O legado de Popper
O século XIX consolidou um otimismo exagerado na ciência, decorrente, provavelmente, dos êxitos da teoria newtoniana e do eletromagnetismo. As luzes que inundavam as metrópoles no início do século XX, oriundas de conhecimentos científicos recentes, ofuscavam qualquer desconfiança que se pudesse lançar sobre a ciência, calando até as dogmáticas criaturas modeladas nos meios religiosos, fontes tradicionais de obscurantismo, quando mesmo as mais altas igrejas instalaram para-raios em suas cumeeiras.
Perplexos, e imersos em um contexto de confiança total na ciência, os sábios da época viram-se compelidos a endossar a única explicação aventada, até então, para as admiráveis façanhas de cientistas e inventores. Atônitos com os êxitos premonitórios surpreendentes da física celeste, ofuscados pelo brilho intenso das luzes elétricas, os pensadores de então, levianamente, se deixaram convencer pelo simplismo da única proposta conhecida de justificação da ciência: a indução.
O chamado “método indutivo” consiste em uma suposta demonstração de verdades científicas.
Há que se fazer uma ressalva e distinguir o indutivismo empírico da indução matemática, procedimentos distintos, sendo o segundo, um método seguro de demonstração, do qual o primeiro se apresenta como uma caricatura.
A indução empírica consiste em propor uma dada hipótese e comprová-la após sucessivos testes, funcionaria assim:
Um jovem peru acorda pela manhã com o alarido de um homem debulhando o milho e oferecendo-o às aves. Manhã após manhã, o peru depara-se com a mesma cena reconfortante. Após várias repetições, ele, então, confirma a hipótese de que: “todas as manhãs o homem debulha e oferece milho às aves”, fazendo com que, todas as manhãs, ele se dirija satisfeito até o homem, confiante na comprovação da hipótese indutiva confirmada manhã após manhã.
Na manhã da véspera de natal o peru acaba impossibilitado de comunicar a constatação que o deixara atônito, da substituição do milho pelo facão.
Essa fábula ilustra com clareza o método indutivo, evidenciando também sua debilidade gritante. Mas em 1934 não restava alternativa, quando Popper chamou a atenção para as antigas críticas de David Hume ao suposto método, que evidenciara sua fragilidade já em séculos anteriores. Convém notar que o livro de Popper, “A lógica da investigação científica”, só seria traduzido para o inglês e difundido além de limites restritos em 1949, e que a vigência na crença do poder da indução permaneceu viva por décadas.
Creio que a importância da obra de Popper é dada, fundamentalmente por seu contexto. Pode-se alegar não haver grande mérito em ressuscitar uma crítica esquecida. O esquecimento da crítica à indução, no entanto, se deveu, penso, aos êxitos científicos, posteriores a ela. Uma coisa era criticar e negar a indução antes dos êxitos científicos, outra, era criticar o suposto fundamento do método da atividade que vinha revolucionando o planeta de maneira avassaladora.
A crítica de Popper à indução, ou melhor, a crítica de Hume retomada por Popper, é banal; o suposto método é fragilíssimo. Consiste apenas em asseverar que, não importam quantas instâncias confirmem determinada hipótese empírica, a seguinte poderá refutá-la, ou seja, nenhuma quantidade de confirmações de um dado resultado empírico é suficiente para provar a veracidade de hipótese empírica universal.
Que outra consideração poderia justificar, então, a veracidade da ciência empírica? Que consideração poderia provar uma teoria empírica?
Nenhuma. Nenhuma consideração poderá provar a veracidade de teoria científica, diz Popper; e esse é seu legado.
Convenham que a afirmação é contundente e enfática, chegando a parecer absurda para muitos que, estupefatos, apontarão a diversidade de artefatos ao nosso redor evidenciando a veracidade da ciência.
Uma distinção simples e clara deve ser apontada. Os meios de comunicação e o discurso comum costumam confundir ciência e tecnologia, sugerindo tratar-se, ambos, de um único tipo de coisa. De fato, o conhecimento científico e o tecnológico são bastante diferenciados. O cientista busca a compreensão de fenômenos, o tecnólogo, ou engenheiro, o seu domínio. A tarefa do cientista consiste em compreender o mundo, a do engenheiro em dominá-lo, em construir objetos com determinadas funções. Podemos provar que os objetos funcionam, bastando para isso ligar um televisor, ou acionar o interruptor de uma lâmpada. Demonstramos, desse modo banal, o funcionamento de objetos. Nada disso prova, no entanto, a veracidade de teorias utilizadas para auxiliar a construção dos objetos em pauta: outras teorias poderiam ter sido ainda mais úteis.
E já, a banalidade da proposta popperiana parece se emaranhar nas intricações que eternizam a discussão.
Creio que a compreensão da distinção entre ciência e tecnologia, e a constatação da inexistência de um método indutivo capaz de demonstrar teorias empíricas revelam a condição conjectural de toda a ciência empírica.
O ideal de conhecimento científico provado revelou-se um mito. Nosso conhecimento sobre o mundo está fadado a ser apenas conjectural.
*Tudo isso diz respeito, fundamentalmente, à física. As outras “ciências” não estão centradas em deduções, previsões ou inferências de qualquer tipo. Químicos, por exemplo, preocupam-se muito mais em executar reações e produzir compostos, tarefa tipicamente tecnológica. Biólogos preocupam-se mais com descrições. Embora presentes em algum grau nas outras ciências, as inferências preditivas são, realmente, típicas da física, e só dela.
*A matemática e a lógica não tratam do mundo empírico, explicitam verdades necessárias, válidas em qualquer mundo possível.