Schopenhauer e o Pessimismo Filosófico
Preâmbulo
Antes de iniciarmos o capitulo é necessário fazer algumas observações sobre a suposta desvalia de seus estudos que os seus detratores imputaram-lhes ao afirmarem que a sua Filosofia seria uma reles adaptação, ou mesmo um plágio descarado, do Hinduísmo e de suas continuações, como o Budismo, o Jainismo e assemelhados.
É indubitável que o pensamento schopenhauriano foi fortemente influenciado por essas filosofias, mas não se deve olvidar que foi graças ao seu talento que a adaptação dos mesmos ao Ocidente atingiu o patamar de excelência que alcançou.
Por isso, o leitor livre de preconceitos encontrará em seu ideário muito mais que uma simples réplica, pois ao longo de seus estudos a marca de sua genialidade é patente; como, aliás, bem se pode ver na sua coragem em vestir, sem falsos pudores, a toga do chamado “Pessimismo Filosófico” em contraponto ao Idealismo enigmático e otimista de Hegel, cujo predomínio no cenário erudito era absoluto.
Veremos no correr deste Ensaio que Schopenhauer foi um jovem de temperamento difícil, em permanente conflito contra as ideias predominantes, contra a família em geral e especialmente contra a mãe, uma romancista bem sucedida.
Dono de uma personalidade melancólica, irritadiça, contestatória e até paranoica em alguma medida, o filósofo não apresentou grandes transformações com o avanço da idade; porém, a partir de seu encontro com as doutrinas da Índia – sugerido por amigos de refinada cultura – ele pôde canalizar as suas iras e frustrações para a produção das obras que ainda hoje lhe asseguram um destacado lugar no panteão da cultura alemã.
Schopenhauer e a origem do Pessimismo.
Quantas pessoas haviam morrido em busca do sonho republicano? Quantas viveram pela crença que Napoleão Bonaparte suscitara? E o que restara das lutas e das esperanças?
Um nobre da dinastia dos Bourbon voltara ao trono da França; a monarquia revigorada pela vitória em Waterloo mostrou-se mais sólida que antes e todas as riquezas que antes existiam viraram cinzas, consumidas pelos bombardeios. Foi isto o que restou.
E não apenas isso, pois também restaram milhões de homens mortos, lavouras destroçadas, desemprego em massa graças à crescente mecanização e, como corolário, a mais negra miséria, seguida por suas filhas inseparáveis: a fome, a doença e a violência generalizada.
Restara, em suma, uma Europa devastada.
E foi esse quadro sombrio que produziu o “Pessimismo”, enquanto estilo e estética, nas Artes e na Cultura em geral.
Foi naquela funesta primeira metade do século XIX que se viu o aparecimento de poetas como Byron, na Grã Bretanha; De Musset, na França; Heine, na Alemanha; Leopardi, na Itália; Pushkin e Lermontof, na Rússia, cujos versos cantavam, sobretudo, o desencanto, a desesperança, a tristeza. Idem no campo da música com Schubert, Schumann, Chopin e até Beethoven em sua última fase, que compuseram obras eivadas de melancolia.
E no terreno da Filosofia, dentre outros, sobressaiu-se Schopenhauer, cuja pena expôs sem contemplação a desimportância do homem, que, no entanto, nega-se a admiti-la, buscando desesperadamente ocultar através de falaciosas composições filosóficas, artísticas e religiosas essa realidade que lhe é tenebrosa.
E naquela cena de completa devastação material e degeneração moral, coube à Filosofia de Schopenhauer o encargo de espelhar a destruição e tentar ser um guia que pudesse auxiliar o homem a se enxergar completamente desnudo de suas máscaras e atavios. E, mais importante, através desse despojamento pudesse perceber a insanidade de suas escalas de valores, ambições e condutas.
É certo que tal meta pecava pela pretensão, já que milênios de fantasiosas teorias religiosas e filosóficas inculcaram-lhe uma descabida arrogância; porém, é justo considerar que a partir de seu advento a Filosofia abandonou a sua pernóstica incompreensibilidade, tornando-se mais palatável para os leigos e permitindo com isso que o homem comum passasse a pensar em si próprio sem as quimeras de outrora.
Se os despossuídos de dinheiro e de cultura ainda encontravam consolo nas fantasias da Religião, aqueles outros que viviam em patamares intelectuais mais elevados já tinham abandonado qualquer fé mística e só enxergavam as ruínas que constituíam o seu mundo em 1818. Era, portanto, inevitável que esses mesmos homens comuns se perguntassem: por quê? Cada túmulo, cada execução por dividas, cada bancarrota era uma pergunta.
Seria um castigo de Deus, que assim punia aqueles que ousaram, a partir de Voltaire, a pensar?
Seria o reino de Lúcifer em pleno gozo com o sofrimento de quem acreditara nas Luzes do Iluminismo, da Razão e rejeitara a crença supersticiosa?
Alguns acharam que sim. E a exemplo do poeta Novalis, do escritor Gogol e doutros, não hesitaram em voltar para a irracionalidade da religião.
Outros, porém, recusaram-se a caminhar para o retrocesso e a exemplo de Schopenhauer, Byron, Leopardi, Lermontof etc. reafirmaram o seu ateísmo, a sua descrença em um Deus que havia permitido todas aquelas mazelas, e enfrentaram com a coragem que a verdade exige o dilema que tangencia a humanidade: o vislumbre da santidade contra a bestialidade de nosso cotidiano.
Uma breve Biografia
Filho de um comerciante famoso pela competência comercial, pela independência de espírito e pelo mau gênio e de uma Romancista de razoável sucesso, personalidade difícil e vaidade aflorada, Schopenhauer teve que abandonar a cidade natal logo aos cinco anos de idade por decisão do pai, que não se conformava com a anexação que a Polônia fizera do lugar em 1793.
Junto com os genitores, mudou-se para Hamburgo e cresceu em meio aos negócios paternos, os quais, aliás, abandonou tão logo foi possível.
Conservou, porém, alguns saberes típicos do mundo comercial que lhe foram úteis tempos depois, por lhe permitirem administrar a sua pequena herança e com ela levar uma vida confortável, ainda que sem luxo. Além disso, os negócios deixaram-lhe um comportamento frio, rude, altivo e participativo, que o fizeram diferente do estereótipo dos intelectuais, que geralmente são imaginados como sorumbáticos, melancólicos, introvertidos etc.
Em 1805, segundo algumas versões, seu pai cometeu suicídio e como a sua avó paterna também falecera louca, alguns estudiosos consideram que esses dois episódios trágicos poderiam ser uma das causas de sua adesão ao estilo “Pessimista”, que imperava nas Artes e na Cultura da época. Uma aproximação resultante de sua propensão genética. Tese, porém, que outra corrente de eruditos rejeita com veemência.
Contudo, independente da causa, o certo é que a sua personalidade influenciou fortemente a sua Filosofia, tanto no aspecto comportamental, quanto intelectual, pois como ele próprio dizia “se do pai herdou o temperamento difícil, foi da mãe que herdou a intelectualidade aguçada”.
Todavia, a liberalidade em pensar e em agir da mãe, que rompeu vários tabus da época, não contava com a simpatia do filho; e foi justamente essa maneira de ser, junto com a vaidade de ambos, o motivo preponderante para o rompimento entre eles, acontecido após uma áspera discussão, na qual ela chegou a agredi-lo fisicamente. A partir daí, nunca mais se viram.
Esse desamor na infância e na mocidade, certamente, cobrou-lhe um preço alto e durante o resto da vida ele rejeitou compromissos amorosos mais sérios; conservando-se solitário, amargo, repleto de manias, tiques nervosos, paranoias (como a de que seria assassinado e por isso dormia ao lado de duas pistolas carregadas; de ser degolado pelo barbeiro), obcecado pelo silêncio etc.
E à solidão, à amargura, juntou-se a frustração por não ver a sua autoproclamada genialidade ser devidamente reconhecida; o que deveria ser natural, em seu modo nada modesto de ser.
Esse conjunto de fatores negativos levou-o a interiorizar-se cada vez mais, fazendo-o egocêntrico ao extremo e distanciando-o dos assuntos de seu tempo de forma quase absoluta.
Sempre arisco a qualquer comprometimento nacionalista, fosse de caráter político ou bélico, só abriu uma exceção em 1813, quando se deixou influenciar pela arenga patriótica de Fichte, que propunha uma guerra de libertação contra Napoleão. Mas o seu entusiasmo pouco durou e ele mudou-se para a zona rural alegando que: “afinal, o Corso limitava-se a dar uma vazão concentrada e desimpedida àquela confiança em si mesmo e àquela ânsia de viver”. Aliás, deste episódio, posteriormente, ele pinçou essa observação sobre o conquistador francês, citando-o como um dos mais claros exemplos da “Vontade”, enquanto a real essência da vida.
Para muitos críticos, a tese que ele escreveu durante essa temporada no campo, “A quádrupla raiz da razão suficiente”, não prima pela originalidade, sendo, a rigor, apenas uma versão da Lei de Causa e Efeito, onde:
1) Lógica – como a determinação de conclusão a base de premissas.
2) Física – com a determinação do efeito pela causa.
3) Matemática – como a determinação da estrutura pelas Leis da Matemática e da Mecânica.
4) Moral – como a determinação da conduta pelo caráter.
E como as críticas não se esgotaram nessa obra, logo os ataques se voltaram contra “O Mundo como Vontade e Representação”, que além das censuras, nada mais recebeu, sendo relegado ao completo ostracismo, apesar dos autoelogios que Schopenhauer nunca deixou de se fazer, acreditando piamente que a sua genialidade só seria entendida pelos homens do futuro, por estar muito além das mentes “boçais” de seu tempo.
