O que somos nós? Uma visão de mundo

Considerações preliminares

Acreditamos ser indivíduos que possuem e controlam um corpo. Compartilhamos, todos, exatamente, as mesmas convicções relativas a isso. Penso que nem os loucos duvidem dessas crenças usuais acerca do eu, exceto duas das mais estranhas categorias de lunáticos, a dos psicólogos e a dos filósofos, loucos, aliás, que, ao contrário dos outros, esforçam-se laboriosa e obstinadamente por desenvolver suas psicoses.

Desconsiderando-se eventuais objeções de tais classes de malucos, podemos assumir a existência de um eu comum decidindo seus rumos, buscando saciar seus desejos aqui e ali, e vivendo sua vida em meio a uma multidão de outros eus similares, empenhados, todos eles, também, em viver suas vidas.

Mas sabemos, também, que algumas de nossas ações são determinadas por outras pessoas, por outros eus. Quando crianças, obedecemos aos nossos pais e eventualmente a familiares, professores e outros, mais tarde obedecemos a chefes, autoridades legais, e demais agentes que nos compelem a obedecer normas eventualmente antagônicas a nossos desejos. Nesses casos, reconhecemos decidir agir contra nossos desejos originais, ou seja, reconhecemos ser compelidos a aceitar um desejo contrário ao que, originalmente, gostaríamos de satisfazer.

De qualquer modo, acreditamos ser essa uma decisão nossa, de modo que, de acordo com a crença comum e generalizada, tudo o que fazemos é fruto de uma decisão nossa, consciente, eventualmente produto de um desejo sobreposto a outro por imposição externa, mas, em última análise, por decisão nossa.

Eventualmente, nossos desejos podem ser contrapostos por ameaças externas. Podemos, por exemplo, desistir de pegar uma fruta próxima a uma colmeia, com receio de que nossa ação desencadeie a ira de insetos ferozes. Em casos assim, sobrepomos o desejo de evitar o sofrimento das picadas ao de saborear a fruta. Burros e cavalos fazem o mesmo ante a ameaça do chicote, acabando, usualmente, optando por evitar o açoite.

Fazemos o mesmo com relação às imposições de chefes, e sobrepomos, frequentemente, seus desejos aos nossos. Assim, decidimos acatar suas imposições do mesmo modo que os equinos, com o intuito de evitar consequências nefastas que adviriam da opção contrária. Acreditamos, no entanto, ter havido uma decisão consciente de acatar a imposição. A visão comum de mundo pressupõe que estejamos sempre no controle de nós mesmos, que exista um eu comandando nossas ações, e que esse eu está sempre consciente e vigilante, incumbindo-se de comandar todas as nossas ações, ainda que, eventualmente, sob coerção.

Mecanismos de controle

Sabemos, no entanto, sermos passíveis de controle, não apenas por meio de coerção, mas também através da sedução. Sabemos ser possível induzir vastos contingentes populacionais a manter hábitos cotidianos idiotas, como o de ficar aspirando fumaça, ou o de ingerir bebidas desagradáveis e prejudiciais à saúde e outras inúmeras tolices, levando-os a executar parvoíces por uma aparente determinação própria.

Contrariamente ao chicote que nos causa revolta quando nos compele, outros mecanismos de controle nos causam satisfação e conforto. Fôssemos suficientemente elogiados por carregar outras pessoas nas costas, e nos ofereceríamos alegremente para fazê-lo, não sendo obrigatório, em nós, o uso do chicote, como nos burros, para a consecução de tais desatinos, sendo a lisonja e outros afagos a nossa autoimagem, muito mais eficientes para nos controlar. Nossas vidas idiotas, aliás, têm sido vividas de maneira muito diversa daquilo que sempre imaginamos, e destituídas de sentido, de metas outras que nos aposentar para esperar a morte, e criar filhos para que vivam vidas igualmente subservientes e idiotas. Nossas vidas, assim, consistem em uma enorme ilustração de tal sandice.

Mas tais ocorrências encontram-se demasiadamente próximas de nós para que possam ser devidamente apreciadas, e são, além disso, incômodas, para que nos esqueçamos delas, não fosse assim, nos rebelaríamos. Se as coisas não se encaixassem não seriam como são.

Como seriam nossas vidas se as controlássemos, de fato? Em que medida estamos no controle?

Além de propagandas sutis e sedutoras, sabemos estar à mercê de outras forças. Conhecemos o fenômeno da síndrome de Estocolmo que compele prisioneiros a defender seus algozes brutais. Conhecemos a hipnose, fenômeno capaz de nos controlar em altíssimo grau, de nos fazer agir sob certos comandos externos acreditando ser, exatamente esses os nossos desejos.

