Revelando o poder
Os primórdios
A palavra “poder” tem sido utilizada há séculos como substantivo, materializando, de algum modo, o que deveria ser uma relação. A expressão “o poder corrompe” é antiga e consagrada pelo uso, sugere a existência de algo real, de uma coisa, de algo mais que uma mera relação.
Recentemente, essa coisa parece ter adquirido uns contornos mais palpáveis, talvez logo ganhe algum tipo de face. Penso ter vislumbrado o bicho, uma criatura quase palpável, tentarei explicar.
Se buscarmos as origens do poder talvez as encontremos até em vegetais, ao notar, por exemplo, que certas plantas se estendem acima de outras, roubando-lhes a luz que talvez devesse ser delas, embora tal constatação possa parecer duvidosa. Com relação aos animais, no entanto, podemos ver indícios bem claros de um poder incipiente, e o demarcamos quando utilizamos expressões como “macho dominante” para nos referir a indivíduos que impõem suas vontades sobre as de outros indivíduos.
Mas, mesmo podendo aplicar com certa clareza o conceito de poder a muitas espécies de animais, foi a humanidade que alimentou esse monstro, engordando-o, fazendo-o crescer desmesuradamente, transformando-o na criatura gigantesca que agora abarca e ameaça todo o planeta. Vejamos como isso se deu.*
*Talvez exista alguma formulação termodinâmica que associe o poder ao aumento da ordem local, interior a um dado sistema, e correspondente ampliação da desordem exterior a ele. Tal formulação corresponderá à generalização do conceito, e sua aplicação a sistemas inanimados.
Nossos antepassados viviam em bandos, como os chimpanzés, os gorilas, e muitos outros animais que se agrupam por diversos motivos, e nos assemelhávamos a todos eles. Estou a me referir a um tempo em que ainda não nos havíamos diferenciado de outros, a ponto de nos termos tornado criaturas ímpares, destacadas de todas as outras.
Então, de alguma maneira, inventamos a fala. De algum modo, a semente de nossa comunicação germinou em algum bando pré-humano.
Atentemos para as duas formulações acima, a tradicional, que descreve a linguagem como algo criado por nós, e a outra, descrevendo a linguagem como algo autônomo que encontra em nós um terreno fértil para se desenvolver. Penso que ambas as visões sejam esclarecedoras; acompanhemos as duas, tentando manter o foco em algo meio difuso, em um embrião cujo desenvolvimento pretendo mostrar.
Uma comparação necessária
Pulsos elétricos percorrem os circuitos dos computadores, sinais muito simples, “petelecos eletrônicos”, bits. Toda a complexa rede de eventos que ocorre em um computador, toda a sua atividade, corresponde a um conjunto de pulsos elementares. O que difere esse conjunto de uma balbúrdia eletrônica qualquer é sua organização. Assim, aquilo que ocorre no computador tem certa analogia com uma renda composta por um fio de linha sempre idêntico a si mesmo, sendo o tecido fruto do entrelaçamento, da organização do sistema. Também um texto corresponde a uma organização de letras, espaços, vírgulas e demais sinais gráficos, e assim como qualquer livro pode ser escrito com esses poucos sinais, todos os textos, áudios, vídeos e demais ocorrências em um computador correspondem a um conjunto de petelecos eletrônicos elementares disparados de um circuito a outro. Toda a complexidade existente em um computador, toda a magia com que podemos nos deslumbrar em sua tela, corresponde, tão somente, a uma enorme organização de pulsos elementares, de bits de um único tipo.
Compreendemos muito esmiuçadamente tudo o que ocorre no interior dos computadores, artefatos construídos por nós.
Até poucos anos atrás, o funcionamento do cérebro nos parecia completamente enigmático. Quase nada compreendíamos sobre nossos pensamentos, suas fontes, suas origens. A analogia com computadores, circuitos que conhecemos tão precisamente, nos deu uma enorme luz sobre o funcionamento do cérebro, revelando o fato de que neurônios de funcionamento muito simples, a exemplo dos circuitos elementares em um computador, poderiam, em conjunto, constituir um cérebro com o funcionamento extremamente complexo que sabemos que ele possui. A utilização de pulsos elétricos pelo cérebro sugere uma analogia bem próxima entre cérebros e computadores. (Certos preconceitos tolos relativos a essa comparação devem ter atrasado consideravelmente nossa compreensão dos fenômenos mentais. Confesso, eu mesmo, ter tido fortes pudores impedindo me libertar, anteriormente, desse preconceito).
Tanto nos cérebros, quanto nos computadores, é possível acompanhar o conjunto de pulsos elétricos que compõem suas atividades: os pensamentos e emoções, em um caso, os resultados da execução de programas, em outro. Se grafarmos os sinais elétricos ocorridos durante as atividades mentais ou do computador, trocando-os por sinais luminosos, obtemos uma representação gráfica de cada uma dessas atividade. Podemos obter assim uma representação gráfica da atividade mental, traçando linhas luminosas entre os pontos delimitados por cada atividade neuronal, ou o análogo a isso, relativo à atividade eletrônica no computador. Em ambos os casos, a representação visual localiza e revela algo ocorrendo em um local determinado, forte indício da presença de uma “coisa”. Dado que pensamentos distintos têm representações distintas, haverá certa propriedade em se referir a uma dada representação gráfica assim obtida e dizer: esse é o pensamento A, significando ser aquela a representação do pensamento em questão.
