Um Deserto, um Menino e o Aviador
Minha mãe tinha uma mania quando eu ainda era um pequenino aprendiz e tornou-se uma tradição familiar que se perpetua até hoje. Por onde ela passava trazia um livro pra mim. Podia ser um pequeno livreto de colorir, um atlas, uma enciclopédia, uma cruzadinha ou simplesmente um gibi. Sempre que “mainha” chegava com um sorriso estampado no rosto eu já sabia: era um livro. Na ingenuidade da minha infância, algumas vezes ficava decepcionado e frustrado: “Poxa vida, livro de novo? Não poderia ser um brinquedo, um carrinho ou uma bola?” Olhava ao redor e os livros habitavam em todo canto, empilhados nos cantos e organizados em prateleiras. Eram companhias inseparáveis no labor de professora de minha amada genitora. Pela primeira vez conheci uma biblioteca e percebi o valor dos livros na formação cultural das pessoas.
Dentre muitos livros que ganhei, teve um que me chamou atenção e marcou minha vida. Recebi em mãos no ano de 1994 com uma dedicatória amorosa e uma orientação: “Filho, leia esse livro em diferentes fases de sua vida, na adolescência e quando fores adulto ele sempre terá uma mensagem significativa para você.” O protagonista e o enredo não era estranho, pois já passava o desenho animado nos programas infantis. Contudo, conheci o autor Antoine Exupéry que relata suas aventuras enquanto aviador e um acidente no deserto onde teve um encontro inesperado com uma criança, o Pequeno Príncipe. Uma obra memorável, universal e atemporal que trata sobre as virtudes humanas como a simplicidade, humildade, superação, amor, bondade e amizade. Seu ponto notável que perpassa os aspectos simbólicos e subjetivos do pensamento de Exupéry é uma sólida crítica ao “mundo adulto” e seus dilemas.
Passou o tempo e emprestei meu livro para uma amiga que veraneava em Torres e nunca mais voltou. Fiquei muito chateado porque o livro que emprestei tinha a dedicatória de “mainha” e tinha um enorme carinho pelas histórias do Pequeno Príncipe. Passei mais de uma década com pesar e remorso por ter perdido aquele tesouro. Uma sensação de frustração e arrependimento por perder uma relíquia. Como o munda dá voltas, certo dia recebo de mamãe um envelope. Percebi em seus olhos um brilho diferente, atento ao me ver desembrulhar o presente. Algo estranho no ar e uma grande surpresa! Ganhei outro exemplar do Le Petit Prince (O Pequeno Príncipe) igual ao que tinha “perdido”, mas com um detalhe surpreendente. Este exemplar continha duas dedicatórias, uma atual salientando o retorno da obra para minhas mãos e outra com as mesmas palavras utilizadas em 1994. Me senti único, foi uma dádiva, uma extrema felicidade. Realmente, Exupéry e seu Príncipe marcaram etapas distintas em minha vida.
No ano passado, na escola em que leciono para a Educação de Jovens e Adultos, a coordenação pedagógica lançou um desafio para mim: apresentar o Pequeno Príncipe para os estudantes no início do ano letivo. Como é um livro amplamente conhecido essa atividade despertou a sensibilidade de professores e alunos que relembravam a “doce visão da criança escondida” em cada um. Como diria o principezinho: “Todas as pessoas grandes foram crianças um dia, mas poucas lembram disso.” De caráter universalista foi traduzida para mais de 220 línguas com cerca de 134 milhões de vendas sendo o terceiro livro mais vendido no mundo. Em 2015 foi lançado o longa metragem de animação do legado de Saint Exupéry. Um filme maravilhoso e comovente em que uma menina conhece o aviador em sua velhice e iniciam uma jornada para resgatar o pequeno príncipe das “atrocidades” do atarefado mundo de gente grande. Depois de algum tempo, consegui assistir e me emocionei quando lembrei da minha relação com o livro, o escritor, o personagem e suas aventuras. Me dei conta que com o tempo também criei minha epopeia com o Pequeno Príncipe. Aprendi sobre muitas coisas com esse livro e cada vez que releio alguns trechos, sinto-me renovado e esperançoso. Uma criança, o asteroide B – 612, um vulcão, uma rosa, uma raposa e um piloto trouxeram lições de ética, responsabilidade, cumplicidade, companheirismo, lealdade, zelo, paciência, curiosidade e motivação para desbravar novos horizontes. Um árido deserto como a aspereza dos ignorantes, um menino carregado de esperanças e lições de vida e o aviador como um eterno sonhador. Guardo em meu coração um diálogo entre a raposa e o principezinho, quando ele indaga sobre o significado do verbo “cativar”. A raposa responde que significa “criar laços” apesar de ser algo tão esquecido entre as pessoas. Após criar os laços, tornamo-nos eternamente responsáveis pelo que cativamos e na esfera do sublime percebemos que o ESSENCIAL É INVISÍVEL AOS OLHOS. Nessa fase da vida, após mais de duas décadas de contato com a obra, em meio a leituras e releituras de Le Petit Prince (O Pequeno Príncipe), apenas o sentimento de Gratidão: agradeço a minha mãe pelo carinhoso e virtuoso presente. Obrigado Mainha!
Publicado em Jornal Litoral Norte RS e Jornal A Folha - Torres/RS