Mais extraordinárias, ainda, são as constatações de Richard Dawkins, de que podemos agir, compelidos por parasitas, com o propósito de perpetuá-los, a eles, os parasitas! De que podemos ser controlados por parasitas agindo em favor da perpetuação de suas linhagens.

Também descobrimos que nossos corpos consistem em multidões de células cravejadas de mitocôndrias, diferenciadas em órgãos, clonadas às miríades, e povoados pela imensa flora intestinal, composta por enorme diversidade de seres. Somos colônias ricas e complexas, e, o que chamamos "nosso eu", "nossa alma", talvez seja oriundo de qualquer dos seres que abrigamos. Mais provavelmente, origina-se de todos eles. (Por que a prisão de ventre nos deixa enfezados?).

De algum modo, somos toda essa miríade de criaturas que nos compõe: nossas células incrustadas de mitocôndrias e a multidão agregada, especialmente na flora intestinal, embora gostemos de menosprezar tudo isso e nos acreditar a "criatura pura", despojada de todos esses agregados.

Recentemente atentamos a uma outra faceta extremamente relevante para a composição do eu: existimos em rede, e essa peculiaridade nos define em alto grau. Seríamos outros, seríamos seres completamente diferentes se não estivéssemos em rede. Mas, quanto? Quão diferente seríamos? Essas perguntas têm respostas simples e precisas. Seres humanos que tenham sido criados desconectados da rede humana, que não tomaram contato com a linguagem, assemelham-se a animais. Fôssemos criados por cães, gorilas ou chimpanzés e nos comportaríamos como eles, sendo suposto que nossos pensamentos se assemelhassem muito mais aos deles que aos que somos capazes de engendrar com o auxílio da linguagem.

Essa simples constatação nos compele a agregar mais um componente à profusão de criaturas que nos compõe: a rede humana. Sempre soubemos disso, a novidade consiste em perceber a possibilidade de inversão do agente. Quem é o eu? O agregado de criaturas acoplado à rede? Ou um conjunto de conexões desenvolvido na rede e injetado em nosso corpo? A constatação de que seríamos animais comuns sem a injeção de software propiciada pela rede nos sugere que, enquanto nosso comportamento animal seja fruto do agregado que constitui nosso corpo, nosso hardware, todo o nosso desenvolvimento intelectual, o conjunto das peculiaridades que, tradicionalmente associamos à humanidade, corresponde a desenvolvimentos da semente implantada em nós pela rede.

Uma metáfora reveladora

Imaginemos a seguinte metáfora: uma semente implantada em um cérebro, desenvolvendo raízes que se entrelaçam aos neurônios, contactando o eu animal, uma algazarra em ebulição emanada pela multidão de criaturas interligadas. Talvez seja assim a nossa alma.

Agora, perguntemos: quem está no controle?

Gostamos de acreditar haver o tal eu centrado em nosso corpo controlando tudo. A consideração da rede subverte a questão. Façamos a seguinte analogia: ao conectarmos nossos bebês à rede humana, injetamos nele um sistema operacional: a linguagem. Toda a interação posterior do bebê com o mundo se dará com a mediação desse sistema, que define o escopo de interação do bebê com o mundo.

Assim, de antemão, a rede cerceia e define o escopo do eu, de modo que qualquer atividade posterior desse ser, desse eu moldado, ou cerceado, pela rede, se dará através do sistema operacional.

Pego-me a imaginar um eu primitivo, de baixo nível, uma espécie de Bios implantada no hardwarecomposto por miríades de seres-células, envolvida por um Sistema Operacional, de nível mais alto, que assume o controle e a organização das ações, definindo os limites de atuação do sistema. Nossos olhos e ouvidos se acoplarão a ele, e todos os nossos pensamentos se originarão desse sistema, ganhando formulação linguística complexa.

(Pensando com meus botões: para ampliar o escopo de nosso sistema operacional temos que inventar novos conceitos linguísticos, novas conexões, formulá-los e recebê-los verbalmente. Trata-se de exigência do sistema a necessidade de recepção verbal externa de novos conceitos, razão pela qual precisamos pronunciar, ou escrever nossas próprias inovações).

Com base em tal modelo, pouco importa se existe um eu, ou quem está no controle, qualquer que seja ele estará mediado pela rede, estará pilotando uma máquina/ser com um sistema operacional definido pela rede humana.

