As Taipas Centenárias e os Sujeitos “Invisíveis” da História
Quantos mistérios estariam escondidos nos subterrâneos da História? Quantos vestígios de histórias esquecidas que não são contadas nos livros camuflam-se na paisagem que nos acostumamos a contemplar? Histórias veladas de sujeitos invisíveis que fogem ao roteiro de vida das grandes “personalidades” e “heróis” cristalizados por interesses e perspectivas das famílias tradicionais e das classes dominantes. Nos compêndios que nascem dos apontamentos da historiografia oficial contemplam registros dos memoráveis feitos dos fatos e acontecimentos dos “grandes vultos” e negligenciam a vivência das populações marginalizadas subjugando-as ao esquecimento. Na compreensão do quebra- cabeça do passado existe algumas pistas, as fontes históricas: documentos, cartas, fotos, pinturas, imagens, livros, artefatos e objetos, relatos, vestimentas, entre outras evidências. Apoiando-se nas fontes e evidências históricas nos aproximamos de uma interpretação daquilo que aconteceu.
Em âmbito local me interesso sobre temas pouco pesquisados como a história das comunidades negras, quilombolas e indígenas, dos pescadores, das mulheres, em suma, dos sujeitos esquecidos da História. Nesses tempos fui instigado por uma foto, um relato e vestígios de um antigo muro de pedras. A foto seria de um escravo alforriado chamado Paulino Pereira da Silva que trabalhava como carreteiro e acompanhava os engenheiros ingleses que avaliavam o projeto portuário que tinha sido abandonado na Praia da Guarita. A imagem seria de 1905 e revela o contraste na postura dos personagens e os elementos culturais da época. Aparece uma junta de boi na charrete, os engenheiros com um fino traje da época, o carreteiro Paulino com vestimenta simples e pés descalços próximos de uma antiga taipa (muro de pedras sobrepostas utilizada pelos tropeiros nos caminhos do planalto) sinalizando a estrada de acesso a vila com o pano de fundo da torre piramidal conhecida como Guarita e a escarpa da Torre Sul. Conversando com o amigo Bento Barcelos da Silva, percebo em seu relato uma forte ligação identitária com o carreteiro Paulino e confirmo sua ligação familiar. Seu Bento é bisneto de Paulino e empreende uma pesquisa genealógica para mapear seus ancestrais negros que viviam na região sul da área urbana da vila de São Domingos das Torres, onde hoje está localizado o bairro Praia da Cal, São Francisco e o Parque da Guarita. Empreendemos uma saída de campo pelos locais das antigas moradias na encosta da Praia da Cal, ocupada pelas caieiras e a olaria que funcionou em meados do século XIX, e evidenciamos o perfil das taipas centenárias camufladas entre a trilha de acesso ao morro (que chamo de caminho das caieiras) e as edificações modernas. Localizávamos num exercício do olhar, atento e perceptivo a dispersão das moradias, as fontes d’águas e valorizávamos a inigualável paisagem das falésias e do mar somada a peculiaridade da arquitetura popular torrense. As casas das famílias pobres eram de madeira, paredes entremeadas de barro, piso de chão batido e cobertura de matéria vegetal como capins, folhas de palmeiras, tiriricas e outras plantas fibrosas. Residências simples de “pau a pique” diferentes das frondosas casas e sobrados de “pedra e cal” construídas na parte central da vila.
Nas memórias de Bento afloram as riquezas das histórias esquecidas no reconhecimento da sua ancestralidade negra e o processo de povoamento do entorno do Morro das Furnas e Praia da Guarita. Atualmente, conhecemos os pontos turísticos que adornam os cartões postais e por vezes desconhecemos os significados e valores históricos imbricados nesses territórios. Locais de moradias e áreas de trabalhos com uma dinâmica social singular na era pré- turística. Na famosa Praia da Guarita passava a estrada que ligava a Itapeva pela beira – mar no sentido do sul para o norte até chegar na vila. Segundo relatos, reafirmados por Bento, havia um portão na Praia da Cal que faria parte da estrutura das taipas que circundavam o Morro das Furnas na porção oeste estabelecido com o objetivo de proteger os animais, principalmente o gado, que eram conduzidos pela extensa planície costeira e no sítio das Torres, um posto de fiscalização militar, paravam e repousavam para seguir viagem aos seus destinos. Nosso informante recordava das habitações dos “Malarianos” (agentes de saúde que combatiam a malária) que estavam fixadas na década de 1940 onde hoje é o parque da Guarita e dos tempos de criança e as brincadeiras com as conchas no entorno das ruínas das caieiras na encosta do morro. Na infância residiu em uma das casas históricas encravadas no morro que pertencia a um cônego e remonta em gestos e palavras o cenário original da Praia da Cal em meados do século XX. Afirma que a Praia da Cal era uma comunidade negra oriunda da matriz do escravo alforriado e carreteiro Paulino Pereira da Silva com inúmeras famílias habitando nas imediações. Conheci a família dos Barros que moravam entre a Praia da Cal e Guarita e foram para o Bairro São Francisco quando houve as desapropriações para a criação do parque na década de 1970. Sempre desconfiei que uma parcela considerável da comunidade litorânea era composta por afrodescendentes provenientes de Santo Antônio da Patrulha/RS, Araranguá/SC ou Laguna/SC, os principais polos escravagistas da região no período colonial com o estabelecimento das Sesmarias. Os negros estavam dispersos nessa grande área entre a serra e o mar criando povoados autônomos como os quilombos fixados nas encostas florestais do interior. A motivação familiar leva Bento Barcelos a pesquisar, revirar a história e escrever novas páginas sobre a presença africana entre as Torres e nos instiga a querer saber mais sobre a vida daqueles que foram invisibilizados e ignorados nas narrativas históricas.
Publicado no Jornal Litoral Norte RS e Jornal A Folha.