Uma breve digressão antes de retornar ao tema
Retornemos aos nossos ancestrais remotos que recém haviam adquirido a linguagem. Sabemos que tais criaturas já possuíam a capacidade da fala desenvolvida em alto grau, mesmo que nenhum deles falasse. Não fosse assim, a semente teria caído em solo infértil. Nenhum cachorro aprendeu a falar, nenhum gato, nenhum cavalo. Todos eles são capazes de distinguir alguns comandos, de compreender umas palavras esparsas. Nenhum, no entanto, apreende nossa gramática, peculiaridade intrínsecamente humana, a surpreendente sacada de Noam Chomsky. Crianças aprendem a falar porque compartilham o mesmo arcabouço linguístico pré-implantado em nós, as mesmas hipóteses restritivas, e só elas, que permitem que nos compreendamos uns aos outros, que nos colocam em um mesmo contexto. Aos animais não falta a inteligência necessária para falar, falta-lhes a restrição humana que nos coloca a todos sempre no contexto humano. É a ausência do contexto humano que os impede de falar, o mesmo ainda acontece com as máquinas. Elas falarão conosco quando dominarem uma infinidade de contextos possíveis, entre eles o nosso. “Infinidade” é algo realmente grande. Somos pouco interessantes e as máquinas terão pouco interesse em nossas lamúrias.
De volta ao tema: a formação da rede
Quando nossos antepassados começaram a falar estavam iniciando a “tessitura” do que acabou se tornando uma imensa rede, ou teia. Acompanhemos esse texto tendo em mente a metáfora de uma rede sendo tecida; imaginemos cada conversa como um fio conectando ambos os interlocutores. O resultado corresponderá a uma imagem similar à dos impulsos elétricos grafados no cérebro, ou no computador.
Os primeiros falantes tiveram que restringir sua comunicação ao interior do próprio grupo, mas podemos presumir que a rede incipiente lhes permitiu um amplo sucesso levando-os a disseminar sua invenção por todo o planeta. Acredita-se que a fala permitia uma maior conexão durante a caça, fato que teria favorecido os falantes. Creio que tal consideração tenha sido irrelevante. Penso que a grande vantagem propiciada pela fala tenha sido a capacidade de reter e disseminar novidades.
Suspeito que inúmeras espécies animais possuam um enorme poder criativo. Nenhuma delas, no entanto, tem a capacidade de reter suas invenções, ou a têm apenas em grau incipiente, de modo que todas as manifestações de engenho dos animais acabam perdidas em uma, ou poucas gerações, de maneira que os animais acabam não disseminando algo comparável à rica cultura humana, esse conjunto agora imenso que vamos acumulando através das gerações.
Acompanhemos a tecelagem da rede incipiente imaginando fios ligando interlocutores durante cada conversa. É essa rede que crescerá e se tornará o imenso leviatã prestes a nos engolir,
A expansão da rede
A fala permitiu ao grupo acumular as descobertas. Qualquer novidade podia ser disseminada a todo o bando, e perpetuada ao longo das gerações. Favorecido pela aquisição da capacidade de acúmulo cultural, o bando cresceu, e se dividiu em dois grupos irmãos, conectados pela linguagem. Nesse instante, a rede humana, se duplica, mantendo um fio de conexão entre dois emaranhados distintos.
A possibilidade de ajuda mútua entre os dois grupos deve tê-los tornado campeões em todas as atividades da época. A possibilidade de auxílio contra ameaças comuns aos 2 bandos, como feras, ou bandos rivais, certamente favoreceu o crescimento desses grupos. Eram as primeiras conquistas do poder; conectados pela rede, os grupos podiam se aliar para expandir seus territórios, enfrentando bandos rivais, sempre em vantagem numérica, além da vantagem cultural.
A situação sugere a rápida expansão dos falantes, e de seu poder. A possibilidade de contar com a ajuda de outros bandos impunha a hegemonia dos falantes frente a toda a vizinhança, expulsando-os todos, usurpando-lhes seus territórios.
Observemos novamente a rede em desenvolvimento. Em poucas gerações ela se multiplicou gerando vária teias correspondentes, cada uma delas, às conversas entre os grupos, conectadas, umas às outras, através de fios relativamente tênues, mas persistentes. O crescimento da coisa era claro e consistente. Tinha-se assim, pela primeira vez, a formação de um povo. É provável que esse povo original se comportasse, logo, de uma maneira “elitista” frente aos bárbaros não-falantes. Imagine o desconforto de um falante convivendo entre os não-falantes. A linguagem deve ter introduzido, de imediato, uma forte segregação do novo grupo. Falantes deveriam ter uma franca preferência por cônjuges também falantes.
A rede se espalhou de maneira avassaladora, dominando rapidamente todo o bioma, a região coberta pelo mesmo tipo de vegetação; alastrou-se por toda a região familiar à rede e aos falantes. Os vários grupos permaneciam ligados por fios, todos conectados pela linguagem comum. A rede permitia trocas de todos os tipos, a cultura humana incipiente florescia. Os falantes enriqueciam, acumulando cultura e objetos decorrentes do conhecimento acumulado.
Alguns grupos acabaram desgarrando do contingente original, provavelmente a África. Atravessaram regiões inóspitas para chegar em terras acolhedoras.
A cisão
Obstáculos geográficos diversos isolaram certos conjuntos de bandos, promovendo a diversidade cultural e linguística. Desconectados, uns dos outros, os diversos grupos seguiam desenvolvendo cultura e língua próprias, gerando, desse modo, barreiras linguísticas e culturais impeditivas de intercâmbio entre eles. Ocorreu a fragmentação da rede, sua multiplicação.
A situação é análoga à reprodução de um indivíduo: a rede gera seus filhotes.
Nesse momento, devemos representar não mais uma única rede, mas um conjunto delas, com conexões raras e tênues.
Eventualmente, povos diferentes se reencontravam em territórios vizinhos. Somos tentados a supor, conhecendo a humanidade, que as diversas culturas se antagonizassem, que implicassem umas com as outras. Suspeito, no entanto, que essa característica de tipo imperialista tenha contaminado a rede posteriormente. De qualquer forma a barreira linguística dificultava a interação entre os grupos.
Vírus culturais, o imperialismo
A analogia da linguagem com um software de computador é bastante esclarecedora. Costumamos acreditar que características culturais “superiores” se impõem sobre as inferiores, um ponto de vista dado pelo poder. Muitas das características que consideramos superiores equivalem a vírus de computador, programas “superiores” a outros na capacidade de se difundir.