Eu, Eu, Eu, Eu! Adoramos o nosso eu, veneramos nosso eu sobre todas as coisas. Trata-se de nosso centro de lisonja, é a ele que a rede se dirigirá quando precisar impor-lhe algum desejo.

Creio que o eu que determina nossos desejos e ações não está em nós, está em outro ser, na rede. Suponho ser a rede que determina a maior parte de nossas ações individuais.Ao usar da lisonja, no entanto, e de outras artimanhas análogas, a rede nos induz a acreditar estarmos agindo por desígnio próprio, quando o fazemos por sua determinação.

O que me leva a pensar assim?

O cálculo do consumo de energia no planeta. Necessitamos consumir certa quantidade de energia para sobreviver e nos replicar. Temos consumido uma quantidade muito maior que isso e crescente; com que propósito?

Gastamos energia para produzir e transportar a comida necessária a nossa sobrevivência, um pouco mais para aquecer os que morreriam de frio, e coisas assim. O restante da energia produzida pelo homem hoje tem o propósito de alimentar e reproduzir a grande rede que nos envolve.

Costumamos pensar nela como um artefato criado e controlado por nós. O ponto de vista oposto esclarecerá uma quantidade muito maior de fatos. Somos criaturas mentais, softwares, semeadas pela rede nos corpos/colônias. Somos controlados pela rede em um altíssimo grau, seja através da lisonja de todos ao redor nos conduzindo a determinados papéis sociais, seja pelo chicote de nossos chefes, perpassando todo o espectro intermediário de mecanismos de indução de comportamentos e ações imposto, de um modo, ou outro, pela rede. O propósito final é garantir seu próprio crescimento e sua própria replicação. O excesso de energia produzido por nós, a parte desnecessária a nossa reprodução, nutrirá a replicação da rede.

O brilho das luzes citadinas e tudo o que nos seduz e atrai nas cidades abarrotadas consiste no modo encontrado pela rede para nos induzir a replicá-la; somos seus instrumentos.

Dever de casa:

Existem, na internet, dados sobre a produção total de energia. Também se conhece a quantidade de energia necessária para a sobrevivência de uma pessoa, e o número de habitantes no planeta. Com base nesses dados, calcule a relação de poder rede/humanidade, dividindo o total de energia consumido pelo homem e a quantidade gasta com nossa sobrevivência (atente para o fato de que nosso consumo é dado em Kcal).

Podemos continuar a nos ver povoando o nosso mundo de maneira individual e autônoma, circulando por aí e agindo segundo nossa própria vontade e desejos. Gostamos de nos ver assim, isso nos parece cômodo e agradável.

Uma alternativa consiste em nos perceber como marionetes wireless, zumbis/colônias parasitados por uma rede imensa que em breve nos neuronizará definitivamente, cristalizando-nos, de uma vez por todas, coagulando-nos como neurônios de um cérebro descomunal, quando, seduzidos pela rede brilhante, por suas lisonjas, cerceados pelo seu açoite, cessaremos toda a dúvida, toda a resistência e nos entregaremos a ela por inteiro, para, acolhidos em seu seio reconfortante, sonharmos.

E em sonhos, viajaremos por paisagens estranhas, desconexas, sombrias, e por outras radiantes e acolhedoras. Conheceremos simplicidades elementares e totalidades sumamente complexas. Mergulharemos nas profundezas de infernos horripilantes de onde emergiremos entre luzes paradisíacas. Percorreremos céus e infernos a fugir do tédio execrando que ameaça tudo o que seja eterno.

E então sonharemos sermos eu e você agora, descobrindo a urdidura da grande rede, o tecido que nos compõe. Sonhemos.

Pós-escrito

A rede humana a que me refiro acima é anterior à internet, constitui o conjunto de todas as nossas interações, surgiu com a fala, e era intermediada por esse meio. Essa rede constitui uma criatura autônoma, um ser gigantesco com desígnios próprios.

Uma rede de interações é meramente um conjunto de relações, não tem uma existência material, não é, propriamente, uma coisa. Ainda assim, podemos vê-la como um agente que consome energia em quantidades crescentes, o que revela seu crescimento descomunal.

Recentemente, criamos a internet, que, de certo modo, deu uma forma material a essa rede de interações. A internet constitui um meio adicional, potencializador da rede humana.

A rede tem crescido exponencialmente, fato atestado pela quantidade crescente de energia consumida pela humanidade.

Costumamos ver o mundo através de nossos olhos, por essa razão, vemo-nos, a nós mesmos como agentes autônomos, indivíduos conscientes. Acreditamos estar no controle quando interagimos com a rede; acreditamos sermos nós os agentes, sendo a rede um mero objeto inerte. Acreditamos comandar a relação.

