Deslocando a Retina

Há um deslocamento da retina quando se lança o olhar apenas para uma direção. Nesse sentido, esse "deslocar" significa que a possibilidade para outras visões está totalmente fechada, está bloqueada como se a passagem, o atalho ou a possibilidade de outras saídas, não são mais possíveis. Então, esse deslocamento, assim como o óleo sobre a água impede a mistura, o mesmo acontece quando se direciona o olhar a uma única direção. Olhar para o mesmo ponto, a mesma direção, transforma as infinitas possibilidades do "novo", numa aventura arriscada e, para muitos, suicida.

Fechar-se no seu próprio mundo, tapar olhos e ouvidos, podem parecer quimeras banalidades quando se quer exercer o sagrado direito de se permitir ao silêncio ou à solidão. Isso, todos nós temos o direito; temos essa prerrogativa. Mas não é disso que se trata quando se exerce "esse" direito sem que se perceba que olhar para a mesma direção só interessa àqueles que lhe querem dominar. Saber que você só olha numa mesma direção, saber que seu campo de ação circunscreve a um espaço pré-determinado, é, para eles, o triunfo do seu projeto de poder. Virar a cabeça, olhar ao redor e procurar alternativas, não consta dos seus planos. Manter a rédea sempre perto das mão é tudo, e nada mais, que lhes interessa. Para eles, não há nada mais temeroso e subversivo que pensar. Colocar em xeque toda realidade ofuscada por jogos, campeonatos, novelas e programas dominicais, quando o que se busca é exatamente sua cegueira ou sua passividade é sinal de que as coisas não estão andando direito. É sinal de que algo, e urgente, precisa ser feito.

Saber codificar suas intenções, saber antecipar-se ao golpe tramado na escuridão, saber que adiantar-se facilita a defesa, é, para eles, o tiro certeiro em suas, sempre más, intenções. E, então, tê-lo sob o constante olhar, sob os mais rígidos meios coercitivos, repressivos e punitivos, é tudo que lhes agrava. E eles nunca se esquecem de abrir novas prisões, construir muros mais altos. Aprimorar a vigilância, equipar seus soldados com os mais sofisticados meios, é, para eles o investimento mais primoroso, mais interessante que a Educação, a Saúde. Basta uma fagulha de revolta, basta o anúncio, ainda que tímido, de descontentamento, eles mandam seus soldados, eles estocam bombas e gases "dispersantes", mas, a bem da verdade, eles não querem que você pense; eles não querem que você questione.

E então, assim, como a pérola que só se mostra quando se rompeu concha, também, deixar-se ofuscar-se com medo de que outros segredos sejam revelados, não alivia a dor de saber que o silêncio é o refúgio dos covardes, isso não autoriza que nada fique na superfície e esconda o que está submerso. O brilho do sol não se mostra, sua luz não se mostra ante a névoa que encobre a retina. Apenas a tão limitada visão do que alcança a pobre silhueta de uma esfinge que se esconde nos nossos mais secretos e remotos sentimentos. O olhar disperso, quase sem vida, por ele só, triste e opaco, nos indica a inércia, a impotência da ação. Mas, não se deixar enganar por tais aparências, por mais verossímeis que possam parecer, já é, por si, um ato de rebeldia, um ato contrário ao que eles buscam, ao que eles planejam e lutam para implantarem.

A vista sem perspectiva, a vista bloqueada pela retina que não move, que permanece inerte como o sujeito pego em atos que lhe denunciam como se fosse o autor de crime hediondo. E o susto por ter sido descoberto põe-no a nu, quando toda sua vida se pautou pela retidão e interiorização de uma bem ensaiada forma de vida. Vida que se enquadra e se aceita como se o padrão, ou melhor, como se cada gesto fosse ele próprio o corpo em manifestação.

Eia! eia!, como o cavalheiro, dirá o insubmisso. Aquele que se recusa em curvar-se, mesmo preso ao grilhão, mesmo acorrentado como um animal, pela sua natureza, pela consciência em saber de que lado sempre está, aquele que não ignora sua gente e sua luta, esse, para eles é o alvo. Para atingi-lo, não pouparão meios e formas, não deixarão de usar de todos os recursos, lícitos e ilícitos, para que sua persona seja execrada, desconsiderada, até por aqueles que diziam lutar a seu lado. Mas, aquele que sabe porquê e por quem luta, não ignorando as artimanhas de que eles são capazes de usar, não cederá. Eia! eia! passará à galope, ou mesmo em marcha aquele que não se desgarrou da sua gente. E, então, como a aurora que chega para render a noite e lança seus primeiros raios de sol, ele, igualmente, com passos firmes e olhar certeiro, avançará. E no meio da multidão, ainda que vencido pelo cansaço, aquele trabalhador da fábrica ou do campo, sempre saberá que mesmo que eles dominem as armas, tenham seus soldados, tenham suas metralhadoras, aquele trabalhador saberá que eles não passarão.