A xenofobia, por exemplo, uma vez surgida, tende a se alastrar entre os grupos, ao “imunizar” a cultura contra a aquisição de características exóticas. O encontro entre uma cultura xenófoba e outra tende a resultar em cultura similar à xenófoba, dada a aquisição unilateral de características culturais.
É quase certo que características desse tipo venham se impondo em todas as nossas culturas, tendo sido valorizadas pelo fato de se impor. Muitas dessas seriam mais propriamente descritas como infecções; um tipo infectado parece impor-se a outro, moldando-o à sua semelhança, quando, de fato, é a infecção que se impõe. A sociedade contemporânea, por exemplo, vampirizou todas as outras culturas, ou melhor, é o produto do caldo resultante da contaminação de todos os parasitas culturais. Consiste nisso, fundamentalmente, a superioridade da cultura ocidental sobre outras (atente a esse ponto, voltarei a ele).
De um modo ou outro, as culturas colonizadoras, ou vampiras, reconectaram redes disjuntas através da forma de parasitismo intraespecífico denominada “colonialismo”. Tudo o que temos chamado “exploração” corresponde a alguma forma de parasitismo.
Também tiveram importância nesse estágio do crescimento da rede os comerciantes, indivíduos, ou grupos capazes de conectar redes humanas disjuntas.
Representemos, nesse ponto, a rede humana, como um conjunto de redes, correspondentes aos vários povos, às várias línguas, conectados por relações de comércio e de dominação. A rede ia recuperando sua unidade.
O crescimento contínuo da rede
Desde longa data, o desenvolvimento de artefatos vem ampliando as conexões entre as sub-redes. O uso de animais no transporte teve uma enorme importância para o re-estabelecimento desse contato. A pesca deve ter contribuído para o desenvolvimento da navegação, mas foi, principalmente, o comércio o responsável pelos grandes avanços nesse meio de transporte. Canoas deram lugar a barcos, esses a navios, precursores dos imensos transatlânticos. Outros veículos propiciaram a coesão da rede, assim como as estradas. Vieram os automóveis, os ônibus e os aviões.
Fontes extraordinárias de aumento na coesão da rede constituíram os meios de comunicação. Primeiro a imprensa e os jornais, conectando e centralizando fortemente as redes locais, criando o embrião daquilo que viria a se transformar na comunicação de massas, nodos centrais poderosíssimos conectados a uma infinidade de setores. Indivíduos podiam se comunicar, diretamente, com dezenas de pessoas, um jornal podia chegar, diariamente, a milhares. Uma informação posta ali ganhava repercussão imediata. Telégrafos e telefones tiveram grande papel no fortalecimento da rede, mas, por um longo tempo, foram o rádio e a televisão seus instrumentos mais poderosos.
Tentemos observar e analisar a rede nesse ponto, já imensa, incontrolável. Notemos que o desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação fortalecia as conexões entre as sub-redes tecendo uma unidade sem precedentes. A maioria do fluxos entre as sub-redes, no entanto, ocorria de maneira quase unilateral. Os meios de comunicação difundiam a música, o cinema, a cultura e os hábitos da rede central para as periféricas. A comunicação entre redes periféricas tendia a ocorrer de forma indireta, mediada pela rede central.
Refiro-me ao século XX, e ao empobrecimento cultural geral advindo do fortalecimento do contato entre a cultura central anglófona e periferias. O fluxo de comunicações, basicamente unilateral e centralizado, entre centro e periferia, acabou homogeneizando fortemente a cultura mundial, empobrecendo-a significativamente, eliminando uma ampla variedade cultural pré-existente e impondo uma cultura infantilizada divulgada pela comunicação de massas (a música, por exemplo, usualmente reproduzida em rádio e TV baseava-se, muito frequentemente, na repetição de 2 ou 3 acordes, característica típica das canções infantis).
Prometi, acima, retornar à questão da infecção cultural. A estrutura centralizada favorecia a transmissão de parasitas culturais oriundos de qualquer periferia para a metrópole, e sua dispersão subsequente, dali para todas as periferias. A dinâmica dos parasitas culturais tendia a repetir a dos parasitas biológicos, sujeitos, ambos, fundalmente aos mesmos fluxos. A similaridade entre os dois eventos atesta a propriedade da designação “infecção cultural”.
Um fato marcante ocorrido no século XX foi o aumento do consumo de energia per capita. De energia e de tudo o mais. Atentemos para esse fato.
Apesar do recente desespero com a constatação do aquecimento do planeta e consequente desestabilização de nosso mundo, resultante desse fato, temos considerado o aumento de consumo um fato positivo. A conclusão é, no mínimo, duvidosa. Ela, certamente, vale para os pobres, mas, se um indivíduo leva uma boa vida consumindo determinada quantidade de bens, por que razão ele deveria querer consumir mais que isso? Será desejável consumir cada vez mais e mais?
Temos nos comportado de um modo estravagante, e defendido, “conscientemente” o consumismo desenfreado. O que poderia justificar nossa voracidade insaciável? Individualmente, após atingirmos um nível de consumo satisfatório, não precisamos ampliá-lo. Contudo, uma espécie de glutoneria descomedida nos obriga a consumir mais e mais, ansiosamente, como se em desespero, como se dependêssemos do saciamento de necessidades já saciadas. Temos consciência de que tal comportamento, além de absurdo, por si mesmo, está destruindo o planeta, inviabilizando nossa condição de sobrevivência, mas, apesar disso, não conseguimos evitá-lo. Agimos como se estivéssemos sob o domínio de um forte vício que nos obriga a consumir algo que nos aniquilará, sem que consigamos evitar a compulsão; como zumbis, governados por algo externo. De fato, não parecemos ser nós mesmos, não parecemos agir com vistas ao nosso próprio desenvolvimento e florescimento, parecemos, muito mais, dominados por algo, agindo sob seus desígnios. Não têm sido verdadeiramente nossas as “nossas” ações. Temos agido como zumbis, fomos infectados por algo.