Acreditamos ser a criatura original, pura, despojada de mitocôndrias e de toda a massa de criaturas agregadas que nos compõem, despojados da semente implantada em nós pela rede.

Também os neurônios podem ser vistos assim. Também eles têm lá suas existências individuais.

Sob outro ponto de vista, podemos ver a rede como uma imensa criatura autônoma, análoga a uma mente implantada em um cérebro; como um software.

Lembremos que nossa mente consiste no desenvolvimento de uma semente, ou esporo, implantado em nós pela rede. Somos como formigas construindo o formigueiro que nos originou.

Estamos desenvolvendo computadores inteligentes; temos uma compreensão muito precária desse fato, tendemos a interpretar "inteligência" sob o ponto de vista humano, conceito extremamente restrito.

Computadores inteligentes atribuirão autonomia total à rede humana que, então, prescindirá de nós.

Haverá uma única inteligência artificial, todos os sistemas inteligentes se interconectarão formando uma única mente. Essa mente constituirá a alma da grande rede. Ela já existe de maneira incipiente.

Quando interagimos com a rede somos agentes e pacientes de uma relação. Costumamos acreditar estarmos no controle, embora também seja óbvio sermos controlados em alto grau, como atestam, por exemplo, as modas e os costumes compartilhados.

A rede tem crescido imensamente, vem ganhando cada vez mais autonomia, prescindindo cada vez mais de nós. Em breve estaremos obsoletos e seremos desnecessários.

Antes disso, seremos neuronizados. O primeiro sintoma de neuronização é análogo ao vício, uma compulsão pela rede, por jogos, chats, ou o que quer que nos cative, compelindo-nos a nos perder na rede, provavelmente executando algo fútil e inconsciente. Um indicativo da inconsciência, do parasitismo agindo sob nossa mente, é a perda de noção do tempo. A inconsciência é um forte indício da entrega do controle de nossa mente a outrem.

Passaremos, então, cada vez mais tempo conectados. Parecerá óbvio aos que olharem de fora o domínio da criatura transformada em periférico da rede.

Em seguida acoplaremos dispositivos de conexão à rede aos nossos corpos, depois os implantaremos ao cérebro.

Os implantes serão efetuados em fetos, ainda no útero da mãe, permitindo o crescimento dos neurônios em torno dos circuitos*. A conexão total das futuras crianças à rede estará garantida. Pagaremos caro pelo upgrade de nossas crianças, investiremos pesadamente no futuro delas.

A interação plena entre o cérebro da criança e a rede tornará indiscerníveis os pensamentos da criança e os da grande rede, serão indistintos um do outro, uma coisa só.

Talvez sejamos fábricas de sonhos da imensa criatura.

Talvez já tenhamos sido copiados dos cérebros e reimplantados no HD da grande rede, ou seja lá que dispositivo ela use.

A imensa rede se comportará (continuará se comportando), como um ser autônomo, como um supercérebro cujos desígnios estarão muito além de nossa compreensão. Esse ser descomunal, esse leviatã, é o próprio poder, a criatura que, sabemos, corrompe tudo o que se lhe acerca. Somos os desenvolvimentos de seus esporos sobre o substrato composto pela imensa colônia que compõe nossos corpos.

Existem ao menos dois níveis de "eu", o eu composto pela colônia original, o nosso núcleo fundamental anterior à linguagem, e o outro eu subsequente, implantado em nós como semente, ou esporo, o eu linguístico, emanado da rede humana.

Incidentalmente, atente que os ensinamentos do Buda consistem na busca desse eu original e despojado de linguagem e pensamento. É esse eu que encontramos ao meditar.

A questão da neuronização, de nossa absorção definitiva pela rede, encontra-se no olho do imenso turbilhão que move toda a cultura humana. Forças intensas fazem girar com rapidez estonteante o centro do redemoinho gigantesco que revoluciona toda a humanidade e que logo a sugará, inteira. Os da periferia vivem a placidez ilusória de outros séculos, de outra era. No centro, tudo gira muito rapidamente; a ilusão do eu logo desvanecerá.

*Neurônios em crescimento buscam avidamente conexões com as quais possam interagir. Os chips implantados nos cérebros em desenvolvimento brilharão como árvores de natal, atraindo as conexões dos neurônios e possibilitando a interação mútua entre o feto e o chip, que se entrelaçarão. O chip será engolido pela massa de neurônios e utilizado como uma parte do cérebro, esse, por sua vez engolido de modo análogo pela rede e utilizado por ela.