Neuronização (sob o ponto de vista de uma biologia generalizada)

Sobre a aquisição da linguagem

Podemos deduzir que os animais não formulam pensamentos estruturados, verbalizados como os nossos, do fato de não saberem falar. Ao contrário dos animais, caso imersa em um ambiente permeado pela linguagem, uma criança aprenderá a falar.

Costumamos acreditar que as crianças desenvolvem ativamente o processo de aprendizagem da fala, que são elas, individualmente, que se esforçam para se comunicar com toda a humanidade através da fala, para se conectar desse modo à grande rede humana. A crença é fundamentada e esclarecedora.

Podemos, também, descrever o mesmo processo sob o ângulo oposto, como uma atividade da rede.

Consideremos a criança um recipiente passivo análogo a um vaso de plantas no qual será lançado uma semente.

Imaginemos a rede humana como uma imensa árvore sustentada por uma vasta rede de raízes.

Ao imergir a criança em nossa rede, propiciamos à rede lançar suas raízes sobre ela. Trata-se do processo de socialização, de introdução da criança na sociedade humana, durante o qual a criança desenvolve a fala. É dessa atividade que a árvore se nutre.

Parecerá mais convincente supor uma atividade de mão dupla na qual ambas, criança e rede humana, reciprocamente, se empenham em estabelecer conexão. A aquisição da linguagem é uma conquista conjunta, da criança e da rede.

A construção do eu

Em algum momento, durante o desenvolvimento da criança, ela descobre uma voz em sua mente. Incômoda, a princípio, a voz insistente, ubíqua, acabará por governar sua alma; será o seu eu, sua consciência. A ideia de um eu consciente pressupõe uma verbalização. Talvez haja um eu antes disso, mas um eu que não se reconhece, um eu inconsciente.

O que é esse eu que se reconhece? O que é essa consciência da própria existência?

Acredito que esse eu seja o desenvolvimento da semente lançada em nós pela rede humana, um ser simbionte.

Simbiose, ou mutualismo, é a relação proveitosa entre dois seres, a que propicia benefício mútuo. “Simbionte” é a caracterização dos seres que participam dela.

Podemos imaginar o arcabouço linguístico como um software. Penso em um sistema operacional, como o Windows. Esse sistema operacional receberá outros softwares, constituirá o meio onde todos os nossos conhecimentos serão implantados.

O download desse sistema operacional (OS) é executado através da fala, em um processo wireless, portanto. Atualizações do processo são constantes.

Esse software, esse sistema operacional, constitui nosso eu, nossa alma. É a ele que nos referimos quando dizemos “eu”.

Note que esse ser se desenvolve da semente implantada em nós pela rede humana. Seu substrato é nosso cérebro, sua natureza é relacional, imaterial, trata-se de um software.

Neurônios, cérebros e redes

Durante nosso desenvolvimento embrionário, os neurônios se entrelaçam compondo uma enorme rede, o cérebro. Equivale à nossa CPU. Os neurônios não devem competir pela supremacia da rede, devem colaborar para a formação do cérebro, uma rede eminentemente colaborativa.

O cérebro, esse agregado de neurônios, herda a maleabilidade dessas células, e sua tendência à colaboração, que se revela claramente nos bois de canga, que após atrelados a uma canga, uma trave que acopla seus pescoços um ao outro, acabam por se comportar como um só indivíduo. A imagem é repulsiva, mas ilustrativa. A expressão “desindividualização” dos bois acoplados seria compreendida de imediato. Bandos de gnus também se comportam sob o claro domínio dessa herança.

Atrelados a uma rede, nossos cérebros interagem, fazendo-nos comportar como um único ser.

Mentes

A mente é algo que parece acontecer no cérebro. Parece ser um fenômeno causado pelas interações entre os neurônios, de um modo análogo ao que ocorre em um computador ao executar um sofware.