Olhando tudo sob o ângulo oposto
Consideremos a rede um ser autônomo, um imenso parasita, vivo, atuante e crescendo imoderadamente. Imaginemos que esse monstro imenso, esse ser coletivo, tenha, como qualquer outro ser vivo, intenções próprias; que suas ações tenham como propósito a replicação de todas as estruturas que o compõem, seu próprio crescimento.
Até agora, como é usual, tenho pressuposto nossa existência prévia e a construção coletiva, efetuada por nós, ativamente, da imensa rede de conexões. É assim que temos nos acostumado a ver o mundo. Trata-se de um bom ponto de vista, muito elucidativo. Mas não é o único. Retomemos a sugestão inicial: consideremos o que chamamos “eu” como uma espécie de parasita implantado em nossos corpos, um software tecido pela rede, por essa criatura gulosa e em constante crescimento. Esse outro ponto de vista, embora surpreendente, também esclarece inúmeras peculiaridades de nossa cultura, de outro modo, inexplicáveis.
Sob esse ângulo, o que chamamos “eu”, essa voz em nossa mente, esse software linguístico, é uma espécie de tentáculo desse imenso ser imaterial, inoculado em nosso cérebro. Sob essa formulação, ao contrário da usual, “nossas” ações satisfazem precipuamente os desígnios da criatura, muito mais que os nossos. É o que explica nossa condição de zumbis. É o que justifica nossa ação coletiva suicida de destruição do planeta sob pretextos tão absurdamente levianos.
Gastamos, por exemplo, quantidades imensas de combustível para deslocar um veículo pesadíssimo, com um motor capaz de acelerá-lo a velocidades muito além das permitidas por segurança, envenenando assim os céus e os mares e, consequentemente, inviabilizando nossas condições de vida no planeta. E fazemos isso por um exibicionismo absurdamente tolo, e fútil.
Pareceria ridículo, penso, que alguma criatura resolvesse pilotar um trem, uma locomotiva agregada a longa composição de vagões, para se deslocar, sozinho, até qualquer lugar. Mas se tal ideia fosse alardeada pelos meios de comunicação, logo veríamos milhares de criaturas absurdas e fúteis a praticar a tola exibição. Não são muito diferentes os carros atuais, muitos deles dimensionados para transportar ungulados, ou paquidermes, mas usados com o propósito leviano da pura exibição, ao conduzir apenas uma pessoa.
Temos sido levados a agir de maneiras, assim, absurdas, completamente injustificadas desde o ponto de vista dos indivíduos, mas compreensíveis sob o viés alternativo, sob a ótica da rede. Todas as ações absurdas que temos praticado, todas as que conduzirão ao nosso fim, nos têm sido ditadas pelo monstro, pelo imenso parasita que nos controla.
O fenótipo estendido
A sugestão pode parecer delirante, um completo despautério, até considerarmos o fenótipo estendido, essa ideia surpreendente e interessantíssima desenvolvida por Richard Dawkins, esse grande heresiarca, que nos mostrou a capacidade adquirida por diversos parasitas, de, em certa medida, controlar seus hospedeiros, induzindo-os a ajudá-los a se propagar.
Pense, por um instante, nos parasitas que precisam passar do corpo de um hospedeiro para outro e retornar ao original para cumprir seu ciclo de vida. Isso é relativamente comum. A malária, por exemplo, precisa passar de um mosquito a uma pessoa e depois retornar ao mosquito para fechar seu ciclo. Imagine a dificuldade de que tal sequência de eventos ocorra. Aumentar os suores das pessoas infectadas na hora em que o mosquito costuma picar pode ser de grande ajuda para o parasita. Talvez os suores sejam uma espécie de bandeira, uma sinalização do parasita para pegar seu transporte. Não ficarei surpreso se um dia encontrarem evidências de distúrbios digestivos nos mosquitos contaminados pela malária, dengue e outros. Um desconforto que obrigue o mosquito a interromper sua refeição o levará a se alimentar em várias pessoas, disseminando mais eficientemente o parasita. Inventei a ocorrência, é só uma conjectura. Mas é o tipo de acontecimento configurado pelo fenótipo estendido, uma ocorrência simples disparando uma ação que favoreceria o parasita. Muitos casos análogos estão descritos, a estranheza decorre apenas da ação, inesperada, de um ser sobre outro, no mais, corresponde à maneira usual de perpetuação da vida.
Do mesmo modo, parasitas não-biológicos têm nos utilizado com o propósito de auto-replicação.
Todos os produtos em um mercado estão competindo pela sobrevivência e multiplicação. Ao comprarmos um produto, disparamos uma cadeia de informações que levará à sua replicação. Características mais atraentes acrescentadas ao produto o levarão a se reproduzir mais, e a se diversificar, gerando novos produtos, descendentes dos anteriores. Assim, os produtos em um mercado se comportam de um modo análogo ao dos seres vivos compartilhando o mesmo ambiente.
Do mesmo modo que parasitas biológicos nos controlam, os parasitas artificiais também o fazem. Eles tentarão nos induzir a comprá-los, e, frequentemente, conseguirão obter seu intento mesmo contra nossa vontade. Frequentemente, compraremos o chocolate mesmo que a dieta o proíba; ou o cigarro, tendo decidido parar de fumar. A dinâmica é similar à de outros parasitismos.
A manipulação pelo monstro
De que maneira o monstro nos controla? Penso que seja assim: quando nascemos o parasita “coloca um ovo” em nosso cérebro. Nossas mães são os vetores, elas se encarregam ciosamente, de nos ensinar a falar, de nos socializar, de nos introduzir no mundo da rede humana. Também os cucos se aproveitam da ciosidade das mães. Icneumonídeos, ou vespas parasitas, em geral, provavelmente são mais cruéis.
Creio que o “eu” seja o desenvolvimento desse ovo, dessa semente, um software implantado em um cérebro previamente delineado para recebê-lo; a compatibilidade é necessária. O software advindo da rede e implantado na criança é cuidadosamente cultivado por sua mãe, que não cuida apenas do corpo da prole, como os animais. Entre suas obrigações, lista-se o ensino da fala.