Considerações que podem parecer arrogantes, mas que se mostraram verdadeiras, pois o aplauso que tanto custou a lhe chegar é farto na atualidade, apesar das críticas que ainda enfrenta, como a que lhe fazem aqueles que afirmam que a sua obra posterior ao citado “O Mundo como Vontade e Representação” não passa de uma justificação e de uma apologia da mesma.
E o fracasso na carreira literária repetiu-se na carreira acadêmica. Após o rompimento com a mãe, ele deixou Weimar com a viva esperança de ser convidado para lecionar em uma das grandes universidades, mas esse convite só surgiu em 1822 quando ele foi chamado a ser “Privat Docent” na universidade de Berlim.
Com a excessiva autoconfiança que lhe era típica e, talvez, com certa arrogância, decidiu que as suas aulas seriam ministradas nos mesmos dias e horários que as de Hegel, o grande nome do momento, pois confiava plenamente em desbancar o grande ídolo.
Mas o seu sonho só durou até ele ver que lecionava para uma sala vazia, pois as suas aulas despertaram a mesma indiferença que os seus livros. Restou-lhe, então, demitir-se e reverberar suas criticas e ofensas ao seu odiado concorrente.
Dessa sorte, mal sucedido em ambas as searas, valeu-se da herança que o pai lhe deixara e dedicou-se integralmente a uma vida de estudos e de novas produções literárias, as quais, em certo momento começaram a ser reconhecidas e aplaudidas pelos leigos, que viam em seu ideário o avesso do indecifrável conteúdo abstrato que outros Filósofos ofereciam ao público.
Ao contrário daqueles, ele ofertava aos advogados, aos comerciantes, aos artistas e a outros membros da classe média uma gama de assuntos diretamente relacionados com a vida prática, concreta; e essa população desiludida com a Metafísica abstrata e distante de suas penúrias, aderiu em massa àquele sistema que lhe parecia inovador.
Enfim, a fama consagradora chegara ao filósofo que, apesar de seus sessenta anos de idade, não teve o menor pudor em demonstrar o gozo que experimentava pelo reconhecimento que lhe era prestado.
E foi nesse êxtase que ele viveu até que na manhã de 21 de setembro de 1860 a sua senhoria encontrou-o morto à mesa do desjejum, na pensão onde morou por mais de trinta anos, acompanhado apenas por seus cães, sendo que ao último deu o sugestivo nome de “Mundo”.
Cronologia:
1788 – nasce em 22 de Fevereiro, na cidade de Dantzig.
1807 – ingressa no Liceu de Weimar.
1813 – doutora-se pela universidade de Berlim com a tese “A quádrupla raiz do principio da Razão Suficiente”.
1816 – publicada a obra “Sobre a Visão e as Cores”.
1819 – publicada a obra “O Mundo como Vontade e Representação”.
1841 – publicada a obra “Os dois Problemas Fundamentais da Ética”.
1842 – publicada a obra “Parerga e Paralipomena”.
1860 – morre em 22 de Setembro, na cidade de Frankfurt aos 72 anos de idade.
As obras e o tópicos principais de sua filosofia
O Mundo como Ideia ou Representação.
Como se disse anteriormente, a clareza com que Schopenhauer expôs as suas concepções foi uma das razões para o sucesso que alcançou. E, com efeito, uma das primeiras qualidades que se nota no livro “O Mundo como Vontade e Representação” é a leveza no estilo com que ele redigiu o seu texto.
Ao contrário de outros, que se caracterizaram pela dificuldade de suas linguagens, ele foi coloquial, direto e pródigo em oferecer exemplos concretos do cotidiano, que facilitam a compreensão de seus argumentos e conclusões, cujo eixo, diga-se, gira em torno da ideia central de que o Mundo é a Representação Mental (ou a ideia) que fazemos dele; e que a sua essência é a Vontade (o desejar, o querer).
Uma ideia pinçada diretamente da Filosofia/Teologia Hindu – especialmente explicitada no Budismo – que outorga ao homem a plena responsabilidade por suas dores, sofrimentos e angústias, já que elas são o resultado de sua ganância desmedida, de seu apego à matéria, e do tédio que lhe sobrevém tão logo os desejos são satisfeitos, por lhe faltar conteúdo interior.
Ao endossar essa tese, Schopenhauer descartava qualquer interferência divina sobre a vida do homem, sugerindo, portanto, um ateísmo que à época soava como uma blasfêmia terrível. E isso, certamente, foi uma das causas da rejeição que o seu Pensamento despertou, haja vista que a penúria e a desesperança que campeavam na ocasião, quase que exigiam o consolo, mesmo que falacioso, de um socorro divino.
Embora a sua Filosofia fosse compreensível, clara, ordenada e aceitável para grande parte da população, ela fora maculada pelo “defeito” de negar uma ilusão.
Outro motivo para essa rejeição encontra-se no fato de que ele atacava sistematicamente aqueles indivíduos que poderiam facilitar-lhe a aprovação e granjear-lhe simpatia: os Professores universitários e os Doutores em Filosofia. A esse respeito, aliás, tornou-se célebre o seu ataque a Hegel, o “ditador intelectual”, em frases lapidares:
“Nenhum período pode ser mais desfavorável à Filosofia do que aquele no qual ela é vergonhosamente usada de forma incorreta, de um lado para favorecer objetivos políticos, e de outro, como meio de vida (...). Não haverá, então, nada para se opor à máxima ‘primeiro viver, depois filosofar’? Esses cavalheiros desejam viver e, na verdade, viver à custa da filosofia. À Filosofia se dedicam, com suas esposas e filhos (...). Nada se consegue em troca de ouro, a não ser mediocridade (...). É impossível que uma era que há vinte anos vem aplaudindo um Hegel – esse Caliban intelectual – como o maior dos Filósofos (...) faça com que alguém que tenha observado isso fique desejoso de sua aprovação”.
Em verdade, deve-se dizer que as censuras de Schopenhauer não podem ser consideradas sinceras, pois ele também ambicionava a glória, a fama e a fortuna e alguns de seus críticos mais severos chegaram a afirmar que as invectivas que ele proferia amiúde, eram fruto apenas de uma inveja vil e de um sórdido despeito pelo sucesso alheio.
Contudo, apesar da glória não ter chegado, o seu ideário havia sido colocado na cena da Filosofia e de modo paulatino as suas concepções começaram a ganhar os adeptos necessários para sobreviverem até que o reconhecimento pleno, enfim, chegasse.
Dessa sorte, amparado pela resistência que as suas teorias demonstravam em meio a tantas hostilidades, ele continuou a exercer a sua natural imodéstia e foi com ela que ele abriu o seu livro, declarando: “O Mundo é a minha ideia”.
Pouco ou nada lhe importava a opinião de alguns, já que ele considerava que a sua teoria era endossada nada menos que pelo grande Kant, um avalista inquestionável. Afinal, fora o mestre que afirmara que o mundo externo só chega ao nosso conhecimento através de nossas Sensações e Ideias.
Após essa entrada “avalizada” pela tese kantiana, ele colocou uma bem ordenada crítica ao Materialismo, que alguns estudiosos consideraram dispensável, embora reconhecessem que a mesma poderia ser útil para o público que ele buscava atingir, ou seja, os iniciantes nas lides filosóficas. De todo modo, todos reconhecem a valia dos argumentos ali contidos.
Ele inicia o capitulo com a seguinte indagação: “Como explicar a Mente como matéria, quando só conhecemos a matéria através da mente?”. Na sequência ele afirma que:
“Se tivéssemos seguido o materialismo até agora com ideias claras, quando atingíssemos o ponto mais elevado seriamos tomados de um acesso do inextinguível riso dos Olimpio. Como que acordando de um sonho, ficaríamos de imediato, cientes de que o fatal resultado – o conhecimento – que ele atingira com tanto esforço estava pressuposto como condição indispensável de seu próprio ponto de partida: pura matéria; e quando imaginávamos que pensávamos matéria, na realidade só pensávamos o sujeito que percebe a matéria: o olho que a vê, a mão que a sente, a compreensão que a conhece. Assim, o tremendo erro inicial revela-se de forma inesperada; porque subitamente se percebe que o último elo é o ponto de partida, a cadeia de um círculo (...). O Materialismo grosseiro que mesmo agora, em meados do século XIX, tem sido novamente servido na ignorante ilusão de que é original (...) estupidamente nega a força vital e, antes de tudo, tenta explicar os fenômenos da vida com base em forças físicas e químicas, e estas também com base nos efeitos mecânicos da matéria (...) mas eu nunca acreditarei que até mesmo a mais simples combinação química possa dar margem, alguma vez, a uma explicação mecânica; muito menos no caso das propriedades da luz, do calor e da eletricidade. Estas irão, sempre, exigir uma explicação dinâmica”.
De fato, é impossível solucionar os enigmas metafísicos ou revelar a essência da matéria, estudando-a primeiramente e só depois o pensamento. É imperioso que comecemos com aquilo que entendemos direta e intimamente, ou seja, nós mesmos.
Nunca se chegará à verdadeira natureza das coisas, à sua essência, partindo-se do exterior para o interior, pois, por mais que exista esforço e boa vontade, só se chegará a imagens e a nomes. Porém, se partirmos para uma investigação séria sobre a estrutura e o funcionamento da nossa mente, será possível descobrir “a coisa em si” do mundo externo.
Com esse discurso contra o Materialismo, Schopenhauer reforçou a sua tese de que o mundo é uma construção mental, uma representação que fazemos e a partir dessa consolidação ele parte para a segunda parte de sua obra, onde reafirma ser a Vontade a essência desse mundo. É o que veremos na sequência.
Antes de Schopenhauer, Spinoza havia dito na 4ª Parte de sua “Ética” que: “o desejo é a própria essência do homem”. E desde o princípio, o Hinduísmo e as suas continuações (o Budismo, o Jainismo etc.) fizeram desse mote a base de sua doutrina.
