região do Languedoc francês, com reflexos entre os cabalistas espanhóis. Embora a temática desse tipo de Cabala aparecesse somente na Idade Média, e seu conteúdo tenha sofrido uma larga influência da Gnose, as raízes dessa doutrina estão fincadas em uma antiga tradição já encontrada entre os rabinos dos tempos bíblicos, e utilizada principalmente por grupos sectários judeus, nos séculos anteriores ao nascimento de Jesus Cristo. Pode também ser recenseada em obras de escritores esotéricos cristãos nos primeiros séculos do Cristianismo, que a usaram para disfarçar a pregação da doutrina de Jesus, então posta na clandestinidade pelas autoridades judaicas e romanas. Um exemplo dessa literatura cristã clandestina, escrita em linguagem simbólica, abusando largamente de fórmulas cabalísticas, é o Apocalipse de São João. Esse curiosa obra, que visa divulgar a doutrina cristã ás Sete Igrejas da Ásia, até hoje desafia a curiosidade dos estudiosos, em face da estranha simbologia usada pelo autor. Nessa obra, um dos mais significativos exemplos da técnica cabalística aplicada na linguagem é a que o autor utiliza para designar a enigmática figura da Besta. “ E aqui está a sabedoria. Quem tem inteligência calcule o número da Besta. Porque é número de homem. E o número dela é seicentos e sessenta e seis”, escreve o autor. Esse número (666), correspondia, usando-se a técnica da gematria, ao nome do imperador romano Nero, que justamente na época em que o autor escrevia o Apocalipse, havia desencadeado uma grande perseguição aos cristãos em todo o território dominado por Roma[5]
 Entretanto, parece que o uso da Cabala como linguagem de código foi popularizada mesmo pelos essênios, seita judaica radical, que entre os séculos I e II antes do nascimento de Jesus se afastou do convívio social para viver a sua crença em um final apocalíptico para este mundo e a construção de um mundo novo, liderado pelo Messias. Essa seita, cujos documentos foram recentemente recuperados em cavernas situadas ás margens do Mar Morto, é tida como a verdadeira inspiradora do Cristianismo, pois suas doutrinas muito se aproximam daquelas pregadas por Jesus e principalmente, por aquele que é tido como seu verdadeiro mentor, o profeta João Batista.[6]
 
Alguns dos precursores da Cabala, segundo os estudiosos desse sistema, foram os profetas Ezequiel e Daniel, cujas visões, extremamente difíceis de serem explicadas em linguagem vernacular, só podem ser estudadas e entendidas por quem domina o arsenal do simbolismo cabalístico. Essas visões constituem a chamada Mercabah, uma escola de interpretação cabalística que estuda o fenômeno luminoso como fonte de toda a vida do universo e procura explicar como ele nasceu, se desenvolve e encontrará o seu apocalipse.[7]
É fato que tais visões guardam relação com os momentos históricos vividos pelo povo de Israel e refletem os próprios sentimentos, temores e esperanças acalentadas por esse povo, em sua extraordinária saga. Mostram também a existência de uma tradição muito em voga entre os povos antigos, de retratar os seus estados interiores através de complicadas visões gestaltianas, intraduzíveis nos sistemas de linguagem antigos.[8]
Como explica Northrop Frye em sua obra, “há, no Velho Testamento, uma concepção de linguagem que é poética e “hieroglífica”, não no sentido de uma escrita de sinais, mas no sentido de se usarem as palavras como um tipo particular de sinal.[9] Quer dizer, há, na própria Bíblia, uma visão semiótica toda particular que nos sugere diferentes interpretações para uma mesma palavra, ou de uma frase, que não podem ser conformadas em um único significado.
 