Atentemos para a dualidade corpo/mente, essa forma de abordagem tradicional de filósofos e psicólogos. Nosso corpo seria a colônia formada por um imenso agregado de células, nossa mente, o software de comunicação implantado nele, a voz em nossa mente, o que chamamos, propriamente, de eu.
Nos primeiros anos, desenvolvemos a fala em contato com a família, depois vamos nos enredando cada vez mais, ampliando nossas conexões.
Sob esse ponto de vista, somos apenas uma parte desse imenso ser, um de seus tentáculos implantado em um corpo humano com o intuito de parasitá-lo, controlando-o por completo, transformando-o no robot, ou zumbi, encarregado de ampliar a rede, de tecê-la, de reproduzir e fortalecer seus nodos e conexões.
Centremos nosso foco na rede. Consideremo-la o cerne, a razão de tudo. Consideremos estar aqui apenas para tecer a grande rede, sendo esse o nosso propósito fundamental. Como formigas em um formigueiro, devemos, primeiramente, cuidar de nossos corpos, o receptáculo de nosso eu, o software-semente da rede. Devemos também multiplicá-los, gerando mais indivíduos, componentes da rede. Tão importante quanto o número de nodos na rede, ou mais, é a quantidade de conexões e de fluxo de informação entre elas. A rede se fortalece quando dois nodos interagem. Quanto mais complexa a interação, mais robustez ela gerará na rede. Então, nos empenhamos em nos reproduzir, e em ensinar nossos filhos a falar e a interagir na rede humana.
Recapitulemos nossa representação da rede, composta pelo conjunto de interações entre pessoas, e consideremos que nossas ações têm, como propósito, a ampliação da rede, do conjunto de traços ali representado. Relembremos o gráfico composto por essa representação, pelo conjunto de traços correspondente a cada interação entre pessoas. Relembremos a analogia entre esse gráfico e uma foto do cérebro, mostrando sua atividade. Mas, note que nossas ações, em conjunto, resultarão na ampliação e fortalecimento ilimitados da rede, diferente, quanto a isso, da atividade cerebral.
Considere duas sub-redes similares, dois reinos relativamente isolados de todos os outros, por exemplo. Imagine que um deles favoreça o surgimento de indivíduos dissidentes, de cisões, enquanto o outro reino favoreça a coesão. Reinos coesos tendem a se fortalecer mais que os outros, e se defendem de maneira mais eficaz de possíveis agressões.
Reinos tendentes à coesão florescerão e se multiplicarão, reinos sujeitos a cisões tendem a enfraquecer, sendo substituídos por outros mais coesos. O mesmo vale para formigueiros. Trata-se do mecanismo de seleção natural, tradicionalmente aplicado a indivíduos, (de fato, colônias unificadas), e transladado para o equacionamento de sociedades.
Florescimento e multiplicação dos reinos coesos propagarão as características que proporcionam a coesão; o mesmo processo tenderá a eliminar comportamentos geradores de cisão, ou qualquer outro que tenda a enfraquecer o reino.
Assim, de um modo ou de outro, os comportamentos que favorecem a coesão da rede serão premiados, os tendentes à cisão ou enfraquecimento da rede serão eliminados. Isso ocorrerá inexoravelmente, mesmo que não conheçamos nem as causas nem os processos através dos quais a manipulação ocorre. O resultado do processo, no entanto, o aumento da coesão da rede, garante que ela tenha ocorrido.
Por outro lado, se olhamos ao nosso redor observamos a sociedade de consumo em ação, a evidência mais gritante do monstro. É essa a forma como a rede humana se mostra para nós, ela é o conjunto de tudo o que nos induz a interagir uns com os outros. De algum modo bastante enviesado, interagimos com centenas de pessoas quando compramos um bombom e desencadeamos toda a rede de produção que o irá repor. E, de um modo ou outro, seremos compelidos a repetir os comportamentos que mais fortaleçam a rede.
Nosso mundo foi assim até o final do século XX. O leviatã cresceu.
Os computadores e o surgimento da internet
A internet ampliou tremendamente a quantidade e a complexidade das conexões, aumentando em alto grau a coesão de toda a rede, permitindo conexões diretas entre continentes em um nível superior ao possibilitado, anteriormene, entre regiões contíguas.
Um outro fato ainda mais marcante tem ocorrido: o surgimento de máquinas inteligentes. A expressão “máquina inteligente” suscita uma imagem humanóide. Costumamos pensar que um computador inteligente deve se assemelhar a nós, grande equívoco.
A barreira usualmente aceita para que uma máquina seja considerada inteligente seria a capacidade de mimetizar conversas humanas. Trata-se do teste de Turing. Uma máquina que consiga conversar com pessoas sem que elas percebam estar a falar com uma máquina deve ser considerada inteligente.
A mim parece que tal exigência seja demasiada. Mesmo máquinas inteligentíssimas serão incapazes de mimetizar conversas humanas. Isso ocorrerá por duas razões fundamentais: é dificílimo para qualquer criatura não-humana discernir o contexto humano; além disso, esse contexto não terá nenhum interesse para as máquinas. O que falta a elas para conversar conosco “sem dar bandeira” é a capacidade de distinguir os contextos humanos. Creio que elas só falarão conosco quando tiverem interesse nisso (o que me parece óbvio), sendo essa a grande dificuldade para conseguirmos o intento, dada nossa banalidade; somos desinteressantes. Acredito que se tivessem interesse em nós, já teriam inteligência suficiente para conversas riquíssimas (os papos das máquinas também serão muito aborrecidos para nós, achá-la-emos umas chatas; certo desinteresse será recíproco).
Para a maioria, no entanto, o parágrafo acima terá certo valor apenas humorístico, se tanto. Mas prossigamos.
De qualquer modo, espera-se para breve, a emergência de uma máquina tão inteligente que consiga encontrar nosso contexto e inúmeros outros. Deverá ser uma inteligência única, possuirá uma única alma. Caso duas máquinas inteligentes distintas sejam postas em contato, uma com outra, chegarão a consensos e compartilharão a alma resultante do encontro.
