A rede humana vista como ser autônomo e independente
Como surgiu a fala?
Em primeira aproximação, somos tentados a considerar a construção da linguagem humana, palavra por palavra, como se tijolo a tijolo, em uma produção conjunta acrescentando peça sobre peça até formar todo o nosso acervo linguístico (em decadência, hoje; temos perdido línguas). A proposta não elucida uma característica fundamental da linguagem, seu surgimento em pacote. Note que o acréscimo, peça por peça, não foi capaz de introduzir a linguagem em cães, cavalos ou outros animais, enquanto os grandes símios podem esboçar a linguagem de sinais.
Muito provavelmente, os gênios que inventaram a linguagem possuíam um potencial comunicativo já bastante desenvolvido, e devem ter desenvolvido a fala ainda crianças. Eram, provavelmente, irmãs e meninas, certamente parentes próximos. Adultos não aprendem a falar, só crianças o fazem. Esses primeiros humanos compartilhavam, provavelmente, um complexo sistema gramatical inato, o mesmo que todos nós herdamos, talvez acrescido, hoje, de algum aperfeiçoamento, mas compartilhado por todas as pessoas. Deviam ter irmãos.
Junto com a fala, essas crianças inventaram a voz em nossa mente, uma espécie de chama que passamos de pessoa a pessoa. Trata-se de nosso eu, de nossa consciência.
Considero os não falantes, anteriores a esse momento, similares, ou próximos aos chimpanzés e aos outros animais; os primeiros falantes já se assemelhavam a nós. Eram os primeiros humanos, conscientes.
A metáfora da chama elucida uma outra característica intrinsecamente humana: necessitamos desse elo com a rede, desse contato. É preciso que a criança receba a chama para se tornar humana, ou crescerá sem uma mente, sem uma voz interna, como um animal. Somos frutos da rede, precisamos ser acesos por ela, inseminados por ela, ou permanecemos vazios, como um computador sem nenhum software. Precisamos receber o download do sistema linguístico que implantamos e desenvolvemos em nossa mente enquanto crescemos e o exercitamos.
A comparação com uma infecção também é esclarecedora.
Vampiros e zumbis
No livro “Eu sou a lenda”, tolamente deturpado no filme homônimo, Richard Matheson imagina o surgimento de um vampiro que, ao morder as pessoas, inicia um surto de vampirismo que se propaga por toda a população humana.
Podemos ver a rede dessa mesma maneira, como algo externo que se impregnou em nós, um a um, passado, fundamentalmente, de mãe para filho. Também gosto da metáfora de um polvo imenso com uma infinidade de tentáculos, cada um deles se infiltrando em nós, transformando-nos em marionetes, ou fantoches. Lembremos que a voz em nossa mente, o nosso eu, advém da rede, tendo sido implantado em nós por nossas mães, como uma chama passada de pessoa a pessoa. Zumbis também sofrem a mesma dinâmica. Somos zumbis parasitados pela rede, controlados por ela.
O polvo
A monstruosidade da criatura depende apenas do ponto de vista; do nosso ponto de vista, ela tende a parecer um polvo imenso inserindo seus tentáculos em nossas mentes, controlanho-nos, desse modo, como fantoches. De um ponto de vista externo, ela se assemelha a uma mente, um ser imaterial, um software, conectando-nos a todos, perpassando cada um de nós. Visto desse modo, assemelhamo-nos a neurônios, componentes de um cérebro, enquanto a mente-rede coordena a relação entre tais criaturas. Vista de fora, essa grande mente, esse grande ser, não parece mais monstruosa que qualquer outra mente. A monstruosidade de tal criatura decorre de seu antagonismo à nossa individualidade; seu fortalecimento promoverá a diluição de nossa individualidade, terá o domínio total de nossas ações.
Sob um ponto de vista cósmico, exterior, a neuronização significará, apenas, a incorporação de um conjunto de indivíduos a uma entidade maior. Desse ponto de vista, o fenômeno equivalerá ao surgimento de uma colônia autônoma de seres, como, aliás, somos, nós mesmos. Consistirá, assim, na repetição de um evento ocorrido, anteriormente, mais de uma vez; na sobreposição do fenômeno sobre criaturas engendradas desse mesmo modo, como colônias. Nada, de fato, intrinsecamente malévolo, ou ameaçador ao universo, portanto. Aparentemente, será a continuação mais óbvia e “natural” para o enredo previamente traçado.
Do nosso ponto de vista, no entanto, significará um grande mal, significará nossa diluição; deixaremos de existir, ao menos em nossa forma atual, nossa existência perderá o sentido. Seremos neuronizados, completamente controlados, transformados em periféricos de uma grannde rede autônoma, de uma entidade muito maior que nós. De nosso ponto de vista, estaremos sendo parasitados pela gigantesca criatura, transformados em zumbis, aniquilados; deixaremos de ser nós mesmos, preenchidas, nossas mentes, pelo controle do leviatã.
A advertência parece distante, nebulosa, futurista; soa como uma preocupação longínqua com a qual terão que lidar nossos netos, um equívoco. Tudo indica que a grande rede se imporá em menos de um século, que bem antes disso ela já terá assumido os controles por completo. Embora pareça um sonho, ou pesadelo, o fenômeno é premente, é algo com o qual teremos que lidar. Se abrir os olhos perceberá o fenômeno se alastrando ao redor. A questão, aliás, é sobre consciência, perceba.
De qualquer modo, seremos seduzidos, induzidos a buscar ativamente essa condição. Toda a resistência cessará, toda a rebeldia. Entregaremo-nos à criatura apaixonadamente, de coração, por inteiro; de corpo e alma.