Isso colocado, o leitor (a) pode se perguntar qual será, então, a originalidade e o mérito de Schopenhauer?
Se tudo já havia sido tratado, por que lhe coube a glória de que desfruta? São dúvidas válidas e procedentes e se deve admitir que realmente não existe originalidade em seu Sistema filosófico.
Porém, o seu mérito relaciona-se ao fato de foi graças ao seu trabalho que essas ideias se tornaram acessíveis aos leigos, tornando o homem comum mais consciente de sua responsabilidade enquanto agente ativo, ao invés de ser uma mera vitima dos golpes da sorte e de uma suposta vingança divina. De certo modo, ele contribuiu para libertar o sujeito das amarras de um hipotético destino predeterminado.
Pode-se, então, dizer que foi esse resgate, essa atualização e essa ocidentalização de antigos e remotos conhecimentos que constituem a grandeza de seu ideário.
***
A quase unanimidade dos Filósofos colocou o Pensamento e a Consciência como a essência da Mente. Disso provieram os conceitos de “animal racional” e/ou “animal consciente”.
Porém, para Schopenhauer esse é um erro crasso, pois para ele a Consciência é apenas a superfície da Mente; e o Intelecto é uma mera ferramenta a serviço da Vontade, a verdadeira essência da mente, do homem e do mundo.
Uma “força vital” imperiosa, que pode ser consciente ou inconsciente.
Às vezes pode parecer que o Pensamento ou Intelecto comandam essa força, mas como bem exemplificou o filósofo é justamente o contrário, sendo a Vontade “o vigoroso homem forte, porém cego, que carrega o homem aleijado que enxerga”.
O Intelecto assume o papel de órgão de visão, de instrumento ou ferramenta, para que a Vontade chegue aonde almeja.
A rigor nós não desejamos algo porque temos motivos para lhe desejar. Nós é que fabricamos os motivos, válidos ou não, para justificarmos aquele desejo.
Chegamos até a criar filosofias, Teologias e Tratados Científicos para disfarçar os nossos desejos com o intuito de enobrecê-los, tornando-os mais aceitáveis e por isso Schopenhauer disse que o homem é o “animal metafísico”, já que é o único que procura transcender seus desejos, tentando elevá-los da esfera do simples querer.
E esse jugo da Vontade é de tal modo atuante sobre o homem que para convencê-lo de algo não basta fazer uso da boa e correta Lógica se ele “não quiser” entender e concordar.
É preciso convencer a sua “Vontade”. Fazer com que ele “queira” compreender, mesmo que para tanto seja necessário apelar para os seus interesses pessoais, os quais, aliás, são capazes até de aguçar o raciocínio dos homens menos inteligentes; e de agilizá-lo e fortalecê-lo quando existe algum tipo de ameaça ou de necessidade premente.
A dura luta diária que o homem trava por comida, sexo e descendência é a expressão mais visível desse predomínio. Dessa inelutável “vontade de viver”. E de “viver plenamente”. Nas palavras de Schopenhauer:
“Só aparentemente os homens são puxados pela frente; na realidade, são empurrados por trás. Eles pensam que são conduzidos pelo que veem, quando na verdade são levados adiante por aquilo que sentem – por instintos cujo funcionamento ignora na metade das vezes. O Intelecto é meramente o ministro das relações exteriores (sic). A natureza criou-o para servir à Vontade”.
E porque a natureza criou o Intelecto nessa condição inferior, ele é capaz de saber as coisas que interessam à Vontade, mas é incapaz de compreender a essência da mesma, tal qual um martelo que não consegue entender o que o faz chocar-se contra o prego.
A Vontade, por essas características, é o único elemento imutável da mente, pois ao contrário do Intelecto, da Memória etc. ela não se modifica em casos de distúrbios mentais, como se pode observar nos dementes que conservam integralmente os seus desejos.
É claro que a Vontade mais básica, a de viver, em certos casos pode minguar ao ponto do indivíduo cometer suicídio, mas ainda assim a Vontade se manteve inalterada, pois ele quis morrer. Exercitou, portanto, a Vontade.
E é graças a essa imutabilidade que ela dá unidade à Consciência e mantêm conectados os pensamentos, as ideias; ademais, também resulta dessa continuidade de propósitos o próprio caráter do individuo.
A esse respeito, aliás, a sabedoria popular privilegia intuitivamente o indivíduo “bom de coração” em detrimento daquele que possua uma “mente brilhante”, o qual pode até conquistar admiração, mas não o afeto que é dedicado ao outro.
O próprio corpo físico é um produto da Vontade, bastando observarmos que o sangue circula independente de qualquer reflexão, por obra daquela ânsia que chamamos de “vida” ou “impulso vital”. Ou, que a vontade de saber é o que constrói o cérebro; que é o desejo de segurar que modela as mãos etc.
Na verdade, a ação do corpo é a objetivação, a concretização do ato da Vontade e, por isso, as partes do corpo correspondem aos desejos através dos quais a mesma se manifesta. Vejamos os seguintes exemplos:
1. Os dentes, a garganta e o intestino, que servem à “fome objetivada”, isto “ao querer viver” que depende da nutrição;
2. Os orgãos reprodutores, que atendem ao “desejo sexual materializado”, ou seja, à replicação da Vida em novos indivíduos;
3. O sistema nervoso, que é o conjunto de “antenas” que capta as Vontades exteriores e emite as interiores.
Nas palavras de Schopenhauer:
“O corpo humano é a Vontade em seu aspecto geral, sendo cada organismo individual, a objetivação da Vontade Geral adaptada para aquele indivíduo”.
Assim, após demonstrar que a Vontade é a real essência do homem, Schopenhauer avançou em sua tese colocando a seguinte questão:
“E não será a Vontade, também a essência da vida em todas as suas formas e até da matéria inanimada? Não será ela a “coisa em si” kantiana?”.
É uma opção tentadora achar que sim, pois a Lógica* favorece essa aceitação.
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Em termos filosóficos, ainda não sabemos definir com precisão absoluta o que seria a “Força”, a “Gravidade”, a “Afinidade”, a “Repulsão” etc., haja vista que o nosso conhecimento sobre as mesmas, limita-se ao que nelas há de material, porque em termos de “realidade última”, de “essência”, elas continuam a serem ilustres desconhecidas.
Porém, como podemos ter algum vislumbre acerca da “Vontade”, podemos ousar dizer que ela é a cristalização daquelas e doutras forças.
O Instinto e a Vontade
Tornou-se célebre a disputa entre o discípulo Aristóteles e o mestre Platão sobre a “localização” da Ideia, enquanto modelo e essência das coisas físicas. Enquanto o mestre a situava fora do indivíduo, o discípulo insistia em sua interioridade, argumentando existir uma “Força Interna” que modela as respectivas formas nos homens, nos animais e nos vegetais.
Schopenhauer encampou a tese aristotélica ao considerar o Instinto como a expressão mais clara dessa “Força Interna” ou da Vontade. E dentro dessa linha de raciocínio, ele passou a investigar o instinto nos animais, porque neles essa força não sofre a ação redutora da racionalidade e nem a castração produzida pelo adestramento social que o homem sofre.
Nos animais seria possível observar o “Instinto” em estado puro; e, nele, a Vontade.
Esse raciocínio se adéqua às outras formas de vida, como, por exemplo, nos vegetais. Aliás, quanto mais se desce na escala biológica, mas se percebe o declínio do Intelecto, mas não o da Vontade. Nas palavras de Schopenhauer:
“Aquilo que em nós persegue seus fins à luz do conhecimento, aqui apenas luta cega e silenciosamente de maneira unilateral e imutável. Em ambos os casos, deve ser classificada sob o nome de Vontade”.
O instinto dos animais produz uma ação similar a que resulta de uma concepção racional, sem que, no entanto, tenha havido qualquer operação intelectual. Quando, por exemplo, um cão nos toca com a sua pata para que atendamos a um desejo seu, o resultado é o mesmo que aconteceria se ele tivesse planejado intelectualmente fazer isso: nós o atendemos. E de modo semelhante é o que acontece no restante da natureza, quando efeitos acontecem apenas por obra da Vontade.
E sendo a Vontade a essência da Vida, ela é, sobretudo, a Vontade de Viver, cuja perpétua inimiga é a morte; a quem, todavia, consegue superar através da “reprodução individual”, como veremos adiante.
A Vontade de Reproduzir-se.
Quando um fio de cabelo morre e se desprende da cabeça, o dono da cabeleira não sofre qualquer prejuízo, pois morreu apenas uma das formas da vida que nele havia e que será substituída adequadamente.
O mesmo acontece com a Vida em geral. Quando uma de suas manifestações falece, seja um homem, um animal ou um vegetal, em nada a afeta, tanto pela insignificância do indivíduo no contexto geral, haja vista que a sua reposição ocorrerá segundo as regras de reprodução de cada reino e espécie.
Mas, e se uma catástrofe extinguisse a totalidade da vida no planeta e até no universo conhecido?
Como o conceito “Vida” ultrapassa o universo conhecido, a sua essência, “a Vontade”, continuaria a triunfar sobre a Morte através da reprodução, que é o objetivo máximo de todo ser vivo. É o instinto mais forte que atua no homem, nos animais, nos vegetais e, provavelmente, nos “Seres” que ainda nos são desconhecidos, embora já sejam considerados, pela ciência, como existentes, ainda que apenas em forma microbiana.
E é justamente para garantir essa vitória que a Vontade de Reproduzir está acima de qualquer controle da Razão, da reflexão e, até, das conveniências sociais.
Está acima, inclusive, dos outros interesses que o indivíduo possa ter, os quais, aliás, só existem porque são facilitadores da reprodução.
