Por que os professores devem abolir a lista de presença
“Recentemente, foi feita uma pesquisa entre 1.100 alunos do ensino médio e superior, pessoas de 16 a 30 anos de idade, de ambos os sexos, e se constatou que 69% já haviam colado em provas, 68% já tinham copiado textos da internet para colocar em trabalhos e 59% já haviam assinado a lista de presença em nome de colegas. Mais da metade já tinha marcado a presença para outra pessoa. Qualquer semelhança com o que ocorre em Brasília não é mera coincidência. É aqui que entram nossos representantes. É lamentável constatar, mas eles nos representam fielmente - inclusive Fernando Collor, por mais que isso nos cause indignação.
É possível que o mesmo estudante que tenha marcado a presença para um colega venha a se tornar político, talvez vereador ou deputado estadual - não precisamos chegar em Brasília. Se ele se tornar um representante do povo, já terá cometido transgressões em sua vida social, pequenos ilícitos ou quase ilícitos. A partir daí, um pequeno passo o impede de fazer o mesmo dentro da administração pública: a chance de fazê-lo e a percepção de que não haverá consequências para sua carreira.”
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, em artigo no jornal Valor Econômico de 16/10/2015
Quem ler este trecho do artigo do professor Alberto Carlos Almeida, no qual expõe os pequenos delitos do cotidiano do cidadão comum, que, segundo ele, refletem o que hoje está ocorrendo no âmbito politico brasileiro (com a operação Lava-Jato, as pedaladas fiscais, o estelionato eleitoral) e não estiver hoje familiarizado com o mundo escolar nos ensinos médio e universitário, poderá estranhar quando ele fala nele sobre o ato de “assinar a lista de presença em nome de colegas”.
Como, recentemente, entre 2008 e 2014, passei por uma universidade (UNESP Campus de Marília) como aluno numa graduação e num mestrado em Filosofia, posso esclarecer tal ato por um episódio que ocorreu comigo e um colega de escola, que, em seu desdobramento, revelou também, de forma cabal, o quanto a banalização da corrupção está entranhada no indivíduo comum.
A lista de presença é uma maneira do professor se ver livre da chamada oral de presença, que pode lhe tomar um tempo precioso caso a classe tenha um número grande de alunos. Assim, é normal hoje (não sei se foi em épocas passadas) ele pedir que passem pela classe uma folha de caderno na qual cada aluno coloca seu nome. Não é uma assinatura, deve ser colocado o nome em letra legível de forma a possibilitar uma conferência posterior. A folha com os nomes será o atestado da presença dos alunos presentes.
É claro que esse mecanismo, conveniente para os professores, é bem vulnerável à prática de ilícitos. A fraude ocorre quando um aluno que falta a uma aula pede que um colega próximo que estará presente coloque seu nome na lista, enganando assim o professor.
O colega era o aluno com o qual eu mantinha uma amizade mais próxima durante a graduação em Filosofia, com o qual gostava de discutir os temas relativos ao curso, que eram bastante vastos. Não é intenção deste texto demonizá-lo, pois atribuo sua ação no episódio à imaturidade própria da sua idade (sendo um jovem enquanto eu tenho idade bem maior que a dele). Pela sua inteligência, que considero média, tem chances de aprender com os erros e tornar-se um homem de caráter.
Por talvez me considerar o colega com o qual mantinha mais afinidade, um dia ele, de surpresa, apareceu com uma folha de caderno em branco na qual a primeira linha já estava preenchida com seu nome. Disse-me que na noite seguinte precisava faltar à aula da disciplina programada do curso de Filosofia que fazíamos, por causa de uma exigência inesperada em seu serviço e pediu-me que passasse aquela lista de presença com seu nome já incluso. O seu argumento amparava-se na “necessidade” (os fins justificando os meios). Por ser motivado por um serviço em seu trabalho, o ato antiético seria justificado, na sua ótica distorcida. Por ter certa consideração pela sua amizade, o pedido me surpreendeu e não tive como responder-lhe de imediato. Pedi que me deixasse pensar.
Fazendo um parêntese, não me lembro se antes ou depois deste episódio, mas mais provavelmente antes, houve um encontro na classe entre eu e dois outros colegas, uma jovem e outro colega também mais próximo a mim. A jovem se ofereceu ao outro para colocar seu nome na lista de presença em um evento que contava créditos para os participantes e ao qual ele teria que faltar. Lembro-me de ter admoestado severamente essa colega, de forma abrupta, sobre esse ato antiético que pretendia realizar em favor do outro. A partir deste episódio essa colega passou a me hostilizar ostensivamente, nas discussões didáticas durante as aulas. Ao longo do tempo, porém, foi se acalmando, talvez se convencendo de que eu, afinal, tivera razão em chamar sua atenção naquele episódio.
