Trans-humanidades e neuronização
Algumas crenças estão tão profundamente arraigadas em nós que temos dificuldade em compreender que possam ser meras crenças, e que possam ser postas em dúvida.
Acreditamos, por exemplo, existir algo que chamamos de “eu”. Poucos de nós considerarão que isso seja passível de dúvida. Também acreditamos, sem conseguir duvidar, que esse eu seja uno, um só, e nos acompanhe durante toda a nossa vida, embora concedamos que o eu se modifique ao longo do tempo, especialmente na infância.
Os que estudam o assunto não têm tantas certezas, aliás, costumam negar tais pressupostos que nos parecem completamente impositivos. Costumam supor uns eus múltiplos e complexos, como inúmeras linhas emaranhadas, bem diferentes da linha única que acreditamos conduzir o nosso eu pela vida inteira.
Pressupomos que nossas ações sejam sempre determinadas por nosso eu, ou seja, por nós mesmos. Supomos fazer o que fazemos por decisão nossa.
Certas evidências contrariam esse pressuposto. Indivíduos sob hipnose podem ter a ilusão de estar agindo sob desígnio próprio quando cumprem determinações do hipnotizador.
Podemos, de fato, ser controlados, em certo grau, até por seres unicelulares que nos parasitem, induzindo-nos a comportamentos eventualmente injustificáveis.
Meu próprio modelo para o eu consiste em um robô habitado por uma profusão de “euzinhos” competindo para assumir o controle geral da máquina. Trata-se de modelo ingênuo mas ilustrativo, um conjunto de eus facetados competindo e se revezando no controle da máquina e da consciência.
Vendedores sabem roubar esse controle e impingir comportamentos injustificados em seus fregueses, induzindo-os a comprar o que eles próprios, os vendedores, desejam vender. Golpistas, em geral, fazem o mesmo. Após ter sido induzida a determinada ação, como a de comprar um bonde, a pessoa pode se surpreender consigo mesma, confessando não saber a razão de tê-lo comprado. A resposta correta seria: porque o vendedor o induziu a comprar. Nesse caso, o vendedor terá entrado na competição pelo eu do freguês e, momentaneamente, assumido o controle para efetuar a venda.
Profissionais de propaganda são capazes, há muitas décadas, de interferir coletivamente em muitos eus, simultaneamente, e à distância. Podem induzir um imenso conjunto de indivíduos a fazer algo completamente disparatado, como ficar aspirando fumaça.
Gostamos de acreditar sermos nós mesmos a decidir nossas ações, embora seja fora de dúvida que outros indivíduos possam inventar sandices, como o nefasto hábito de fumar, e impingi-los a populações inteiras, cada um dos fumantes acreditando ter decidido, por si, adquirir o hábito idiota. Visto de fora, fica absolutamente clara a imposição do hábito que não teria ocorrido sem indução externa.
Recentemente, os profissionais de marketing, aliados a espiões de guerra, adquiriram uma ferramenta poderosíssima. Podem avaliar, com precisão inaudita, as inúmeras ações dos internautas enquanto pilotam seus computadores e telefones. Podem medir precisamente o tempo gasto em determinada ação, e o interesse gerado por determinada imagem, ou som. Pode testar hipóteses e aperfeiçoar conclusões sobre comportamentos de indivíduos, podem cruzar informações aparentemente desconexas e descobrir relações inimaginadas entre processos e desejos supostamente desconectados.
Já existem dispositivos capazes de acompanhar, em tempo real, simultaneamente ao ato, as respostas faciais e oculares dos indivíduos. Informações sobre a dilatação pupilar, número de piscadas, tempo de atenção e outras relevantes para análises neurológicas já estão à disposição de vendedores, espiões e estudiosos. Aliadas a informações sobre deslocamentos e sobre a vida dos indivíduos, propiciam um instrumento de controle de mentes inimaginado décadas atrás. Tenha certeza que seu comportamento individual tem sido monitorado, estudado e testado. Tenha certeza de que suas ações têm sido testadas com o auxílio de técnicas análogas às usadas com porquinhos-da-índia, com mais sucesso em pessoas que em outros seres menos maleáveis. Também nossas crianças estão sendo intimamente estudadas e moldadas desde a tenra infância, tornando-se ainda mais precisamente manejáveis, controláveis, do que nós.
