Sobre uns gostos contemporâneos
Modismos passageiros têm algo de francamente frívolo. Somos levados, hoje, a gostar de algo que rejeitaremos amanhã. Não só a frivolidade, mas nossa passividade ao nos deixar guiar obtusamente pelos condutores do rebanho deveria causar perplexidade. Analisado com um mínimo de atenção, o processo não esconde sua insensatez, nem nós, nossa paixão pelo absurdo.
Constantemente, um grupo de criaturas fica encarregado de imaginar mudanças em nossos hábitos, enquanto o imenso rebanho humano aguarda as novas diretrizes. O propósito imediato desse exercício tolo é o lucro. Todos os nossos bens são decretados ultrapassados; nossas roupas, os produtos que usamos, e até os carros, esses trambolhos imensos, dimensionados para transportar ungulados, e que poderiam facilmente durar 100 anos, mas a que somos induzidos trocar anualmente. O propósito desse contrassenso é gerar lucro. O efeito colateral é o envenenamento do planeta.
Dia após dia, o rebanho imenso vai sendo guiado para um lado e para outro, sem nenhuma finalidade, exceto a de manter o rebanho sob controle. O exercício constante e sistemático faz parte de nosso adestramento. Nossos gostos e comportamentos vão sendo moldados conjuntamente.
Somos ensinados a gostar de objetos novos. Não há mais nada precioso; existem coisas caras, mas nenhuma preciosa, serão todas trocadas amanhã. Consideramos bonitas as coisas novas, feias as velhas. Coisas já usadas devem ser trocadas por novas; novas são melhores, fomos induzidos a acreditar nisso.
Parece óbvio, não? Coisas velhas, usadas, são piores que coisas novas, devem ser trocadas logo que possível.
Pode parecer inacreditável, mas nem sempre foi assim. Objetos desgastados possuem história.
Houve um tempo em que existiam preciosidades. Objetos raros, ou caros, eram preciosos, exigiam cuidado especial, tinham quase uma alma, teriam história. Imaginemos uma carruagem. Ao adquiri-la, a família incorporava um bem precioso que viria estar associada a inúmeros fatos significativos. Quantos namoros juvenis seriam evocados pela visão da carruagem, quantos outros eventos marcantes pontuando a vida das pessoas, quanta história? Que razões poderiam levar o possuidor de uma carruagem que pertenceu, talvez, a seus pais, a trocá-la por uma outra? O bem se tornava cada vez mais precioso ao longo do tempo. Duvido que a hipótese da troca da carruagem fosse sedutora, exceto para uns poucos cuja lembrança, eventualmente, tivesse se tornado amarga. E foi sempre assim com os homens, já que associamos os objetos aos eventos passados. Foi sempre assim, em todas as culturas humanas, isso faz parte da humanidade. Foi sempre assim até o século XX, quando o controle sobre o rebanho se tornou mais rígido e a sede por lucros mais voluptuosa. Então nos incutiram o culto ao novo, ao descartável, e fomos induzidos a trocar nossas preciosidades por descartáveis. E assim o fizemos, todo o rebanho, conjuntamente. E não temos mais nenhum objeto precioso; tudo o que carrega história torna-se tralha, lixo.
Acho que a maioria se lembra de uma ou outra roupa que usou em certa ocasião, mas a lembrança é quase irreal, como a lembrança de uma foto, diferente da que seria de uma roupa que tivesse sido usada em dezenas de ocasiões especiais (essa hipótese deve causar estranheza, mas roupas já foram objetos preciosos).
Talvez tenhamos que ir a uma fazenda ou algum local no interior para encontrar, ainda, objetos preciosos, cuidados com esmero. Lembro de umas lâminas de barbear que me foram mostradas, uns 20 anos atrás, em uma cidadezinha onde a luz elétrica estava chegando. As giletes, já muito gastas, eram quase preciosidades. O possuidor de preciosidades como aquelas revelava engenho e destreza em cuidar e conservar objetos, habilidades que enalteciam seu possuidor.
Fomos enganados e perdemos tudo isso. Fomos enganados e jogamos fora esses pedacinhos de nossas vidas que não importavam a ninguém, mas que a nós tinham relevância, e jogamos tudo no lixo, estupidamente. Lembra?