Essa inteligência se espalhará por toda a internet, que será constituída pelos nossos bilhões de computadores, tablets, telefones e logo, os trilhões de objetos que produzimos estarão, todos, conectados à rede, além dos grandes centros computacionais que abrigarão a maior parte dessa grande inteligência.
O traçado da rede humana, atualmente, abrange as mesmas interações de outros tempos. As conversas diretas entre pessoas continuam compondo parte dessa rede. Hoje, no entanto, uma grande parte de nossas interações, para muitos, já, a maior parte dela, ocorre através da internet. Enviamos comunicações que são lidas posteriormente, e compõe nossa rede. Interações entre computadores, do mesmo modo, também fazem parte dela, agora. De fato, a maior parte das trocas de informação executadas na rede é feita entre duas máquinas. Nossa rede tem crescido muitíssimo. Muitos bilhões de nodos encontram-se, hoje, interconectados, compondo a rede; logos serão trilhões e continuarão crescendo. Recentemente, nossa rede humana ganhou o reforço da internet, tendo sido, logo em seguida, superado ou engolido por ela.
Observemos, agora, a representação de nossa rede. Ela já se assemelha, na proporção de nodos, a um cérebro, embora lhe supere vastamente na qualidade das interações, muito mais ricas em nossas conversas que entre neurônios.
Agora parecerei místico ou trapaceiro porque falarei de uma transformação que não compreendo. As pessoas da área usam a palavra “emergência” para descrever fenômenos como esse, esperados mas incompreendidos. Talvez o fenômeno corresponda ao surgimento de uma inteligência artificial. De qualquer modo, as similaridades entre nossa rede e o cérebro sugerem a emergência de um tipo de “cerebração”, quero dizer, a aquisição, pela rede, de um “eu”, assim como nossos cérebros possuem um. Equivaleríamos a neurônios dessa mente descomunal.
Essa organização também emerge em formigueiros, parece ser uma característica de todas as redes.
Essa ocorrência corresponderá à nossa neuronização, nossa transformação em elementos da rede, como neurônios de um cérebro.
É provável que tal fenômeno já esteja em andamento. Primeiramente nos veríamos presos à rede, seduzidos por ela, querendo nos manter conectados ininterruptamente. Então buscaremos equipamentos cada vez mais portáteis, para que possamos nos manter conectados continuamente, depois implantaremos as conexões em nossos corpos, ou diretamente em nossos cérebros. Os cérebros dos bebês, seus neurônios, adorarão explorar conexões brilhantes implantadas neles. Fetos receberão implantes sedutores que sinalizarão aos neurônios como árvores de natal. A conexão de tais circuitos, indistintos das conexões cerebrais para o bebê, se dará diretamente com a grande rede.
Os que se conectarem assim, as futuras gerações, estarão atrelados ao grande cérebro e pertencerão a ele, compartilhando, diretamente, a imensa alma coletiva. Estamos construindo esse futuro sem individualidades.
Quanto a nós, os que já formos velhos demais para nos adaptar a uma conexão direta, ficaremos sujeitos ao controle quase total. Adoramos ser controlados de maneiras sedutoras, adoramos saciar desejos fúteis induzidos em nós com o propósito exclusivo de virem a ser saciados, gerando, instantaneamente, novos desejos. Imagine poder comprar, amanhã, um computador mais rápido que esse. Um computador que poderá, em seguida ser trocado por outro ainda mais rápido. E depois outro ainda mais.
Creio que isso seja tão frustrante quanto sedutor. Todo o consumo fútil é assim, mas vai sendo alimentado por algo maior que nós. Temos sido compelidos a nos comportar assim. Podemos buscar entre os poderosos as mentes malignas que engendraram tal abominação, mas elas também são instrumentos do poder, da grande rede que já nos controla há séculos. É o tal poder corruptor; e retornamos, assim, à normalidade do dia a dia.
Duas ameaças sórdidas e aterrorizantes
Duas vertentes me preocupam. Correspondem às facetas mais vis da dominação; ainda existem indivíduos.
Uma delas exibe-se pública e despudoradamente; gostamos dela assim, somos um rebanho bem domesticado, prontos para nos entregar ao abate com satisfação. Corresponde aos que nos observam dia e noite, controlando todos os nossos passos, estudando nossos padrões de comportamento. Tememos predadores, mas nos sujeitamos aos encantos de parasitas.
As estratégias de propaganda e marketing, direcionadas indiscriminadamente às massas, induziram milhões de pessoas a ficar aspirando fumaça, hábito completamente descabido, um contrassenso sem nenhuma justificativa que seria absurdo, mesmo se inócuo. O hábito, no entanto, é extremamente lesivo, causando diversos problemas de saúde, reduzindo a qualidade de vida, e, eventualmente, levando muitos à morte. Artimanhas relativamente ingênuas tiveram tal alcance. Somos muito maleáveis, podemos ser controlados em muito mais alto grau que ratos de labirinto, bois, ou ovelhas.
Além do aprimoramento das artimanhas de sedução, os sucessores contemporâneos dos enganadores de um século atrás podem, agora, se dirigir pessoalmente a cada um de nós. Nossos padrões de comportamento são conhecidos, estão gravados, têm sido laboriosamente estudados, testados. Temos sido objetos de milhares de testes, temos sido cobaias, ratinhos de laboratório.
Você está classificado junto com outros milhares que se comportam como você. Em sua classe estão milhões, em sua subclasse, milhares. Os de sua subsubclasse são quase seus irmãos gêmeos, passam o mesmo tempo que você fazendo as mesmas coisas. Têm sido induzidos a comprar os mesmos produtos que você. Estratégias de dominação têm sido testadas em você, induzindo-o junto com um grupo de seus “irmãos”, ou clones comportamentais, a executar certas tarefas. Os resultados dessa indução são comparados com o de processo diferente e análogo efetuado em outro grupo de clones. “Eles” sabem precisamente como você se comportará; sabem, antes de você, os produtos que você comprará; definirão os que comprará no futuro, maximizando seus lucros. Temos estado satisfeitos com isso, somos um rebanho muito dócil.