A mulher, por exemplo, que se interessa em manter-se bela, inconscientemente atende aos desígnios dessa Vontade. O homem que se interessa em ficar rico e poderoso, inconscientemente, deseja apenas ter mais parceiras para se reproduzir.
Nas palavras de Schopenhauer:
“A Vontade se mostra, aqui, independente do conhecimento e funciona cegamente, como numa natureza inconsciente. (...) Devido a isso, os órgãos reprodutores são, adequadamente, o foco da Vontade e formam o polo oposto ao cérebro, que é o representante do conhecimento. (...) Eles são o principio que sustenta a vida – garantem a vida eterna; por essa razão, eram adorados pelos gregos no phallus e pelos hindus no lingam. (...) Hesíodo e Parmênides diziam, de forma muito sugestiva, que Eros é o primeiro, o criador, o principio do qual se originam todas as coisas. A relação dos sexos (...) é, na realidade, o invisível ponto central de todos os atos e condutas, e está se deixando entrever em toda parte, apesar de todos os véus lançados sobre ela. É a causa das guerras e o fim da paz; a base do que é serio e o alvo da pilhéria; a inexaurível fonte de espírito, a chave de todas as ilusões, e o significado de todas as insinuações misteriosas* (...). Nós a vemos, a todo instante, sentar-se, como a verdadeira e hereditária senhora do mundo, pela plenitude de sua própria força, no trono ancestral; e de lá, com um olhar de desdém, rir dos preparativos para confiná-la, aprisioná-la ou, pelo menos, limitá-la e, sempre que possível, mantê-la escondida, e mesmo assim dominá-la a fim de que ela só apareça como uma preocupação subordinada e secundaria da vida...”.
Os interesses da “Vontade de Reproduzir-se” são tão agudos e exigentes que precisaram ser disciplinados e disfarçados por uma série de convenções sociais, embasadas na moralidade religiosa, para que a sua satisfação não colida com as ideias plantadas por milênios de civilização.
E foi a partir dessa necessidade que o homem criou uma série de “sentimentos”, de ritos e de liturgias, visando “civilizar” o puro desejo, o instinto sexual.
A seguir veremos a questão do “Amor” e da reprodução.
O disfarce do Amor.
“O amor é a melhor eugenia” – Will Durant.
A frase acima, do ilustre filósofo e escritor estadunidense, poderá soar desagradável para os adeptos do romantismo e inaceitável para aqueles que veem no termo “eugenia” uma seleção preconceituosa e nefasta, tal como a que foi utilizada pelos nazistas no seu delírio de “raça pura”.
É óbvio, porém, que o sentido que o estadunidense lhe deu foi outro, pois, apesar de ser desagradável, a verdade inelutável, segundo Schopenhauer, é que o encontro entre dois seres é ordenado pela natureza com o fim precípuo de se conseguir a melhor reprodução possível, para que expressão de Vida (ou da Vontade) que resultar do encontro a consolide cada vez mais.
Essa tese sofreu forte rejeição à época de Schopenhauer e ainda hoje é vigorosamente repelida. Afinal, tanto o homem de ontem, quanto o de hoje, gosta de imaginar-se membro de uma espécie que se situa acima das outras e até mesmo das Leis Naturais. Agora, como antes, ampara-lhe essa jactância, o Racionalismo Materialista, o Otimismo filosófico e o Romantismo, além de instituições como a Religião. Um conjunto que lhe fornece os falaciosos argumentos com que escamoteia a sua mísera condição de ser apenas uma das espécies que formam a fauna que povoa um obscuro ponto no universo.
Mas, apesar de toda censura, Schopenhauer persistiu em sua teoria, afirmando que o “Amor”, a escolha do parceiro (a), visa inconscientemente à cria perfeita que fortalecerá a Vontade. Em suas palavras:
“Cada qual procura um companheiro que vá neutralizar seus defeitos, para que não sejam transmitidos; (...) um homem fisicamente fraco vai procurar uma mulher forte. (...) Cada qual irá considerar bonitas em outro indivíduo as perfeições que lhe faltarem; mais ainda até as imperfeições que forem opostas às suas. (...) As qualidades físicas de dois indivíduos podem ser tais, que, para o fim de restaurar tanto quanto possível o tipo da espécie, um deles será especial e perfeitamente o complemento e suplemento do outro, que, portanto, irá desejá-lo com exclusividade. (...) A profunda consciência com que consideramos e avaliamos cada parte do corpo (...), a escrupulosidade crítica com que olhamos para uma mulher que começa a nos agradar (...) o indivíduo age, aqui, sem o saber, por ordem de algo superior a ele mesmo. (...) Todo indivíduo perde a atração pelo sexo oposto na proporção em que ele ou ela se afasta do período mais indicado para gerar ou conceber: (...) juventude sem beleza ainda exerce sempre uma atração; beleza sem juventude, nenhuma. (...) Em todos os casos em que o indivíduo se apaixona (...), a única coisa visada é a produção de um indivíduo de natureza definida, o que pode ser confirmado primordialmente pelo fato de que a questão essencial não é a reciprocidade do amor, mas a posse”.
E por isso, prossegue o filósofo, nenhuma união é mais destinada ao fracasso que o chamado “casamento por amor”, pois a natura pouco se importa se os cônjuges serão felizes por toda vida ou se por minutos apenas, já que para os seus propósitos só lhe interessa a reprodução resultante do enlace.
Ainda segundo as suas concepções, o amor é uma mera fantasia criada pela mente humana para dignificar um desejo que a religião o adestrou a considerar pecaminoso e sujo.
Assim sendo, está destinado a terminar tão logo o objetivo reprodutivo tenha sido alcançado.
***
E a aqui chegados, rogo ao leitor (a) que antes de vociferar contra a “suposta insensibilidade, típica de um desajustado social e talvez sexual”, examine sem pré-conceitos as assertivas de Schopenhauer:
O primeiro ponto seria a questão da semântica, pois se substituirmos o nome “amor” por “paixão”, nós facilitaremos a concordância com os seus argumentos.
Reservemos, portanto, o termo “amor” para nomear aquelas outras afeições que podemos sentir por algo ou por alguém sem qualquer conotação sexual, embora essas mesmas afeições também sejam, a rigor, comportamentos ditados pela Vontade, haja vista que visam, ainda que inconscientemente, a manutenção da vida individual e a da espécie, com o amparo e o abrigo de amigos e familiares.
Feita essa distinção, seremos obrigados a convir que a “paixão” é, com efeito, limitada no tempo e suscetível de se romper com o avanço da rotina, das pequenas desavenças e com o acúmulo das obrigações cotidianas.
Resta como suporte aos relacionamentos, sejam eles ortodoxos ou heterodoxos, as conveniências sociais e/ou familiares e/ou financeiras, além de casos eventuais de amizade entre os cônjuges, de acomodação, de temor da solidão e até mesmo, em casos raríssimos, a manutenção daquela paixão inicial.
O Espaço, o Tempo e a Individuação
Segundo Schopenhauer, tudo que fazemos e sentimos está previamente programado; e que somos apenas mais uma das tantas expressões com que a Vontade se manifesta, ainda que possa parecer que no Espaço e no Tempo sejamos Seres independentes e separados do “Todo”.
Porém, para ele, Espaço e Tempo constituem apenas o “principio da individuação”, que divide a “Vida” em organismos distintos, surgidos em diferentes lugares e épocas.
Espaço e Tempo que são como o célebre “véu de Maya”, ou seja, a ilusão que esconde a unidade de tudo, pois, em verdade, existe apenas a “Vida” e, portanto, a “Vontade”, que é a sua essência.
A Continuidade de Tudo
Em sua obra “Conversa com Goethe”, Schopenhauer diz que “compreender claramente que o indivíduo é apenas o fenômeno e não a ‘coisa em si mesma’ e ver na constante mudança da matéria a permanência fixa da forma, é entender a essência da Filosofia”.
Na sequência ele afirma que:
“Aquele para quem os homens e todas as coisas não tenham parecido, o tempo todo, meros fantasmas ou ilusões, não tem capacidade para a Filosofia. (...) A verdadeira Filosofia da história está em perceber que em todas as intermináveis mudanças e heterogênea complexidade de eventos, é apenas o mesmíssimo ser inalterável que está diante de nós, que hoje persegue os mesmos fins que perseguia ontem e perseguirá sempre. O filósofo histórico tem, por isso, de reconhecer o caráter idêntico em todos os eventos (...) e, apesar de toda a variedade de circunstâncias especiais, de trajes, condutas e costumes, ver em toda parte a mesma Humanidade. (...) Ter lido Heródoto é, do ponto de vista filosófico, ter estudado bastante história. (...) O tempo todo e em toda parte o verdadeiro símbolo da natureza é o circulo, porque ele é o plano ou tipo de recorrência”.
A Vontade e o Determinismo
Entre tantas outras, tornou-se a célebre a sentença de Voltaire que diz: “deixaremos o mundo tão tolo e depravado quanto o encontramos”. Mas, ainda assim, gostamos de pensar que a história foi um reles preparativo para as “glórias” de nossa época.
Porém, essa ideia de progresso, tanto material quanto ético, não passa de mera estultice da nossa vaidade, pois, em essência, o homem continua a ser como sempre foi; e essa constatação nos remete para a sinistra possibilidade de que o Determinismo seja tão hegemônico, que o nosso decantado livre-arbítrio não seja nada além de uma quimera.
Em sua “Epístola 62”, o filósofo Spinoza diz que se uma pedra lançada no espaço tivesse consciência, ela certamente pensaria que estaria voando por vontade própria. Não seremos iguais a essa pedra?
Movidos por uma força que desconhecemos e iludidos que comandamos os nossos voos, não seremos tão títeres quanto todo o resto?