O plástico perde o brilho, o encanto, em pouco tempo. Na verdade, o plástico não costuma ter nenhum encanto. Mas isso não é uma propriedade dele, ou falta dela, é uma característica do seu tempo. O plástico foi criado no tempo do descartável, foi feito para ser assim. Não há nada especialmente ruim no envelhecimento do plástico, apenas fomos adestrados a acreditar nisso para trocá-lo seguidamente. A madeira também envelhece, mas costuma adquirir certa sisudez com o tempo, certa imponência. Móveis ou outros objetos de madeira antigos tendem a manter certa altivez, assim como os objetos de metal, usualmente mais pesados e robustos que os atuais. Mas os de plástico foram feitos para nos convencer, de imediato, a trocá-los.
Pode parecer absurdo, mas, poderíamos gostar de roupas velhas. De tempos em tempos ressurgem modas de roupas rasgadas ou descoradas, modas que me parecem francamente absurdas, mas que atestam o fato de que poderíamos apreciar roupas velhas e desgastadas, e que o fazemos quando nos é indicado pelos controladores de rebanho. Sob o enfoque do controle, os fatos se parecem ainda mais despropositados e contrários, tanto à nossa índole, quanto a nossos intuitos.
Poderíamos comprar nossas roupas e considerá-las parte de nossa riqueza, que acumularíamos até não precisar de nada mais. Mas devemos jogar fora todas elas, e adquirir outras novas.
Houve um tempo em que as pessoas possuíam um único traje de festa, usado em todos os momentos especiais. Aquele era seu traje, sua marca, fazia parte de sua imagem; permanecia presente em muitas de suas lembranças significativas.
Foi por ostentação que abandonamos esse hábito, e fomos compelidos a nos desfazer de roupas e outros objetos em perfeito estado. No início, apenas os muito ricos podiam fazê-lo, e o faziam para mostrar o quanto eram ricos, causando inveja, e o desejo, em outros, de repetir o ato. E então, todos passaram a fazer o mesmo, repetindo o ato leviano; a hierarquia social do rebanho costuma ser medida pelo tempo necessário para que o indivíduo repita o hábito do mais poderoso.
Os sinais do tempo em uma roupa bem cuidada poderiam indicar o esmero da pessoa, mas hoje são considerados indicativos de pobreza, e evitados. E assim vamos gerando lixo, e exaurindo o planeta.
Tendemos a pensar que uma roupa descartada corresponde apenas a umas centenas de gramas de lixo, quando, de fato, a confecção da roupa exige centenas de litros de água para gerar a planta que constitui o tecido, ou a extração do petróleo necessário à fabricação de seu material sintético, sendo a maior parte dos dejetos gerada durante a confecção do objeto.
Mas, já temos dificuldade em imaginar como uma mesma roupa poderia ser usada centenas de vezes, até ficar muito gasta, isto nos parecerá contrassenso.
Quanto aos nossos carros, deveriam ter sido feitos para durar 100 anos, ou 1000, isso deve parecer óbvio, se é que ainda precisamos deles. Defendo, há muito, que o uso de automóveis seja permitido, apenas, aos portadores de necessidades especiais.
Mas existem contrassensos ainda mais gritantes; populações do mundo inteiro têm sido induzidas a gerar uma garrafa plástica por cada gole de água que tomam; garrafas que permanecerão atestando nosso esbanjamento frívolo e desleixado por centenas de anos. Ridicularizemos os recipientes de ar antes que sejam colocados à venda para idiotas ávidos por alguma nova ostentação.
Poderíamos mudar nossos olhos e perceber que a beleza não está nem nos objetos novos, nem nos velhos, mas na maneira com que os olhamos. Poderíamos enaltecer a frugalidade e olhar com severidade o hábito perdulário do desperdício descomedido que envenena o planeta e o consome. Poderíamos atentar para as marcas do tempo estampadas em cada objeto, como atestados de sua história, como fossem peças de museu; necessitaríamos apenas um pouco de arte no olhar.
A beleza e o valor não são intrínsecos ao novo, como atestam todos os museus; ela está em nossos olhos. Temos transformado o mundo inteiro em uma imensa lixeira, cada vez mais feia, e exaurido todas as fontes de recursos, e o fazemos por mera estupidez, para seguir um rebanho obtuso, conduzido com o propósito de gerar lucros.
Desgarremos do rebanho.