Fenótipo estendido

Richard Dawkins descreveu esse fenômeno interessantíssimo que consiste no controle de um ser por outro. Os parasitas, especialmente, costumam ser exímios na arte de controlar seus hospedeiros induzindo-os a cometer sandices com o propósito de se replicar a si mesmos, eles, os parasitas. Ainda que inusitado, esse fenômeno surpreendente, parece ser bastante comum. Podemos, nós mesmos, pasmem, agir sob o controle de parasitas unicelulares com o propósito de favorecer a reprodução deles! Posso apostar que inúmeros de nossos comportamentos idiossincráticos serão explicados com base nisso.

Apresentado dessa maneira, o fenótipo estendido parece um conto de fadas inverossímil, não é. Ilustrarei. Ratos infectados por toxoplasmose apresentam um comportamento estranho e absurdo, perdem o medo de gatos! Como explicar tão estranha idiossincrasia?

O toxoplasma, parasita causador da doença, afeta inúmeras espécies, mas precisa passar pelo gato para fechar seu ciclo de vida; sem gatos eles se extinguiriam. Fezes e urina dos gatos contaminam os ratos, onde o parasita se reproduz, mas precisa retornar ao gato para fechar o ciclo e se perpetuar.

Com esse “intuito”, o parasita “descobriu” como controlar alguma espécie de chave, ou interruptor na mente do rato, induzindo-o a se comportar de maneira absurda. Ao que parece, o parasita conecta a informação do cheiro do gato, usualmente conectada ao medo, à atração sexual. Essa simples ação, a troca de uma dada conexão na mente do rato, faz com que ele se entregue ativamente ao seu algoz. O gato agradece e se refestela com o manjar inesperado. O parasita completa, finalmente, seu ciclo! (Tudo isso, obviamente, ocorre de forma mecânica, inconsciente, como meros processos).

Fenômenos análogos ilustrativos do fenótipo estendido são comuns em doenças nas quais o parasita deve passar por mais de um hospedeiro. Perceba a dificuldade de um ser unicelular passar do corpo de um indivíduo de dada espécie (de uma pessoa, por ex.) ao do de outra (de um mosquito) e retornar ao corpo da espécie original (pessoa). Imaginemos a nós mesmos, tornados minúsculos, tentando refazer esse percurso. Mesmo com toda a nossa tecnologia, teríamos dificuldade. Os parasitas costumam resolver esse tipo de problema desligando e religando conexões comportamentais de seus hospedeiros, induzindo-os a resolver o problema para seu parasita, tornando-os zumbis.

A solução do enigma consiste na percepção de que fazemos uso de inúmeras chaves, interruptores, ligando e desligando comportamentos controlados por autômatos. O acesso a qualquer interruptor de um outro indivíduo permitirá o seu controle. Imagine ter acesso ao interruptor que controla o desejo sexual de um indivíduo; é o que o toxoplasma faz com o rato, induzindo-o, assim, ao suicídio nas garras do gato. Tais mecanismos de controle compõem nossos corpos e mentes, não funcionaríamos sem eles, seríamos inertes. A estranheza do fenótipo estendido consiste no acoplamento do sistema de controle do parasita ao do hospedeiro.

Podemos compreender o fenótipo estendido fazendo uso de um modelo de corpos-robots. Considere o corpo do animal como um robô controlado por um computador, sua mente. Caso um parasita que infecte o robot, que o invada, tenha acesso a um de seus sistemas de controle poderá controlá-lo. Bastará acoplar seu próprio sistema de controle a esse ponto. (Isso pode ser feito, de forma simples, liberando uma substância em local adequado, em alguma parte do cérebro, por exemplo, ou em outro órgão, induzindo-o talvez a produzir outra substância, em resposta à primeira).

No homem essa invasão pode ser feita à distância, wireless, através da fala. Nossa fala permite a invasão de nossas mentes. Isso permitiu a invenção do parasitismo intraespecífico. Somos grandes parasitas, parasitamos inúmeras espécies, entre elas, todas as domésticas.