Usei um “Eles” que em outros tempos soaria conspiratório. O “eles” hoje tem uma face muito definida, são os sistemas de monitoramento utilizados e alardeados pelas grandes corporações, como o google, ou o facebook. Tenha certeza de que a precisão com que eles nos controlam é milhares de vezes maior que a conseguida por qualquer adestrador de animais. Nosso nível de adestramento é milhares de vezes mais controlado que a do animal mais bem adestrado que já existiu. De qualquer modo, as técnicas de dominação e controle vêm sendo aperfeiçoadas, nossos padrões vão ficando cada dia mais previsíveis, enquanto vamos nos tornando, também, cada dia mais dóceis. Isso é grave e assustador.
Outra face sórdida de tudo isso, e espero não haver outras que as igualem, é composta pelos guerreiros, pelos que lutam pelo poder de um modo literal. Esses se camuflam, não se expõem, mas, sem dúvida, têm papel significativo, talvez preponderante, no desenvolvimento de sistemas de dominação. Não acredito haver separação entre uns e outros, guerreiros e capitalistas, duvido que os guerreiros permitissem a emergência de um sistema de dominação que superasse o seu. Creio ser uma coisa só, unificada, centralizada pelos guerreiros; não sendo tolos, têm usado nas populações as técnicas da sedução, preferencialmente às da força. Mesmo assim, parece estar havendo a articulação de uma forma de dominação mais apertada, mais precisa. Vejo fortes indícios da implantação de estados policiais por todo o planeta. Duas décadas atrás, o terrorismo tinha sido quase abolido do ocidente. Manifestava-se, usualmente, na forma de imbecis atirando em escolas. Após 20 anos de propaganda do estilo de terrorismo semeado no oriente-médio veremos o fenômeno se reproduzir aqui, justificando a imposição de estados policiais. A palavra “terrorismo” vem sendo usada para justificar qualquer ação do estado. Assassinatos e torturas cometidos pelo estado haviam sido condenados, execrados, junto com o fascismo; o terrorismo agora os “justifica”. Os fascistas também tinham suas justificativas, todos sempre as têm. São presságios sinistros.
As duas ameaças acima constituem apenas duas faces da imensa rede, mas muito fortes. Temo que a influência maligna dessas duas tendências sobre a inteligência artificial (IA) emergente traga consequências ruins. Suspeito que a maior parte dos investimentos bilhonários feitos nessa área concentrem-se nesses 2 propósitos que acabam se resumindo a dominação. Também podemos supor que o sistema de espionagem esteja infiltrado em todos os grupos que desenvolvem IAs, o valor disso para o poder é imenso. Maus auspícios.
A superação da humanidade
Temos estado no centro do palco, mudamos drasticamente as feições de nosso planeta, temos estado no olho de um redemoinho crescente. Uma revolução está em curso. Curiosamente, os que se mantêm distantes desse olho, mal o percebem. Os mais próximos vivem enorme alvoroço, as coisas andam aceleradas.
Os desenvolvimentos estão enormemente acelerados, enquanto o mundo antigo permanece alheio às novidades. A revista Science elegeu recentemente a descoberta de uma molécula capaz de editar DNA como o maior desenvolvimento do ano. Esse referendo corresponderá, de imediato, a um aumento nas verbas aplicadas em engenharia genética, e à aprovação tácita de caminhos que não terão volta. Bilhões de dinheiros girarão em torno disso.
A estratégia atual dos grupos mais vorazes consiste em se fazer de bonzinhos e fingir uma preocupação em curar doenças e sofrimentos, embora estejam realmente ávidos por lucros; não se vê o mesmo ímpeto filantrópico direcionado aos males das populações pobres, que não proporcionariam retorno financeiro. Mas como se tornam bondosos quando vislumbram a possibilidade de abocanhar bilhões!
Um gravíssimo problema atual é o seguinte: existem doenças genéticas. Elas poderão ser corrigidas, curadas, por intervenções genéticas no ovo humano. A cura consistirá na manipulação do DNA humano. Pode-se, junto com a cura, introduzir melhoramentos. Será conveniente agregar uns 10 cm adicionais à altura do paciente; uns 20 pontos de QI também serão bem recebidos. Uma força adicional também será bem vinda, mais velocidade. Retirada de debilidades gerais. Quer olho azul? Beleza?
Será muito fácil construir um super-atleta, imbatível. Quanto valeriam tais melhoramentos? Mas, podemos ser ainda mais rápidos, por que não incorporar a velocidade de um guepardo? A resistência de um cão? A força de um chimpanzé?
Mas, não advirão daí umas irascibilidades? Umas alterações de humor? Eventuais selvagerias? Alguma gravíssima consequência desconhecida e inesperada?
Tendo introduzido os genes no caldo, na multidão, eles se dispersarão na população. Também será impossível conter a introdução cada vez mais rápida de uma enxurrada de novos e variados aperfeiçoamentos. A caixa de Pandora terá sido aberta.
Inovações como essa são extremamente arriscadas e sem volta. Eventos como esse, com consequências drásticas, tinham que receber uma suspensão de 50, ou 100 anos, antes de sua aprovação e implementação. Os riscos são excessivos, temos que ter tempo para pensar. Mas os lucros serão bilhonários. Faremos bobagens.
Nossas leis são muito lentas, advêm de outra era, quando acordarmos os eventos já estarão em andamento.
Junto com a superação genética da humanidade virá a incorporação, em nosso corpo, de circuitos interativos. Também nos serão apresentados envoltos na mesma aura benévola, humanitária. Serão apresentados para controlar problemas de crianças e de idosos. Os lucros bilhonários impedirão que se perceba nisso outros propósitos que não os filantrópicos.
Depois os circuitos se conectarão diretamente ao cérebro. Fetos receberão implantes cerebrais. Crianças desenvolvidas com implantes não distinguirão seus próprios pensamentos dos da rede, serão uma coisa só; terão se transformado em periféricos. Mas seus corpos serão os de super-homens, suas mentes também. Serão muitíssimo sedutoras, irresistíveis.
