Análise do poema "SER" de Carlos Drummond de Andrade
PAULO HENRIQUE COELHO FONTENELLE DE ARAÚJO
n. USP: 3710046
Análise do poema “Ser” , considerando o poema “Procura de poesia”, ambos poemas de Carlos Drummond de Andrade.
Trabalho de Aproveitamento da Disciplina Literatura Brasilieira I, na graduação do Curso de Letras da F.F.L.C.H. da Universidade de São Paulo.
São Paulo
Junho de 2003
SER
O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa,
sem carne, sem nome.
Às vezes o encontro
num encontro de nuvem.
Apoia em meu ombro
seu ombro nenhum.
Interrogo meu filho,
objeto de ar:
em que gruta ou concha
quedas abstrato?
Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste
contudo chamava-te
como ainda te chamo
(além, além do amor)
onde nada, tudo
aspira a criar-se.
O filho que não fiz
faz-se por si mesmo.
PROCURA DA POESIA (poema comparativo)
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
O poema “Procura de Poesia” de Carlos Drummond de Andrade é um texto dividido em duas partes: na primeira a evidenciar uma contradição, Drummond nega como assunto da poesia todos os temas que constituem o seu universo poético e na segunda parte defende a idéia de que o fazer poético é desvendado como uma experiência atemporal em um ambiente comparável a um rio difícil, denominado reino das palavras.
Drummond ainda afirma que neste reino encontram-se os poemas que esperam ser escritos, estão mudos, em estado de dicionário, aguardam a realização de seu futuro criador que os deve contemplar sem desespero, sem impaciência e até sem o uso de algumas das faculdades de captação da realidade. Note-se, o poeta entra surdamente no tal reino. Ausente a audição lhe é proibido o tato, pois não deve colher o poema no chão. Ausente o tato, a visão também é imprecisa, cada palavra tem mil faces secretas sob a face neutra.
O poema “Procura de Poesia” seria então, não um método para elaboração de versos, nem a constatação de que para a poesia é desnecessária a determinação de temas, mas a indicação de que é débil e solitária a experiência poética e nebuloso o lugar que ambienta o ato da criação poética, lugar este onde o poeta só garantirá, ao adentra-lo, que será testemunha de uma possibilidade, de um vir a ser.
O Poema “Ser” parece concentrar todas as sugestões do poema acima e mais, o título - além da concretude da palavra “Ser”, ente vivo animado – traz também uma contradição, pois o poema constrói-se exatamente sobre uma condição de não existência. O título supõe a negação do poema, característica que se afirma e encaminha o leitor para o sentido oculto do texto e isso se assemelha às primeiras estrofes de “Procura de Poesia” que negam a obra poética de Drummond afirmada mais tarde pelo próprio ato da procura do ato criador.
O poema “Ser” publicado no livro “Claro Enigma” é uma homenagem póstuma de Carlos Drummond, que era agnóstico – alguns o julgavam ateu - ao filho que nasceu morto, embora a poesia, como dita nos versos de “Procura de poesia” prescinda de incidentes pessoais e da revelação da morte. Pelo contrário, ela existe como possibilidade, algo que pode ou não se realizar e tal poema realiza-se plenamente e em dois níveis: no nível das palavras que tomaram forma e também na manifestação do objeto de ar que constituiu esse filho - que também é palavra - encontrado pelo poeta em um reino diferenciado, semelhante ao reino das palavras do poema anterior, aqui com outro nome: o além, além do amor.
Em todas as estrofes observa-se a manifestação desse filho, com a exceção dos dois primeiros versos, em que o poeta esgota as informações objetivas daquele ser: houve um filho que não foi feito e que seria homem, no entanto, mesmo este “seria” e este “homem” já constituem uma outra natureza que se manifesta através dos verbos relacionados durante todo o poema. No terceiro e quarto verso, por exemplo, o filho corre na brisa – o filho é o ato de correr e é brisa, não tem carne, não tem nem nome.É objeto de ar.
Nas estrofes seguintes o filho prossegue em sua constituição de verbo e se um verbo exprime processo, ação, fenômeno, mudança de estado, o filho é e seria a ação do verbo, talvez fenômeno e de tal forma incisivo na existência do poeta, que parece se inverter a relação pai e filho, relação de proteção do mais velho para mais novo, o eterno educar de uma geração a outra. No poema é o filho que apoia (abraça) o pai com o seu ombro nenhum; o filho que responde através do hálito; o filho que chama o pai de um lugar além, além do amor, (um advérbio de lugar sugerindo a materialidade do amor, substantivo abstrato por excelência) que permanece suspenso, não correspondendo a qualquer espécie de paraíso, todavia algo indefinível, a totalidade do nada.
A relação chave do poema, contudo, o sentido profundo do texto, não é o encontro do pai com o homem, o filho que não vingou, mas sim a manifestação desse filho que, na sua fenomenologia, torna-se de súbito, todas as coisas que aspiram a criar-se ou que, perdidas, devem ser um marulho em nós de um mar profundo (verso de outro poema de Drummond) exprimindo a eterna aspiração humana de permanecer como essência.
O poema fala de permanência e fala também de todas as coisas findas, muito mais que lindas (outro verso de Drummond) que também é um dos temas recorrentes da obra de Carlos Drummond de Andrade. O que se acabou é o que fica na memória: estranho paradoxo.
O poema termina declarando a força da essência que o filho se constitui – ele se faz por si mesmo - e, como dito acima, afirma outro caminho Drummoniano que vai da negação à reinvenção, onde a positividade é extraída de uma atitude de oposição sistemática, circunstância também observada no poema “Procura da poesia” .
A obra de Carlos Drummond se mostra coesa no belo e profundo poema “Ser” e como segue as sugestões do primeiro poema aqui analisado, ouso fundir tais sutilezas para afirmar que o pai do poema “Ser” penetrou surdamente no reino do filho; o filho jazia sem desespero e era calma e fresca sua carne nenhuma. O filho se realizou e se consumou e correu na brisa. Era palavra e hálito. Depreendeu-se do limbo, da concha abstrata? O pai não sabe. Aceitou o filho que, também o chamava e o chama ainda além, além do amor, rio difícil – bem sabe o poeta- não obstante, algo permanece entre os dois, pai e filho, que se faz continuamente.
phcfontenelle@gmail.com
São Paulo, 25 de janeiro de 2014
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Paulo Fontenelle de Araujo
Atenciosamente.
Paulo Fontenelle de Araujo