Para Schopenhauer, sim! Todavia, ao contrário da pedra, podemos reconhecer a força que nos impulsiona como sendo a “Vontade” e através desse conhecimento podemos buscar a felicidade que nos for possível; cônscios das limitações que o Determinismo nos permitir e de acordo com as condições impostas pela realidade do mundo, que é “Mal”.
O Mundo e o Mal
Nesse trecho o leitor (a) perceberá o maior ponto de aproximação entre o Hinduísmo e a Filosofia schopenhauriana. Na verdade, é quase que uma adaptação da ancestral sabedoria dos “sadus” indianos, ao estilo literário do Ocidente.
Não foi Schopenhauer o primeiro filosofo ocidental a levantar essa questão, pois já na Grécia clássica o assunto veio à baila através dos Cínicos* e, também, de Aristóteles*, mas, deve-se a ele a atualização do tema.
Segundo ele, se o mundo é a “Vontade (o desejo eterno e obsessivo de obter, de conquistar algo ou alguém etc.)”, consequentemente, é um mundo de sofrimentos, já que o seu regente é a constante e insaciável necessidade de possuir, de consumir, sem que nem mesmo se saiba o motivo dessa ansiedade. O desejo é infinito, mas a realização é limitada, e tal frustração é um dos pilares do constante sofrimento. Estando submetidos ao império dos desejos, nunca podemos ter a paz, já que a satisfação de uma querência abre caminho para a seguinte.
E pior, a satisfação de um desejo quase sempre acarreta um novo sofrimento, que pode ser causado pela decepção com aquilo que foi conquistado e/ou pelas exigências que o resultado obtido impõe, como, por exemplo, no caso do indivíduo que conquistou um cargo político e se sente incomodado pelos rituais a que tem que comparecer, pressionado pelas cobranças de quem o ajudou na conquista, angustiado pelas responsabilidades que passou a ter etc. E esse conjunto de frustrações, decepções e angústias levam a novos desejos, inclusive ao de poder renunciar aquilo que conseguido.
E mesmo que o resultado seja satisfatório, em pouco tempo novos desejos afloram, já que o tédio de nada desejar é tão angustiante quanto o próprio querer.
É a essência do mundo. Nada, além da Vontade, existe, realmente.
Nas palavras de Schopenhauer:
“Em cada indivíduo, a medida do sofrimento que lhe é essencial foi determinada, de uma vez por todas, pela natureza; uma medida que não pode ficar vazia nem ser cheia em excesso. (...) Se uma grande e premente preocupação nos é tirada do peito (...), imediatamente é substituída por outra, cuja matéria-prima já se encontrava lá, mas não podia ser percebida pela consciência como preocupação porque não havia lugar para ela. (...) Mas agora que há espaço, ela vem ocupar o trono”.
E além desses fatos, ainda é preciso considerar que pairam no horizonte humano as eternas ameaças das forças da natureza, como os vulcões, os furacões, as secas, as inundações etc. cujo poder inelutável é capar de arrasar em segundos as obras e as quimeras que, geralmente, custaram anos de trabalho, penosos sacrifícios e até mesmo esforços mortais.
Dessa sorte, diante de tudo isso, para Schopenhauer “o otimismo é uma zombaria amarga das desgraças do homem”.
Sendo a “Teodicéia” de Leibniz, que louva uma suposta bondade divina, uma obra cujo único mérito foi ter servido para que Voltaire escrevesse a irônica antítese da mesma em seu imortal “Cândido ou o Otimismo”, no qual, a sua fina ironia, destroi qualquer ilusão de que se “vive no melhor dos mundos”.
O Tédio
Mas a taça de sofrimentos não se esgota na “Vontade insaciável” nem na ameaça dos cataclismos, pois ainda que fosse possível satisfazer todos os desejos e afastar todos os perigos, em breve chegaria o tédio de não se ter mais o porquê de lutar para se obter algo ou alguém. Não tardaria o horror de não se ter um objetivo. O terror de se saber inútil e de se ter tanto tempo vago, que seria impossível escamotear a triste realidade de que somos absolutamente dispensáveis.
E o emergir desse novo sofrer reforça a tese de que a Vida é essencialmente “má”, porquanto tão logo cessa a angústia dos desejos insaciados e a frustração disso decorrente, sobrevém o tédio que pressiona o homem com tamanha intensidade que ele busca com a urgência do desespero desejar alguma outra coisa para escapar daquela opressão tenebrosa.
É o caso, por exemplo, do indivíduo que anseia desesperadamente aposentar-se para fugir de um trabalho e de uma rotina massacrante, mas que tão logo consegue o repouso remunerado busca, incontinenti, uma nova ocupação para fugir do tédio que obsolência acarreta (aqui não se considerou as questões financeiras por fugir do escopo do assunto).
Ou, então, o milionário que busca incessantemente aumentar a sua fortuna sem que exista qualquer necessidade ou que exerce uma série de atividades pseudos filantrópicas, culturais e semelhantes apenas para ocupar o tempo.
O fato é que não podemos fugir do que somos em essência: uma das expressões da Vontade.
A Dor e o Conhecimento
E a malignidade da Vida não diminui com o aumento do saber. Ao contrário, pois quanto mais instruído for o indivíduo, maior será o seu sofrimento.
Por outro lado, quanto mais inculto e iletrado for o sujeito, menores serão os seus desejos, mas isso não lhe isenta de sofrimento, já que as expectativas que não tem, cedem lugar para os temores supersticiosos e religiosos que derivam de sua ignorância.
Contudo, o homem de baixa intelectualidade leva a vantagem de iludir-se com mais facilidade e, com isso, contornar mais facilmente a sua dor e o seu tédio, mediante qualquer tipo de diversão grosseira e/ou pelas promessas falaciosas que a religião oferece.
Segundo Schopenhauer:
“Porque, à medida que o fenômeno da Vontade se torna mais completo, o sofrimento se torna cada vez mais aparente. Na planta ainda não há sensibilidade, não havendo, portanto, dor. Um certo grau muito pequeno de sofrimento é experimentado pelas espécies mais baixas da vida animal. (...). Ele aparece, primeiro, em alto grau, com o completo sistema nervoso dos animais vertebrados**, e sempre em grau mais elevado quanto mais a inteligência se desenvolve. Assim, na proporção que o conhecimento atinge a distinção, que a consciência ascende, a dor também aumenta e chega ao seu ponto máximo no homem. E então, outra vez, mais distintamente o homem sabe – quanto mais inteligente ele for –, mais dor ele terá; o homem dotado de gênio sofre mais do que todos os outros”.
Aqueles que são mais bem dotados intelectualmente, e por isso possuem maior acervo na memória e maior capacidade de antevisão, tem o seu sofrimento aumentado, já que as maiores dores estão nas lembranças e na antecipação dos fatos, quer pelas frustrações dos desejos não realizados, quer pelo temor de não satisfazer os futuros.
Dessa forma, não há como escapar da nefasta constatação de que a vida se resume ao eterno pêndulo de desejo insaciável e tédio avassalador, cabendo ao homem o triste papel de ser um mero joguete a serviço da Vontade.
Segundo Schopenhauer, Dante Alighieri, em sua monumental “A Divina Comédia”, conseguiu descrever brilhantemente o “Inferno”, porque lhe bastou descrever o mundo em que vivemos. Porém, quando tentou descrever o “Céu”, não pôde encontrar nenhum exemplo de paz e felicidade e, dessa sorte, o capítulo relativo não atingiu a mesma exuberância que o anterior.
Os Jovens e a Felicidade
Para Schopenhauer a ilusão da felicidade só é possível aos jovens, pois, em sua ignorância, desconhecem a alternância entre o “desejo e o tédio”. Apenas com a maturidade se percebe o peso dessa escravidão. Para o filósofo:
“A alegria e a vivacidade da juventude são devidas, em parte, ao fato de que, quando estamos subindo a montanha da vida, a morte não está visível; ela se encontra lá embaixo, no outro lado. (...) Cada dia que vivemos nos dá o mesmo tipo de sensação que o criminoso experimenta a cada passo rumo ao cadafalso”.
O Medo da Morte
E no fim, resta ao homem encontrar-se com o seu destino: a morte.
Justamente quando a experiência se consolidou e se transformou em sabedoria, o cérebro inicia o processo de degeneração e, então, até aquele tesouro que se julgava seguro, começa a perder o seu valor.
E essa perda, somada às outras por todo o corpo, reforça o medo da morte; que, se antes era apenas instintivo, passa a ser racional, ainda que essa seja a última centelha de raciocínio.
O homem comum nunca conseguiu resignar-se com a ideia de que o seu fim é absoluto e, por isso, criou inúmeras quimeras filosóficas e religiosas para se consolar. São crenças, especialmente a da imortalidade da alma, que dão a medida do horror que sente.
E diante de tamanha aflição, não é incomum que ele recorra até à demência para fugir dessa funérea perspectiva.
O Refúgio de Insanidade
A insanidade, em suas várias formas e em qualquer idade, é considerada por muitos estudiosos como uma espécie de esconderijo contra o sofrimento. E a demência senil, como um refúgio contra o medo da morte.
A chamada “loucura”, segundo muitos, surge como um eficiente meio para se evitar as recordações amargas. É uma ruptura com a dita “normalidade”, haja vista que só se pode sobreviver a certos acontecimentos, enterrando-os nos desvãos da mente.
Geralmente relutamos muito em pensar nas coisas que prejudicam os nossos interesses, ferem a nossa vaidade e interferem em nossos desejos.
Nessa relutância – ditada pela “Vontade (de que a vida prossiga)” – está o espaço necessário para que a “loucura” se instale na mente, pois certos elementos serão suprimidos do Intelecto, já que a Vontade não os suporta, e as lacunas aí surgidas serão preenchidas aleatoriamente, consolidando a insanidade.