Voltando ao caso inicial, ponderei calmamente sobre aquele pedido daquele colega próximo. Vendo nele um claro indício de imoralidade, decidi no encontro seguinte recusar o que me pedia. Esclareci que nunca havia feito qualquer coisa parecida a aquilo. Mas ofereci-lhe uma saída perfeitamente legal e honesta, sem que precisasse incorrer em um ilícito. Disse-lhe que eu comunicaria o motivo da sua falta á professora responsável pela disciplina, contando, talvez, com a possibilidade de que ela pessoalmente abonasse a falta por justa causa.
Relutantemente, ele concordou, embora algo contrariado com a minha recusa em atendê-lo em seu expediente cabalmente imoral.
À noite, durante a aula, fiz o combinado, comuniquei à professora o motivo da falta do meu colega. Para minha surpresa, pois não contava com isso, ela simplesmente me autorizou a colocar o nome dele na lista de presença que estava sendo passada pela classe.
Fiquei bastante feliz com aquela solução, pois provara algo a aquele colega. O abono da sua falta fora conseguido facilmente e de forma legal, sem que ele precisasse incorrer em um ilícito, que, caso executado, além de comprometer o seu caráter, estaria comprometendo, de forma irremediável, o meu próprio.
O colega poderia argumentar (e por sorte dele não o fez), ainda amparado na tal máxima de que “os fins justificam os meios”, que, afinal, o resultado fora o mesmo, isto é, seu nome fora parar na lista e não importara muito o meio que fora utilizado. É evidente que há uma falácia aqui (a que chamo “tomar o todo pela parte”). O meio utilizado (ou a ação que permitiu o resultado) importa sim, e muito, porque é ele exatamente que define um comportamento moral. A máxima segundo a qual “os fins justificam os meios”, por ser por natureza ambígua, pode ser interpretada de acordo com o interesse do agente que a postula. Se tomada no sentido abrangente em que “um fim nobre justificaria um meio não nobre para atingir tal fim” ou “determinados fins justificariam quaisquer meios para alcançá-los” autorizaria o agente a cometer um ilícito para atingir um fim considerado nobre, mesmo diante de outros meios honestos que poderiam ser utilizados para o mesmo fim. Por exemplo, por esse prisma falacioso, para matar a minha fome (um fim nobre) eu me autorizaria a roubar um alimento (ato ilícito, não nobre), mesmo que haja a opção de eu ganhá-lo honestamente trabalhando.
Portanto, a máxima segundo a qual “os fins justificam os meios” só tem sentido se restrita a casos específicos, nos quais “determinado fim moralmente necessário - por ser moral - justificaria determinado meio imoral necessário - por ser o único possível, não havendo outro moralmente possível, num local e tempo pontualmente localizados” ("ética da responsabilidade"). Por exemplo, se sou um alemão justo na época em que a Alemanha nazista perseguia injustamente os judeus alemães e escondo um deles em minha casa para salvar a sua vida, sou autorizado a mentir ao agente nazista que bate à minha porta, único meio possível naquele local e momento específicos para o fim nobre de salvar uma vida humana, mesmo que a máxima segundo a qual “não devo mentir” ("ética da convicção") seja uma das máximas que compõem a estrutura moral de meu caráter. (1)
No caso da lista de presença, havia um fim moral, abonar uma falta por justa causa, mas dois meios possíveis, um imoral enganando a professora com uma fraude, e outro moral, informando a professora e obtendo dela própria autorização para a colocação do nome na lista. Enganar a professora não era o único meio possível para obter o resultado desejado.
Ademais, se o meio utilizado é desonesto e consegue com sucesso determinado resultado, ele tende a ser propagandeado e se espalhar como praga causando óbvio prejuízo a uma sociedade que se pretenda justa e democrática. Se o meio utilizado é honesto e consegue aquele mesmo resultado, tende a ser propagandeado de forma virtuosa, contribuindo para que todos ajam moralmente em seus pequenos atos cotidianos, tornando a sociedade de fato justa e democrática.
Talvez, por leniência às leis numa sociedade, muitos atos imorais sejam cometidos por falta de uma reflexão mais racional sobre a possibilidade de se conseguir facilmente os mesmos resultados agindo de forma moralmente honesta.
Por isso, por seus efeitos deletérios para a educação dos jovens, lanço uma campanha aqui para que os professores, nas salas de aula com um número padrão de alunos, abulam a lista de presença e voltem a adotar a simples e moralmente saudável chamada oral. Ela não é tão prejudicial para o andamento da aula (como nunca foi em tempos antigos) e, de resto, ajuda os professores na fixação em sua memória dos nomes dos seus alunos.
(1) Sobre ética da convicção e ética da responsabilidade ver “Ciência e Política Duas Vocações”, de Max Weber.