O Google e o gênio maligno
Uns séculos atrás, Descartes imaginou um gênio maligno, desses saídos de uma garrafa, a se divertir iludindo-nos, criando um mundo onírico, ilusório, no qual pensaríamos viver, com o intuito exclusivo de se divertir com a farsa.
A conjectura tinha um apelo mais retórico que real; tinha o propósito de dissipar qualquer dúvida eventual acerca da realidade de um mundo que nos tivesse sido presenteado por um deus sumamente bom.
Foi Philip Dick quem nos revelou, em fins do milênio passado, a possibilidade da matriz; de um mundo computadorizado indistinguível do real, no qual, provavelmente, estamos vivendo.
A malignidade do gênio cartesiano se resumia em sua natureza cômica, tratava-se de um ser divertido e curtidor, mas sem nenhuma graça aos olhos de muitos.
Os novos tempos nos acenam com malignidades inimagináveis, talvez, às criaturas pias de outros tempos, embora tamanha perfídia, como de costume, advenha de nossa própria natureza.
O engenho humano criou inúmeras maravilhas, estamos cercados por elas. Mas também criou a dominação, a escravidão, a tortura e muitos outros males. A dominação, o poder, é a origem de uma parcela considerável das mazelas humanas.
Com o propósito da dominação foi idealizado um programa de computador muito simples, mas custoso, quase impensável devido aos custos assombrosos. O programa consistia em interceptar todas as informações geradas na imensa internet, e descarregá-las em um recipiente (um disco) no qual poderiam ser vasculhadas, esquadrinhadas em busca de indícios de conspirações. A simplicidade do projeto consistia em aplicar as ferramentas tradicionais de busca no texto imenso obtido com a descarga da totalidade da rede. A dificuldade se baseava na imensidão do projeto. Descarregada toda a rede, bastaria procurar pelos indícios desejados, palavras como “bomba”, “explosivo” ou qualquer outra sob a mira do abelhudo, como nomes próprios, hábitos ou curiosidades idiossincráticas do próprio xereta. Esse programa surpreendente permitia bisbilhotar comunicações sobre pessoas, projetos, planos, e virtualmente qualquer assunto tratado através da rede. Tratava-se de projeto secreto de espionagem, guardado a sete chaves. A ideia verdadeiramente genial, ou maligna, consistiu na abertura do segredo. Entregava-se a ferramenta a todo o público, que se lambuzaria com a novidade. A glutoneria pela informação geraria os lucros astronômicos que financiariam com sobras a manutenção e o crescimento do empreendimento descomunal. Imersos, todos, na mesma sopa informacional, enredados, todos, na mesma teia descomunal e complexa, entregávamos aos bisbilhoteiros, com minúcias, satisfação e candura, todos os nossos hábitos; os que reconhecíamos e muitos outros. Tem certeza que sua câmera está desligada agora? Seu microfone? O microfone de seu telefone?
Talvez nos assustemos com a possibilidade de estarem bisbilhotando nosso telefone; compreendemos essa possibilidade. Desconhecemos as complexas determinações de padrões muito além de nossa compreensão, articuladas por máquinas gigantescas e poderosíssimas a bisbilhotar ininterruptamente os nossos hábitos. Não tenha dúvida de que certas peculiaridades de seu comportamento são conhecidas e previstas em muito mais detalhes do que você mesmo imagina. Você pode, por exemplo, e com muita facilidade, ser guiado até um determinado site, em um momento estabelecido, para clicar em certo ponto. Tenha certeza de que algumas previsões sobre o seu comportamento têm sido feitas com enorme precisão, até as respostas a suas dúvidas terão sido previstas. O futuro promete uma precisão ilimitada de nossos padrões de comportamento. Seremos controlados muito mais precisamente que ratinhos de labirinto. A imagem de um gato brincando com um ratinho ilustra com precisão a condição em que nos estamos metendo.
Temo um artefato que tenha sido criado com propósitos escusos, idealizado pelo poder, com vistas à dominação. O temor ao monstro será proporcional à familiaridade que se tenha com ele; os que não conseguirem distinguir sua face não o temerão.
Se percebêssemos a face do monstro imenso a nos perscrutar intimamente em tempo integral nos aterrorizaríamos.