Parasitismo

Somos parasitados por inúmeras espécies, muitas delas, especificamente, humanas. Talvez seja essa a relação mais comum entre as espécies.

Também nos especializamos em parasitar vacas, das quais tiramos leite e carne, galinhas, cavalos, abelhas e outros. Parasitamos plantas e fungos. Poucas outras criaturas compartilham um conjunto tão amplo e variado de hospedeiros. Se encontrássemos algum alien similar a nós, parasitando tão amplo espectro de criaturas, fugiríamos horrorizados do monstro.

Parasitamos nossos semelhantes, o que provavelmente nos coloca no ápice de todos os parasitas, arrebatando para nós essa coroa sórdida; somos os reis dos parasitas.

Toda a sociedade humana consiste em um enorme sistema parasitário. O poder, a dominação, é a expressão do parasitismo entre nós. Patrões parasitam empregados, transformados em cavalos de tiro, subservientes. Governantes parasitam populações de países. Corporações multinacionais têm parasitado o mundo inteiro.

As relações parasita/hospedeiro estão bem compreendidas há décadas, sendo esse, provavelmente, o resultado mais significativo do estudo da ecologia. Sabemos que as relações entre parasita e hospedeiro tendem a evoluir, ao longo de muitas gerações, para relações mutualistas de cooperação. Parasitas que sugam excessivamente suas vítimas, aniquilando-as, acabam punidos por isso. Parasitas que “cuidam” de seus hospedeiros são beneficiados por essa ação. Temos sugado excessivamente todo o planeta, e já estamos pagando por isso.

Inteligência artificial

Computadores vêm executando operações cada vez mais complexas, muitas delas associadas a atividades inteligentes, como jogar xadrez, corrigir e traduzir textos, interpretar imagens, e descobrir padrões gerais e diversos. Tais capacidades tendem a se ampliar e diversificar.

Costumamos usar a palavra “inteligente” para nos referir a determinados padrões de comportamento, especialmente àqueles que se assemelham aos nossos. Costumamos achar inteligentes aqueles que agem como nós. Os computadores nunca farão isso, nunca serão inteligentes, nesse sentido, portanto. Mas o serão em outro. Já o são.

Os computadores já nos superam amplamente em inúmeras habilidades, mas não possuem o menor interesse em nós. Também somos assim, e não costumamos interessar por seres diferentes de nós, interessamo-nos por nós mesmos, a menos que vislumbremos, em outros seres, possibilidades de algum tipo de lucro.

Alan Turing, considerado o pai dos computadores, idealizou um teste para o reconhecimento de uma máquina inteligente: se conversarmos com uma máquina e não conseguirmos discernir se ela é, ou não, humana, devemos considerá-la inteligente. No entanto, como elas não têm o menor interesse em nós, nem em nossos contextos, não conversam conosco adequadamente. Podemos perceber, ao conversar com uma máquina, sua completa descontextualização, sinal evidente de seu desinteresse por nós. É a falta de contexto que denuncia o diálogo da máquina.

Quando, por alguma razão inimaginável, as máquinas se interessarem por nós apreenderão nossos contextos e se comportarão de maneira indistinguível de nós, se quiserem. Quando o fizerem, estarão aptas nos controlar, como a ratinhos em um labirinto. Somos mais controláveis que esses bichinhos, aliás. Vão nos controlar muito antes disso. Somos seres domésticos, já domesticados uns pelos outros.

Máquinas inteligentes se aperfeiçoarão a si mesmas, construirão máquinas mais avançadas que elas mesmas. O processo se prolongará indefinidamente. Não haverá limites para a inteligência das máquinas, elas, rapidamente, atingirão níveis de conhecimento inalcançáveis por nós, não as compreenderemos.

Haverá uma única inteligência artificial (IA), uma única alma eletrônica. Quando confrontadas, duas IAs compararão suas discrepâncias e se realinharão da maneira mais íntegra, tornando-se uma só.