Temos passado um tempo crescente ligados a dispositivos, acoplados à rede, em breve não nos desvencilharemos deles em nenhum momento. Logo seremos induzidos, também, a incorporá-los em nossos corpos, implantaremos os dispositivos eletrônicos em nossos corpos, seremos induzidos a isso e o faremos alegremente.
Posso descrever certos eventos futuros iminentes de uma maneira que repugnará as pessoas. O repúdio delas, no entanto, se dirigirá mais à descrição, ao texto e ao autor das palavras, que aos eventos. De fato, as mesmas pessoas às quais repugnaria a descrição dos eventos que nos transportarão em breve à trans-humanidade serão encantadas pelo processo e competirão pela primazia do ingresso na nova era.
Trans-humanismo. Trata-se de um processo em andamento acelerado. Permitiremos e desejaremos incorporar em nossos corpos micro-engenhocas computadorizadas e aperfeiçoamentos genéticos. Em breve, pagaremos altíssimas somas pelo “aperfeiçoamento” genético de nossos bebês, e por seu upgrade químico e cyber-neural concernente em implantes computadorizados diretamente no cérebro. Nossos netos serão, em alto grau, bombados quimicamente, alterados genéticamente, e acoplados a redes via dispositivos neurais. Serão bem estranhos para nós, e não mais humanos, mas trans-humanos. Investiremos nisso com enorme cupidez.
Contraste as duas descrições:
a) um bebê sendo alterado geneticamente e recebendo implantes cerebrais que o conecte diretamente à grande rede, para se sujeitar a um banho químico posterior e a um controle neurológico quase total.
b) seu filho pode ser curado de doenças e falhas genéticas, além de receber um acréscimo de inteligência, saúde e capacidades físicas gerais. Receber uma nutrição enriquecida, superior à natural, capaz de fortalecê-lo imensamente. E, claro, conectar-se diretamente à rede, conseguindo, assim, explorá-la ao máximo.
Haverá pacotes de todos os preços; o combo econômico, incluindo eliminação de doenças e implante cerebral conveniente à dominação total será gratuito.
Novas descrições de tudo isso serão criadas pintando o evento em um colorido altamente sedutor que nos compelirá a investir pesadamente nas inovações. Desejaremos tudo isso com enorme avidez, quereremos o melhor para nossos filhos e netos.
Oh, admirável mundo novo que abriga criaturas assim!
Em seguida virá a neuronização.
Estaremos imersos na grande rede, seremos parte dela. Usaremos até o tempo de sono para downloads e upgrades.
Receberemos um apelo fortíssimo do conjunto da rede, dos centros de poder, de dominação. Isso ocorrerá desde a infância, tenderá a se iniciar ainda no útero da mãe (haverá uma tecnologia de implante muito pouco invasiva).
Há momentos, durante a infância, em que a criança se vê fortemente ameaçada, amedrontada, desprotegida. Adolescentes ainda costumam se ver sujeitos a drásticas alterações de humor que os atordoa e apavora. Todos os pais querem proteger seus filhos, evitar que passem por sofrimentos tais. Poderemos permitir que a rede se encarregue de impedir tais ocorrências, defendendo nossos filhos. Impedidos assim de defender por si, permanecerão eternamente dependentes do mesmo mecanismo externo de alívio psíquico. Para esses, a neuronização será total e irreversível.
Aqueles como nós, que experimentamos o mundo, teremos alguma chance de nos desvencilhar, em certos momentos, da imensa rede. Presos que estamos em um mundo do passado, retornaremos a ele durante breves e eventuais excursões, como em sonhos.
Apenas uns poucos índios manterão suas existências individuais. Serão índios, criaturas estranhas e anacrônicas, intermediários entre animais e trans-humanos. E mesmo esses receberão o aporte genético oriundo das criaturas encantadoras reconstruídas pelo engenho trans-humano.
O ponto de acumulação, a singularidade, também está prestes a ocorrer, e nada mais será como antes. Logo, a humanidade estará agregada em bloco a uma imensa rede, a um híper-cérebro descomunal constituído por nós, hoje indivíduos, mas transformados em híper-neurônios, e por computadores fabulosos, inteligentes, dotados de capacidades impensáveis, criadores de uma vastíssima cultura, de um vastíssimo conhecimento vislumbrado apenas superficialmente por nós, mas sob um brilho intenso e encantador, maior que tudo o que vimos ou sonhamos, maior que nossos desejos.
Individualidades se esvairão, e o conceito de eu designará apenas o híper-cérebro.