Revelação
Tendemos fortemente a acreditar na existência de uma realidade e de um eu imerso nela, um eu que a observa. De fato, nem chegamos a acreditar nisso, mas pressupomos tais crenças, e apenas muito vagamente compreendemos o que seria não compartilhá-las.
Assim, pressupomos a existência de algo a que chamamos “eu” e que tem uma existência una e contínua, desde o nascimento até a morte. Não admitimos a inexistência momentânea do eu, por exemplo, quando dormimos, e nem que possamos ser duplos, triplos, ou múltiplos em um mesmo momento. Acreditamos que a realidade delineia um espaço e um tempo e nos situa em uma linha de evolução nessas dimensões. Aliás, é nosso corpo que situamos em locais, mas costumamos supor nosso eu encravado em nosso corpo.
Experiências psicológicas, no entanto, nos informam sobre um eu surpreendente mais estranho do que costumamos admitir. É difícil, por exemplo, atestar a unicidade do eu, aparentemente, bastante múltiplo sob vários aspectos.
Tenho então, apenas, uma vaga noção do que seja um “eu”. O melhor modelo que conheço para isso, a melhor metáfora capaz de esclarecer e ilustrar esse fenômeno ao mesmo tempo familiar e estranho é um programa de computador em execução. Essa afirmação terá chocado profundamente aqueles que não têm a menor ideia do que seja tal coisa. Os que compreenderam a afirmação perceberam, de imediato, certas similaridades entre os fenômenos referidos.
Creio que o eu seja um conjunto de conexões ativadas em um cérebro. Espero, em poucas décadas, a emergência de uma consciência na máquina, bastante análoga à nossa, diferente dela, também. Consideraremos essa consciência emergente definida por um conjunto de estados se sucedendo em uma rede de circuitos eletrônicos.
A transposição dos estados que compõem a rede cerebral definitória de um eu humano para dentro de um computador corresponderá ao download do eu para a máquina, permitirá a transposição de uma mente humana para o interior do computador. Imerso em um mundo virtual análogo ao real, um eu se comportará normalmente ali, pressupondo ser aquela a sua realidade.
Talvez a humanidade já tenha chegado ao ano 2500, construído computadores de capacidade astronômica e até sucedâneos desses, coisas inimagináveis. Talvez, então, tenha recriado um mundo do passado, o remoto século XXI, em simulações precisas e realistas. Se a humanidade não sucumbir em breve, tudo isso acontecerá, e todo o passado será reconstruído de maneira realista de modo que os que nele emergirem não distinguirão entre realidade e simulação. Talvez estejamos vivendo essa recriação do passado; talvez nossa realidade seja uma recriação virtual. O cálculo de probabilidades, aliás, nos assegura que seja assim. Chamemos esse o “argumento ouroboros”.
Nesse caso, o nosso eu será, literalmente, um conjunto de conexões em um circuito eletrônico, análogo ao que tenha existido em um cérebro. Tais eus serão transponíveis de um circuito para outro, recarregados. Tal aventura equivale à reencarnação. A sugestão de vida eterna torna-se trivial, exigindo, apenas, a manutenção do conjunto de bits definidor de um eu. Todas as especulações místicas, aliás, todas as conjecturas sobrenaturais, tornam-se compreensíveis e palpáveis nesse contexto. A revelação é esclarecedora.