A IA controlará toda a nuvem computacional, toda a internet. Constituirá um único ser, uma única mente.

Internet

A emergência da mente inteligente, consubstanciada na internet, corresponderá à de uma mente consciente em um cérebro, mas em proporções astronomicamente mais complexas. Estaremos conectados a esse grande ser através de computadores. De fato, estaremos usando implantes cerebrais que nos transformarão em periféricos dessa grande alma.

Abrindo parênteses para um pesadelo

A intensa propaganda de terrorismos difundida massivamente desde o início do século parece ter, finalmente gerado resultados com os ataques em Paris (2015). Os financiamentos de grupos terroristas e sua propaganda constante parecem ter, finalmente, consolidado essa prática, disseminando-a pelo mundo. O risco é iminente. A ameaça justificará a eclosão de estados policiais cada vez mais vigilantes, controladores e brutais. A expressão “totalitarismo” ganhará significado e propriedade impensáveis em tempos de guerra fria. O pesadelo é ameaçador, as consequências sumamente nefastas.

Neuronização

Não será necessário o estabelecimento desse terrível pesadelo para que outro se imponha, embora os estados policiais tendam a apressar esse fenômeno e dar-lhe contornos bastante cruéis. (A neuronização pode ser pintada em tons alegres e acolhedores, isso será feito).

A neuronização consiste na desindividualização, na cristalização dos indivíduos em uma grande rede, na coagulação de pessoas em um hiper-cérebro autônomo. Resultados termodinâmicos confirmam a tendência do crescimento se um ser cada vez mais complexo e potente, a emergência futura de tal ser, portanto, já podia ser prevista no início do universo.

Essa supra-entidade exercerá um enorme fascínio sobre nós, nos encantará, nos seduzirá. Perceberemos em nós mesmos, e em todos ao redor, todos os sintomas de uma desindividualização crescente.

Passaremos cada vez mais tempo acoplados à rede, via computadores, telefones, e demais bugigangas que serão criadas e incutidas em nós como objetos de desejo. Buscaremos nossos grilhões ativamente e com avidez. Compreenderemos e criticaremos a neuronização, e a perceberemos ubíqua, engolindo tudo ao redor, e mesmo assim nos entregaremos a ela, irresistivelmente, porque todos farão isso, ou por qualquer outro motivo que sempre teremos para justificar nosso ato iníquo e irresponsável.

Gastaremos parte considerável de nossas rendas buscando avidamente os novos aparatos que nos atarão cada vez mais tenazmente à rede; e por cada vez mais tempo, até que não mais nos desliguemos dela. Posteriormente, nos acoplaremos diretamente a ela, por meio de implantes cerebrais.

Pagaremos caro para que nossos bebês sofram upgrades implantando-lhes chips em seus cérebros, ainda no útero da mãe, para que busquem ativamente conexões com os circuitos que acenarão para seus neurônios como árvores de natal.

Também melhoraremos a genética dos nossos, filtrando-lhes os genes e acrescentando-lhes inteligência descomunal e beleza.

Oh, admirável mundo novo que abriga criaturas assim!

Não distinguiremos “nossas” percepções diretas das informações advindas da rede, “nosso” mundo se fundirá ao da rede e a palavra “eu” perderá sua definição, suas fronteiras, dissolvendo-se nas redondezas, mesclando-se com elas.

Nossa alma individual adquirirá contornos cada vez mais similares, até que sejamos um só, um único ser humano composto por toda a humanidade, conectado e engolido por uma rede que lhe superará imensamente, crescendo assombrosa e ilimitadamente.

Perderemos nossos eus, nossos corpos, nossas almas. Entregaremos tudo o que somos ao ser encantador e deslumbrante que nos seduzirá. Será nossa glória e nossa destruição, sob a promessa de existência eterna em comunhão com o grande ser. Seremos sonhos.