Destarte, muitas palavras, que na linguagem comum significam uma coisa, na linguagem usada pelos autores desses antigos textos significam coisas muito diferentes, que só podem ser devidamente descodificadas se postas no exato contexto em que viveram os seus autores e recenseadas as suas relações de sentimento e interação com o ambiente e os acontecimentos que fizeram parte da experiência que eles relatam. Referindo-se ainda ao estudo do autor acima citado, verifica-se que nas sociedades antigas há uma interação mais estreita entre o sujeito e o objeto, no sentido de que a ênfase do sentimento experimentado pela pessoa recai mais sobre a relação que a liga ao ambiente do que na própria observação do sentimento em si, coisa que só começou a acontecer depois da experiência grega. Essa característica do pensamento antigo também foi explorada por Sir James Fraser, em seu estudo sobre as tradições dos antigos povos, quando se refere ao sentimento do homem primitivo em relação aos seus deuses. É uma relação de simbiose, no sentido de que o homem primitivo não possui um “self” bem desenvolvido, ou seja, um sentimento de si mesmo, independente da divindade que ele cultua. Essa noção, como bem viu esse autor, só seria desenvolvida mais tarde, já nos tempos históricos, pelos gregos, com a cultura do pensamento filosófico. [10]
 É nesse sentido que Frye explica o fato de que “muitas sociedades primitivas possuem palavras que expressam essa energia comum á personalidade humana e á natureza circundante e que são intraduzíveis em nossas categorias e correntes de pensamento.(...) A articulação das palavras pode dar corpo à este poder comum; daí emana uma forma de magia, em que os elementos verbais, como fórmulas de “feitiço” ou encantamento, ou coisas parecidas, ocupam um papel central. Um corolário desse princípio é o que pode haver magia em qualquer uso que se faça das palavras. Em tal contexto, as palavras são forças dinâmicas, são palavras de poder.[11]
O autor em questão cita, á guisa de exemplo, a palavra maná, ou mana, que em Êxodo, 16, aparece como sendo uma espécie de farinha que Jeová faz cair do céu para alimentar o faminto povo de Israel no deserto. Essa palavra (man, maná, manes, em várias línguas antigas), refere-se á uma força, ou energia, que se encontra concentrada em objetos ou pessoas e que pode ser adquirida, conferida ou herdada. Na mitologia romana, por exemplo, esse termo conecta-se com o termo “manes”, palavra que designa a influência que os ancestrais mortos podiam exercer sobre os vivos. No Egito antigo falava-se de Menes, que segundo a tradição teria sido o primeiro rei da unificada nação egípcia. Os historiadores suspeitam, no entanto, que esse Menes está conectado com a lenda de Osíris, o deus que teria instituído a civilização entre os egípcios, sendo, portanto, a representação de uma força natural e não um personagem histórico propriameente dito.
Criam-se, dessa forma, insuspeitadas relações simbólicas, que se hospedam no inconsciente coletivo da humanidade e são passadas de geração á geração, dando formato á crenças, valores e costumes, os quais, no contexto geral da cultura humana podem explicar muita coisa que de outra maneira ficariam para sempre catalogadas como meras superstições. [12]
    Por isso o discurso cabalista sempre termina com uma exortação que mais parece ter sido tirada de uma dissertação gestaltiana.  É mais ou menos algo assim. Quando se revela o que está oculto, então não está mais oculto. Ou então o que foi revelado é uma grosseira farsa. A Cabala não pretende revelar nada. Apenas mostra o que as pessoas sentem e veem. E o que elas sentem e veem podem ser somente a visão que elas tem, moldada pelos próprios sentimentos, que afinal podem não ter nada a ver com a verdade que se esconde atrás dos símbolos, das imagens e jogos de palavras que a linguagem cabalística usa. O segredo não está na forma e no significado que o símbolo parece indicar, mas no sentimento que ele inspira. Pois todo símbolo carrega em si um arquétipo que, com maior ou menor força, acaba moldando as nossas crenças.
 
[1] Cf. Knor Von Rosenroth- A Kabbalah Revelada, op, citado, pg. 50
[2] Ouspensky, Piotr Demianovitch.- Um Novo Modelo do Universo, São Paulo, Ed. Pensamento, 1928. Método Iniciático é aquele que proporciona ao estudante das ciências ocultas uma fórmula para estudar o pensamento místico.
[3] Pierre Teilhard de Chardin - O Fenômeno Humano, Ed.Cultrix, 1968. O método fenomenológico de Teilhard de Chardin proporciona ao estudante a possibilidade de entender os fenômenos universais como resultado de uma evolução que se processa dentro do real existente (espírito) e fora dele (matéria), por força de dois movimentos existentes na energia, que é a base de todas as coisas. Esses movimentos são o de expansão e compressão.
[4] Exemplos de temas cabalísticos em obras literárias famosas são as lendas do Golém, que inspiraram a escritora inglesa Mary Shelley na composição do seu clássico romance Frankeinsten. Outras obras, como o Aleph, famoso conto de Jorge Luís Borges, o Golém de Gustav Meirink, e mais recentemente, As Aventuras de Pi, filme vencedor do Oscar em 2012, baseado no romance de Yann Martel, também são inspirados em temas cabalísticos.
[5]Ver, a esse respeito Hugh Schonfield- A Bíblia Estava Certa- Ibrasa, São Paulo, 1958
[6] Para maiores referências sobre a seita dos essênios e sua influência na história do pensamento maçônico, ver nossa obra “Conhecendo a Arte Real”, publicada pela Ed. Madras, São Paulo, 2009.  Ver também Laperroussaz, Ernest- Marie. Os Pergaminhos do Mar Morto, São Paulo, Círculo do Livro, 1990.
[7] A Mercabah se refere principalmente á visão do profeta Ezequiel, citada em Ezequiel, 1:4,28. Ela constitui uma escola de interpretação da Bíblia na ótica cabalística, que vê nessa visão profética uma metáfora bastante eloquente do nascimento, desenvolvimento e fim do universo. Uma visão escatológica completa, portanto.
[8] Gestalt, doutrina que ensina que a soma das propriedades de um objeto formado em nossa mente é mais do que ele realmente é, pois a mente acrescenta ao objeto outras propriedades que ela “acha” que o objeto tem. Exemplo disso é uma nuvem no céu, que olhada por diferentes pessoas pode assumir formas totalmente diversas na mente de cada observador.
[9] Northrop Frye- O Código dos Códigos, Ed. Boittempo,  São Paulo, 2004
[10] Sir James Frazer, “ O Ramo de Ouro”- Zahar Editores, São Paulo, 1982.
[11] Northrop Frye, O Código dos Códigos- citado, pg. 27
[12] Idem, op citado, pg. 28.