Para Schopenhauer, é o penúltimo recurso de que se vale a Vontade para que aquela “expressão da Vida, (isto é, aquele indivíduo)”, continue a existir.
E quando esse recurso já não se mostra suficiente, é acionado o refúgio final: a morte autoinfringida.
O Suicídio
Vimos que a demência senil e a insanidade aleatória atuam como “esconderijos” contra os sofrimentos causados pela alternância de luta, frustração e tédio de que se constitui a vida.
Porém, existem circunstâncias em que esses refúgios são insuficientes e só resta ao indivíduo buscar o esconderijo derradeiro: a morte voluntária.
O suicídio é execrado em praticamente todo o Ocidente, tanto pelo aspecto religioso, quanto pelo ético.
Nas religiões ocidentais (vide nota), como o Judaísmo, por exemplo, não se hesita em tratar o falecido como um desertor execrável, um sórdido pusilânime, cujo espírito será destinado às amarguras do Inferno (Sheol) e o corpo físico aos mais remotos cantos dos cemitérios.
No aspecto ético, a pecha de covarde é automaticamente colocada no suicida e o seu gesto extremo, além da perplexidade e da dor natural aos casos fatais, causa uma série adicional de sofrimentos às suas relações familiares, profissionais, comerciais e de amizade pela culpa que pode ocasionar.
Segundo Schopenhauer, essas rejeições são o repúdio da “Vontade de Viver”, expressa pelas suas formas individuais, isto é, os homens e suas instituições.
Afinal, o “Instinto de Sobrevivência”, permeado nos indivíduos e na Sociedade, é tão imperativo que lhe soa como uma terrível insolência, qualquer ato contrário a ele.
Contudo, tal aversão não é avalizada pela “Vontade Geral”, já que para a “Essência de Tudo” a morte deliberada de uma de suas expressões, é logo compensada pelos vários nascimentos não desejados, o que torna o balanço final ainda mais positivo para si.
Por isso, se considerarmos que o suicida é um indivíduo que derrotou o “Instinto de Viver”; é preciso considerar, também, que a sua vitória foi um mero triunfo individual, pois a “Vontade” continua soberana na espécie a que aquele indivíduo pertencia.
Nas palavras de Schopenhauer:
“O suicídio, a voluntariosa destruição da existência fenomenal isolada, é um ato fútil e tolo, porque “a coisa em si mesma” – a espécie, a vida e a vontade em geral – continua inalterada por ele, assim como o arco-íris dura, por maior que seja a velocidade com que os pingos que o sustentam venham a cair”.
O “desejo constante”, a quase eterna frustração e o tédio ameaçador continuam atuantes depois da morte do indivíduo; e continuarão enquanto a Vontade dominar o homem. Não poderá haver paz nem felicidade enquanto essa mesma “Essência” não for subordinada ao Conhecimento e à Inteligência. Não haverá vitória efetiva sobre os males da vida enquanto o homem não souber “Viver com Sabedoria”.
A Sabedoria da Vida
Antes de tudo, façamos a seguinte reflexão: aqueles que são muitos ricos e/ou poderosos conseguem satisfazer inteiramente à “Vontade” e viver livre do tédio?
Não! É claro que não, pois, ainda que o dinheiro e o poder possam trazer inegável conforto e muitas facilidades, ele é impotente para vencer a “essência do homem”.
Se assim não fosse, como explicar, por exemplo, a vida do bilionário que se mata nos negócios apenas para aumentar aquilo que já lhe sobra? Apenas para cumprir o que lhe ordena a sua “Senhora”, a “Vontade insaciável”? Ou aquele outro bilionário que se entrega a hobbies extravagantes ou a meritórias ações filantrópicas apenas para fugir do tédio que a sua saciedade lhe impõe?
E muitos outros exemplos seriam possíveis. Para alguns, tantos quantos são os domingos e feriados...
Vê-se, portanto, o quanto é absurdo o desejo ganancioso pelos bens materiais que rege a vida do homem, pois se é correto lutar por boas condições e usar a “Vontade” como plataforma de impulsão para as lutas diárias; a excessiva sujeição aos ditames do “Querer” torna o homem uma simples peça na engrenagem da vida, incapaz de perceber a grandeza que existe em outras coisas que não são diretamente associadas à moeda.
A obsessão pela fortuna mostra o quão tolo é o homem que, dela, espera a libertação do jugo da “Vontade”. Tolice que se revela mais atuante nos indivíduos de intelectualidade e cultura medíocres, que veem a posse como a substituta perfeita para as outras qualidades que lhe faltam.
São pobres diabos que vivem em círculo vicioso, já que são continuamente pressionados para aumentarem suas rendas e a isso se dedicam com tal intensidade que não lhes sobre tempo nem vigor para adquirirem outras qualificações, outros saberes.
No fim, morrem sem terem aproveitado as suas posses e sem sequer suspeitarem de que não está na riqueza o caminho para a alforria e para a paz de espírito, mas sim na Sabedoria, a qual, mesmo tendo nascido por obra da “Vontade”, é a única coisa que pode dominá-la.
Nas palavras de Schopenhauer:
“O homem é ao mesmo tempo um impetuoso esforço da Vontade (cujo foco está no sistema reprodutivo) e um eterno, livre, sereno súdito do Conhecimento Puro (do qual o foco é o cérebro)”.
O inicio da independência através do “Saber” pode ser observado quando, por exemplo, o intelecto se recusa a obedecer ao comando da “Vontade”, negando-se a agir apenas por algum instinto. Ou, então, quando não fixa na mente aquilo que a “Vontade” lhe ordena; ou quando a memória se nega a atender a uma ordem de busca determinada pelo “Desejo”.
E desse inicio titubeante, o caminho vai sendo aplainado na medida em que os tratores da Sabedoria (fortalecida pela contínua aquisição de Cultura real e efetiva) agem contra o cipoal primitivo dos instintos brutos.
Depois, estando consolidado o poder da Razão, o “Desejo” se mostra moderado e modelado para servir apenas como um indispensável estímulo ao individuo e não mais como o seu algoz terrível.
Para alguns eruditos, essa teoria é apenas outra apresentação do Determinismo; e Schopenhauer não nega que seja, já que para ele o livre arbítrio estará sempre condicionado aos limites impostos pela “essência do mundo e da vida”; ou seja, a “Vontade”.
Porém, a seu ver, quando o homem compreende que tudo que lhe atinge é apenas o resultado de causas anteriores e não uma obra de sinistros azares ou terríveis desígnios divinos, ele passa de vitima a agente, já que, ao controlar os seus atos presentes, evitará resultados nocivos no futuro.
Em suas palavras:
“De dez coisas que nos perturbam, nove não teriam como fazê-lo se as compreendêssemos perfeitamente no que se referisse a suas causas, conhecendo, portanto, sua necessidade e sua verdadeira natureza. (...) Porque aquilo que a brida e o freio são para um cavalo indócil, o intelecto é para a vontade de um homem”.
Assim, dono de si, porque a Filosofia refinou-lhe a “Vontade”, o homem toma o cuidado de viver efetivamente esse aprendizado, sob a pena de voltar a se prostrar passivamente.
Cabe-lhe, também, seguir os ensinamentos dos grandes sábios, que através do despojamento dos luxos supérfluos, fortaleceram a riqueza pessoal; e buscar nos textos reconhecidamente valiosos, o recheio da mente, porque só dessa maneira é que se forma a certeza de que a paz de espírito e a felicidade possível dependem mais do conteúdo da cabeça, que do da carteira.
Com efeito, para Schopenhauer, a maneira de se fugir do mal desencadeado pelo desejo insaciável é a contemplação sábia* da vida; sendo o altruísmo sincero, o único caminho eficaz para se escapar do “Tédio”, haja vista que ao se promover o bem estar alheio, é a própria satisfação que aumenta.
Para ele:
“Quando uma causa externa ou disposição interna nos tira de repente da interminável corrente do querer, e livra o conhecimento da escravidão da Vontade, a atenção já não é mais dirigida para os motivos do querer, mas compreende as coisas livres das suas relações com a vontade e, assim, as observa sem interesse pessoal, sem subjetividade, de forma puramente objetiva – entrega-se inteiramente a elas desde que sejam ideias, mas não na medida em que sejam motivos. Então, de repente, a paz que sempre procuramos, mas que sempre nos escapou no antigo caminho dos desejos, vem até nós por sua livre vontade e para nós é bom. É o estado sem sofrimento que Epicuro considerava o maior dos bens e o estado dos deuses; porque ficamos, por enquanto, livres da infeliz luta da vontade; respeitamos o Sabath da pena de trabalhos forçados do querer; a roda de Ixíon fica parada”.
O Indivíduo Genial
Neste capitulo Schopenhauer aborda com muita propriedade os indivíduos que se situam acima da média e que por isso chocam os demais por apresentarem um comportamento inusual, que, geralmente, é classificado pejorativamente como “estranho”, “maluco”, “tolo”, etc.
Afinal, para o homem comum, mero escravo da Vontade e vitima do Tédio, como seria possível compreender um indivíduo que paira acima dessas cadeias?
Como poderia entender, por exemplo, um indivíduo como o príncipe indiano chamado Sidharta (posteriormente classificado como um Buda, isto é, como um “Iluminado”) que num belo dia abandona os luxos de sua vida nababesca para encontrar a paz interior no seio do despojamento?
Nesse contexto, “Gênio” não é o cientista brilhante, a soprano divina, o maratonista de escol, o biliardário que faz fortunas imensas e outros tipos que normalmente são associados ao sucesso e à felicidade. Aqui, genial é o indivíduo que detém o nível mais alto de Sabedoria.