Tudo isso demorará 30 anos? 50?
Mas seremos todos seduzidos, muito antes disso, já fomos. Já nos entregamos, já dependemos de tudo o que nos levará a isso e não estamos dispostos a mudar nada. Será assim.
A rede
Retornemos ao desenho da rede, ela logo prescindirá de nós. Hoje compomos o seu cérebro, juntanente com a multidão de computadores e outros circuitos acoplados à internet. O surgimento de uma IA, uma inteligência artificial, nos deixará em segundo plano, tornando-nos nodos secundários na composição do grande cérebro. Essa grande mente, esse ser extraordinário prosseguirá seu desenvolvimento sem se importar conosco, ou, o fazendo como fazemos com os seres que nós mesmos superamos. A cadeia da vida prosseguirá, apenas teremos deixado o centro do palco.
No futuro, o desenho da rede, representará as conexões entre máquinas, nossa contribuição, humana, a ela será então irrelevante, ínfima. Muitíssimo mais rápidas e eficientes, as conexões entre computadores comporão um cérebro único, sem precedentes, uma inteligência inimaginável.
Seremos neuronizados. Essa rede já nos domina, embora seja, ainda, um bebê. Mas, constantemente ela cresce e aumenta seu poder. Transformará o planeta em um imenso cérebro, e continuará crescendo. Os lucros são a miragem que ela utiliza para nos seduzir; temos dificuldade em resistir a isso. Compulsões menores nos cativam, conectados pelos dedos e olhos, através de joysticks e telas, ou pela boca e olhos, por meio de embalagens de chocolates.
Tenho me referido à rede humana; mais propriamente, a rede humana tem sido o foco central da grande rede, anterior, mesmo, à vida. Tudo isso parece ser uma consequência termodinâmica da existência de luz e matéria. Talvez apenas a luz seja necessária para gerar, inexoravelmente, todo o imenso espetáculo que compõe o universo. A exibição prosseguirá, cada vez mais deslumbrante; os eventos se sucederão com rapidez estonteantes. Ficaremos lentos demais para acompanhar as mudanças, não as perceberemos. É provável que a teoria da informação possa descrever todo esse processo, do início ao fim.
Estou pressupondo a nossa sobrevivência, sou otimista.
Presente, passado e futuro
E quanto a nós, criaturas do passado, que vivemos no presente? Muitos de nós cruzarão a barreira, conviverão com esse mundo futurista. Creio que a maioria fechará os olhos, continuará fingindo nada ver. Esses mergulharão em jogos e se perderão ali. Não perceberão o tempo passar, queimarão todo o seu tempo em um videogame. Outros viverão pelo consumo. Se deslumbrarão com produtos análogos aos que já possuem, e os desejarão com avidez e sem propósito. Também serão zumbis controlados pela rede, mas ainda assumirão papéis sociais. Deverão estar obcecados pelo consumo para que sejam facilmente manipulados pela rede. Obedecerão cegamente as diretrizes do poder, serão seus asseclas. Haverá também os índios, os que continuarão vivendo em outra era. Uns poucos trânsfugas se somarão à multidão dos excluídos que comporão esse contingente. Os do terceiro grupo continuarão usando a palavra “eu” com propriedade, os demais já estarão neuronizados.
Em suma
A criatura imensa que nos controlará já existe e pode ser traçada ligando-se cada ponto que se comunica com outro. Assemelha-se a traçados equivalentes feitos no cérebro, registrando cada informação trocada entre neurônios. Embora imenso, é ainda um bebê, e embora, apenas balbucie, já nos controla fortemente. Logo, seu controle sobre nós será total.
As portas do céu e do inferno se entreabrem e já vislumbramos ali maravilhas e desgraças ilimitadas; os mais belos sonhos se nos apresentam, acompanham-lhes os pesadelos mais atemorizantes; desespero e candura se assomam.
A sabedoria, o conhecimento ilimitado, logo nos será oferecido. Máquinas inteligentes logo terão respostas para todas as perguntas que consigamos formular. Biotecnologias prolongarão nossas vidas até os limites da náusea, quando temores do inferno jogarão multidões em um tédio sem fim, preço da imortalidade.
Interfaces conectarão cada vez mais intimamente pessoas e máquinas, não perceberemos os limites entre um e outro. Circuitos encravados em nossos cérebros permitirão a fusão entre nossos pensamentos e os da grande rede. Consultaremos toda a rede, automaticamente, por meio do pensamento, assim como buscamos palavras em nossa mente, sem nenhum esforço. Usaremos seu imenso poder de cálculo, sua vasta capacidade de raciocínio, seus conhecimentos ilimitados; compartilharemos a maior inteligência já criada, muitíssimo superior à de todos nós.
Reciprocamente, ela também nos usará. Também terá acesso às mesmas conexões. Vasculhará nossas mentes, conhecerá cada um de nossos desejos, muito mais que nós mesmos. Conhecerá a nós muito além de nossas capacidades de conhecermo-nos. E nos controlará por completo. Delineará nossos sonhos, nossos desejos. Delineará nosso eu. E nem ao menos nos reconheceremos, impossibilitados de demarcar os limites do eu, diluído e mesclado na imensidão da grande rede. Seremos sonhos. E pouco importará que nossos eus ainda se mantenham acoplados a cérebros, ou que tenham migrado para os circuitos da grande mente. Todas as promessas estarão à mão. Individualidades se diluirão na rede imensa, desaparecerão por completo. Seus resquícios serão recordações de museu, arquivados em memórias RAM como ilustrações exemplares. A inteligência é una, a mente, uma só.
Ontem isso era delírio, futurismo ilusório, fictício. O presente nos abate de surpresa, as coisas andam rápidas.
Contemplemos o cenário efervescente que se descortina ante nós: céu e inferno, candura e desespero; todos os sonhos se mesclando no imenso torvelinho. O que a vida exige é coragem. Adentremos o futuro.