Não é preciso muito esforço para observar que quanto mais baixa for a forma de vida, mais ela é regida pela “Vontade”. Entre os seres humanos não é diferente, pois quanto mais embrutecido for o indivíduo, mais ele se sujeita à escravidão dos “Desejos”, buscando desesperadamente a posse; pois, apesar de sua rudeza, consegue intuir que só existe para os outros, por ter fortuna ou poder e não por ser uma pessoa que possa ser querida, estimada, amada.
Infelizmente, a maioria da humanidade é composta por pessoas desse naipe; distantes do que disse Schopenhauer sobre os sujeitos excepcionais: “o gênio consiste no seguinte: a faculdade de Saber recebeu um desenvolvimento consideravelmente maior do que o serviço da Vontade exige”.
Segundo o filósofo, para que esse tipo de Sabedoria aconteça, é imperioso que haja uma transferência da força despendida na atividade reprodutora para o exercício intelectual, já que a reprodução é onde a “Vontade” se manifesta com maior intensidade, porque só através da mesma é que ela consegue vencer a sua inimiga perpétua, a morte. Nesse ponto, aliás, é possível citar um exemplo que embora peque por ser extremado, presta-se muito satisfatório como ilustração: “alguns indivíduos são tão acossados pelo instinto sexual que são capazes de cometerem estupros e outras violências sem qualquer peso na consciência, mas são incapazes de sentirem ou de despertarem uma afeição sincera, porque as suas sensibilidades perderam-se ante a dominância da Vontade que os subjuga”.
Ainda sobre essa questão, Schopenhauer afirma que este é o motivo da aversão que geralmente existe entre o indivíduo dotado de gênio e a mulher, já que para ele, o gênero feminino representa a reprodução e a submissão do intelecto à Vontade (de viver) e de fazer viver.
Para elas, tudo é subjetivo, pessoal e considerado como um simples meio para fins pessoais.
Óbvio que essa visão negativa que o filósofo tinha sobre o universo feminino não se escora na realidade dos fatos. Também é óbvio que foi fortemente influenciada por sua péssima relação com a mãe.
Contudo, sem qualquer intuito discriminatório ou chauvinista, deve-se admitir que a atenção dada pela mulher comum aos aspectos materiais (expressa, por exemplo, pela característica vaidade feminina), é um elemento que apoia parcialmente a afirmativa do filósofo.
O “gênio”, já libertado das imposições da “Vontade”, pode ver o objeto (as coisas, os fatos, os Seres) em sua real dimensão, como se o seu pensamento fosse um raio de sol que atravessa uma nuvem, deixando para trás a mera aparência, a casca, e avançando até a essência, a realidade última daquele fenômeno.
É o que acontece, por exemplo, com os grandes pintores que veem nas pessoas que retratam, não só as suas características individuais, mas, também, aquilo de universal, de real, de permanente que nelas existem. O gênio percebe clara e imparcialmente aquilo que é objetivo, ou seja, essencial.
E é esse afastamento do prisma subjetivo, pessoal, que faz o indivíduo genial ser mal adaptado ao mundo dos homens comuns, governados pela “Vontade”.
Não é falso o estereotipo do “gênio” que por mirar uma estrela cai numa poça de lama. Afinal, por enxergar mais longe, ele não consegue ver aquilo que o rodeia, dando margem para que lhe apliquem os adjetivos que expusemos anteriormente e para que o seu isolamento se consume.
A sua atenção se fixa na essência, no fundamental, no eterno, no universal; enquanto que a da grande massa, atenta apenas para o superficial, específico, temporário etc.
São dois tipos de mentes totalmente diferentes, sem nenhuma área em comum que possibilite a simpatia mutua. Quando muito, existe certa tolerância dos homens vulgares, talvez acrescida de uma admiração cerimoniosa; e a condescendência do erudito para com a ignorância daqueles.
Segundo Schopenhauer:
“Em geral o homem só é sociável na medida em que for intelectualmente pobre e ordinariamente vulgar”.
O homem dotado de genialidade não se ressente da exclusão social (não raro a prefere), porque ele não depende da companhia de terceiros, como ocorre com as pessoas comuns. A riqueza de sua vida interior satisfaz as suas necessidades.
Segundo o filósofo:
“O prazer que ele recebe de toda a beleza, o consolo que a Arte proporciona, o entusiasmo do artista (...) habilitam-no a esquecer as preocupações da vida e o recompensam pelo sofrimento que aumenta em proporção à clareza da consciência e pela sua solidão desértica entre uma raça diferente de homens”.
Contudo, a dor que ele sente é mais intensa, por enxergar com mais clareza as atrocidades da vida. E isto, em alguns casos, pode fazer com que leve uma vida melancólica, cujo paroxismo pode chegar a extremos, como a insanidade ou o suicídio, conforme aconteceu com o poeta Byron, o escritor Rousseau e tantos outros.
Todavia, apesar desses aspectos sombrios, é forçoso admitir que nos “homens de gênio” está o exemplo a ser seguido para que a humanidade consiga alçar o voo esperado.
A Arte
A princípio, pode parecer uma pergunta tola, mas, afinal, para que serve a Arte?
Muitos responderão que serve para “elevar o espírito”.
É uma resposta clássica e quase sempre oriunda da pura intuição, pois, a Arte efetiva (que não deve ser confundida com seus indigentes arremedos*), quase nunca está presente na rotina automatizada do homem comum. Outros, com alguma cultura a mais, responderão mais detalhadamente, dizendo que a sua serventia é a de manter em nossa mente a lembrança (ou as reminiscências) do “Mundo das Ideias (do qual tudo foi copiado)”, revelado por Platão.
Mas, não obstante a serventia que lhe seja atribuída, a Arte é o único componente da sociedade humana que pode justificar a nossa pretensão de sermos uma “espécie superior”, embora, como dissemos, a sua apreciação e difusão esteja restrita a poucos.
Schopenhauer, dentre os vários Filósofos que se ocuparam do tema, afirmou que a sua função é a de nos libertar da escravidão dos “Desejos”; do jugo inexorável da “Vontade”; do querer egoísta de bens materiais e do horror tenebroso do “Tédio”, que sobrevém à satisfação da tirana vontade.
Para ele, a contemplação da “Verdade (da essência)” que está incrustada em todo objeto artístico, é a única coisa que nos liberta do “Querer”, pois só quando se admira um quadro, uma escultura, uma sinfonia, um poema, um romance etc. é que cessa o “Desejo” e o “Tédio”.
Apenas quando desfrutamos desses êxtases é que conseguimos voar para outras dimensões que sequer imaginávamos existir.
Sabe-se que a Ciência visa o individual, o especifico, em suas múltiplas formas; enquanto que a Arte visa o universal que está oculto naquele individual.
Busca contar e cantar um sentimento que seja sentido de forma semelhante por todos, ainda que resguardadas as individualidades.
A obra de arte, na verdade, obtém mais sucesso quanto maior for a sua proximidade com a Universalidade ou Generalidade do elemento que expõe. O célebre sorriso da Monalisa de Leonardo da Vinci demonstra sobejamente essa constatação.
Por isso, para muitos, a Arte é superior à Ciência, cujo progresso acontece através do acúmulo de informações intelectuais; enquanto que a Arte atinge a sua finalidade de um modo direto e imediato, por intermédio da Intuição ou das Reminiscências, que Platão afirmou.
Se para a Ciência bastam o esforço e algum talento, para a Arte é imperioso que exista a genialidade, a qual, no entanto, não fica restrita ao artista executor, sendo, também, um requisito indispensável para quem degusta o objeto artístico.
O encontro entre o gênio que produz e o indivíduo genial que aprecia a obra artística é o que proporciona a beleza da mesma, seja ela avistada dentro de um palácio ou de um casebre.
E dentro desse contexto, até os acontecimentos trágicos ganham outra dimensão, como se observa, por exemplo, em “Guernica” do genial Pablo Picasso. Ante o horror da cidade bombardeada (durante a Guerra Civil Espanhola), ergue-se a trágica beleza pintada pelo Mestre, como uma reafirmação de que nem toda a humanidade é composta por aquelas feras que se esfacelam.
A Arte levanta-se como um grito de que sempre haverá uma esperança. E, de alguma maneira, suaviza a fealdade da vida e a servidão a que o homem está submetido.
Segundo Schopenhauer, o poder que a Arte possui está mais explícito na Música, já que ela não é como as outras expressões artísticas que são cópias de uma Ideia (platônica).
A Música, ao contrário, é cópia da própria Vontade, mostrando-a em seu eterno movimento, em sua luta perpétua, vagando sem nunca sossegar.
E também difere das demais, porque não se refere às sombras, aos reflexos (também no sentido platônico), já que fala de si mesma e afeta diretamente os nossos sentimentos; ao contrário do que acontece, por exemplo, quando contemplamos um quadro, uma escultura, um texto etc. e precisamos construir idealizações a partir daquele estímulo.
Na sequência veremos a proximidade que Schopenhauer encontrou entre o êxtase propiciado pela contemplação de obras de Arte e o êxtase religioso.
O Êxtase Religioso
Schopenhauer teve pouquíssimo contato com a religião durante a maior parte de sua vida. Em consequência, a sua relação com a igreja e com o clero resumia-se a uma ácida censura ao dogmatismo da doutrina e ao parasitismo dos religiosos.
Tornou-se célebre, aliás, a sua afirmação de que “nos teólogos, encontramos, em muitas nações, o poste em são amarrados os condenados a serem queimados vivos”. Posteriormente, disse que a religião seria uma “reles metafísica das massas”.
Contudo, ao chegar à maturidade avançada, a sua visão crítica abrandou-se e ele passou a ver certa semelhança entre o êxtase propiciado pelas Artes e aquele proporcionado pela prática religiosa.
A partir de então, admitiu haver um sentido mais profundo nos rituais eclesiásticos e começou a desenvolver estudos sobre o tema, concluindo, por fim, que a Religião Cristã nada mais é que o “Pessimismo Filosófico”, já que preconiza a “negação da vida (física, dos prazeres etc.)” em prol da “salvação futura”; em clara concordância com a sua fonte original, o Hinduísmo e suas derivações, o Budismo e o Jainismo.
Porém, é importante observar que a religião hindu não avaliza a hipocrisia do Cristianismo e nem se utiliza de eufemismo e subterfúgios para expor as suas teses, admitindo inclusive o suicídio por inanição como forma de libertação, já que o fim do corpo físico libertaria a Alma do jugo da “Vontade”. O Hinduísmo, suas derivações e as outras religiões orientais interpretam a vida e o mundo de modo mais limpo e honesto, ao contrário do Cristianismo que escolheu um indivíduo apenas (Jesus) para “negar a vida”, ao resignar-se a morrer crucificado. E, graças a essa lisura, podem conviver pacificamente com a certeza de que a individualidade é uma tola ilusão, já que, em verdade, “tudo é um”. O “Paraíso” nada mais que o “Estado de Nirvana” que foi conquistado através da máxima redução dos “desejos” descabidos; enquanto o “Inferno” é o oposto, isto é, o paroxismo da escravidão à “Vontade” e ao “Tédio”.
Contudo, diferenças a parte, para Schopenhauer, todas as formas da Religião podem levar o homem crédulo ao êxtase, sem que ele tenha qualquer fagulha de genialidade, ao inverso do que acontece com a Arte. É necessário, apenas, que acredite em algo ou em Alguém para transcender (ou ultrapassar) seus toscos limites habituais.
Desse modo, Schopenhauer resgatou aquele que talvez tenha sido o objetivo original do sentimento religioso, isto é, fazer o homem compreender que os desejos exagerados e egoístas são a causa de sua infelicidade perene.
A Sobrevida da Espécie
Também nesse trecho, Schopenhauer lança severas críticas às mulheres. Como já se disse a sua misoginia teve inicio na conturbada relação com a mãe e prosseguiu graças aos seus insucessos no campo amoroso.
Obviamente que suas opiniões não encontram acolhida no autor, que por uma questão de honestidade literária decidiu mantê-las para não ferir a linha de raciocínio do filósofo. Conto com a compreensão das amáveis leitoras.
Vimos que a escravidão do “Desejo” e do “Tédio” pode ser vencida pelo indivíduo através dos êxtases proporcionados pela contemplação e degustação dos objetos artísticos e por algumas práticas religiosas.
Porém, essa libertação só ocorre individualmente, pessoa por pessoa, pois a “Vida” vai além do homem, quer por intermédio de sua própria descendência, quer pela descendência alheia.
A “Vida”, isto é, a “Vontade”, pode ser vista como um sistema de infindáveis regatos, cuja seca de um logo é compensada pelo aparecimento de outro.
Portanto, como o gênero humano, no geral, poderia ser libertado?
Haveria meios de se chegar a um “Nirvana” para a espécie?
Segundo Schopenhauer, sim!
Mas, para que houvesse e para que a “Vontade” fosse aniquilada ou reduzida ao nível desejável, seria preciso que a Morte não fosse compensada por novos nascimentos.
Seria imperioso que o indivíduo morto, não fosse substituído por outrem. Seria preciso, ao cabo, que a humanidade se abstivesse do sexo e da reprodução.
Para o filósofo, uma medida radical e impossível de ser concretizada por culpa exclusiva da mulher, já que os seus encantos despertam instintos masculinos que superam qualquer racionalidade. Encantos, que elas utilizam para gerarem as crias que lhes garantirão o sustento futuro, quando os seus encantos femininos terminarem com a chegada da velhice.
A juventude masculina não compreende como esses encantos são breves e maquiavelicamente utilizados. E quanto lhes chega a maturidade, e com ela a sabedoria, a procriação indevida já aconteceu.
Os rapazes que escrevem poemas às suas Musas, dificilmente as olhariam se elas tivessem nascido dezoito anos antes.
Nas palavras de Schopenhauer, em sua obra Ensaio sobre as Mulheres:
“Com as moças, a Natureza parece ter tido em vista o que, na linguagem do teatro, é chamado de efeito de impacto; uma vez que durante alguns anos, ela as dota de uma abundância de beleza e é pródiga na distribuição de encantos, à custa de todo o resto da vida delas, para que durante aqueles anos elas possam captar a simpatia de algum homem a ponto de fazer com que ele se apresse a assumir o honrado dever de cuidar delas (...) enquanto viverem – um passo para o qual não pareceria haver uma justificativa suficiente, se ao menos a Razão dirigisse os pensamentos do homem. (...) Aqui, como em outra parte qualquer, a Natureza age com a economia usual; porque assim como a fêmea das formigas depois da fecundação perde as asas, que então são supérfluas, ou mais, um perigo para a atividade reprodutora, a mulher, depois de dar à luz um ou mais filhos, em geral perde a beleza; provavelmente, mesmo, por idênticas razões”.
Para o filósofo, a veneração à mulher não é natural, sendo, na verdade, apenas uma convenção oriunda do Cristianismo e do Romantismo. Porém, mesmo nessas origens, a veneração é obliqua, pois o que se nota é que no primeiro caso o que se louva é a mulher virgem, intocada e, portanto, não geradora de outro individuo; e no segundo, louva-se o amor platônico, dissociado do sexo. Por isso, estariam certos os orientais ao não reconhecerem a igualdade entre os gêneros, tratando as mulheres como seres inferiores (sic).
Dessa sorte e graças à manipulação feita pela “Vontade”, seria quimérico acreditar em uma libertação da espécie humana.
A condição natural do homem é a servidão. Somos apenas as peças de uma engrenagem e é essa condição que modela o “Pessimismo Filosófico” schopenhauriano, cujas cores sombrias foram adotadas e adaptadas por outras correntes, das quais, destaca-se o Existencialismo do século XX.
Na sequência, findando o capitulo sobre Schopenhauer, faremos uma breve reflexão de seu Pensamento.
Considerações finais sobre Schopenhauer
Não é errado supor que o Pensamento de Schopenhauer – tanto por seu conjunto, quanto por partes isoladas – cause rejeição na maioria.
Mas, também não é equivocado pensar, que a maior causa dessa antipatia provenha do fato de que ele expõe de maneira crua a mais pura verdade. E a verdade nos machuca.
Principalmente, porque lutamos todos os minutos de nossas vidas para ocultá-la, para esquecê-la, ainda que para isso tenhamos que criar uma série infinita de artifícios.
A verdade nos machuca, pois a cada emersão da mesma, ela nos desnuda das quimeras e fantasias que tecemos, na tentativa de encontrar algum sentido para a nossa existência.
Machuca-nos, por mostrar que tudo que fazemos, na verdade, é apenas uma repetição do que fez o lendário Sísifo*; e que somos, apenas, uma peça descartável de uma enorme engrenagem, que não conseguimos compreender.
É claro que existem bons momentos. Horas e situações felizes. Fatos agradáveis. Mas, como discordar de Schopenhauer quando ele afirma que a Vida é uma luta constante e, portanto, um sofrimento contínuo?
Como negar que somos movidos apenas pelo “Eterno Querer”? Que somos atormentados pelo “Tédio”, quando a “Vontade” é satisfeita?
Não! Não há como discordar.
Quando Schopenhauer trouxe à luz o seu Sistema, estava, é certo, destilando as suas frustrações pessoais, mas também estava resgatando as antigas doutrinas do Oriente, cujo cerne está na aceitação resignada de que a “Vontade” da natureza é muito mais poderosa que a do homem.
E a ressaca produzida pelas guerras napoleônicas, concretizada na enorme quantidade de mortos, feridos, inválidos e desabrigados; bem como na penúria geral, na miséria e na fome que delas também resultaram, fez o cenário adequado para que o “Pessimismo Filosófico” fosse aceito prontamente. Aquele meio ambiente devastado era a reprodução exata do animo dos homens sobreviventes.
Mas, e agora? Esse “Pessimismo” ainda se justificaria?
Afinal, vivemos a época do avanço tecnológico, da saciedade alimentar (em alguns casos até excessiva, como bem demonstram os obesos), da cura de doenças fatais, do crescimento da expectativa de vida e, até, do crescente progresso na conscientização ética com as lutas contra a homofobia, contra a misoginia, contra a discriminação étnica etc.
E, no entanto, o “Pessimismo” ainda se justifica pelo simples fato de que o homem continua a ser o que sempre foi. Todas as mudanças citadas não foram capazes de lhe alterar a essência, já que tais câmbios só acontecem na superfície.
Basta que “as câmeras de TV” deixem de filmar e o indivíduo volta à sua condição original.
Exemplos da continuidade do racismo são comuns; das discriminações sexuais e sociais, idem; o apego ao materialismo cresceu ao ponto de não se evitar (e talvez nem se condenar intimamente) as falcatruas que forem necessárias para se enriquecer; a desagregação comunitária e familiar é patente e vários outros exemplos demonstram à exaustão que nada foi alterado, ainda que a maquiagem tenha sido retocada.
Talvez, um dia, o “Pessimismo” possa ser vencido, pois quando olhamos o “Desejo”, a “Vontade”, com outros olhos, nós podemos ver que nele (a) reside a força motriz que faz o homem progredir.
E, por este prisma, somos tentados a pensar que bastaria ao homem canalizar esse poder para inverter o eixo da questão, deixando de ser escravo para se tornar o “Senhor da Vontade”.
Um longo e árduo caminho, em terreno pantanoso e sem sinais indicativos do certo e do errado.
Mas, exercitando a esperança, não se deve desacreditar no que disse o erudito:
Caminhante, caminho não há. O caminho se faz ao caminhar.