AS PÉROLAS DO PARQUE DA GUARITA – TORRES/RS
O cartão postal da cidade de Torres, sem dúvidas, é a inigualável e virtuosa Guarita. Símbolo de ascensão e testemunho do tempo que deslumbra os admiradores que se rendem a tamanha beleza. As falésias torrenses tornaram-se atrativos turísticos internacionalmente conhecidos em que milhares de pessoas buscam apreciar sua pitoresca paisagem recheada de elementos naturais, culturais e históricos. Localizado na zona sul do perímetro urbano, o Parque da Guarita é um marco no movimento ambientalista gaúcho recebendo o nome do ecologista José Lutzenberger que lutou arduamente durante a década de 1970 para a efetiva proteção da biodiversidade e dos aspectos geológicos do peculiar Morro das Furnas, da frondosa Sentinela e a abrupta Torre Sul. Um complexo ambiental que congrega um singular projeto de valorização paisagística e de fácil acessibilidade onde os visitantes e moradores locais sincretizam a cultura popular dos pescadores artesanais e dos marisqueiros com a percepção dos turistas em meio aos surfistas que deslizam sobre as ondas e os impetuosos escaladores que desbravam os íngremes precipícios banhados pelo mar. Um panorama entrecortado pela moldura da Serra Geral recheado pelo tom verdejante dos remanescentes da Mata Atlântica e esbranquiçados campos de dunas que são constantemente assediados pela dança das marés. No colo dessa paisagem surgem fotografias surreais, nascem poesias e canções nos corações apaixonados e verdadeiras pinturas eclodem do imaginário dos artistas.
É perceptível o pulsar da cultura pesqueira sobre as torres naturais, uma das permanências da História que brota na vivência das populações primitivas que habitavam o litoral norte do Rio Grande do Sul há cerca de 4.000 anos atrás. Transformaram-se as técnicas e materiais e aprimoraram-se os saberes-fazeres desse paciencioso ofício de interpretação do clima e do oceano. Os primeiros pescadores- coletores e caçadores que exploraram os recursos litorâneos construíam verdadeiros monumentos de conchas conhecidos como Sambaqui (em tupi guarani significa “samba ou tamba” = concha e “ki” = amontoado). Eram comunidades adaptadas ao meio ambiente costeiro e deixaram vestígios arqueológicos muito interessantes, a exemplo das fascinantes esculturas elaboradas em blocos rochosos denominados “Zoolitos”, inclusive o município de Torres é reconhecido pelo potencial arqueológico dos seus sítios. No período pré-colonial transitavam pela região agrupamentos de caçadores-coletores que migravam do interior para o litoral e a difusão dos povos horticultores e ceramistas em grandes aldeamentos como os guaranis e kaingang. Na praia da Guarita existia um sambaqui que evidenciava uma diversidade de vestígios arqueológicos registrando sepultamentos, artefatos líticos e fragmentos de cerâmica nas camadas superficiais, onde atualmente funciona o estacionamento do parque. No período colonial avistavam e passavam pelo sítio das Torres os navegadores em alto mar, os jesuítas, tropeiros, viajantes por via terrestre e destacamentos militares durante os séculos XVII, XVIII e XIX. A imigração europeia fundou as colônias alemãs de São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas a partir de 1826 e a colônia italiana em Morro Azul em 1890.
As pérolas do Parque da Guarita são os lugares de memórias dos pesqueiros mantidos e perpetuados pela tradição oral e os costumes da população local expressas nas áreas de trabalho. Ao norte do Morro das Furnas há recantos maravilhosos como a pontezinha de madeira e o Portão, chanfradura rochosa arqueada demonstra o poder do tempo e a sutileza da natureza que esculpiu o costão da Praia da Cal. Durante o século XIX funcionava uma olaria que fazia telhas e tijolos de barro e alguns fornos de processamento e queima das conchas para a produção do cal, as famosas caieiras. No período colonial existiam taipas (muradas de pedras sobrepostas) que delimitavam uma área de repouso de animais que os viajantes e tropeiros utilizavam onde hoje é o parque da Guarita. No cimo do penedo alongado encontra-se um lago natural de água da chuva onde os trabalhadores da olaria retiravam a argila, matéria- prima tão desejada como revela um documento histórico de 1844 assinado pelo Cel. Francisco de Paula Sores de Gusmão, responsável pelo povoamento da região. Na banda leste, no complexo das Furnas foi instalado o primeiro Datum Altimétrico do Brasil, o Marégrafo de Torres em 1919 que teve medições até 1921. Em 1958 foi transferido para o porto de Imbituba no litoral de Santa Catarina. O local onde foi instalado o marégrafo era na embocadura da Furninha onde ainda é possível evidenciar os vestígios e sulcos nas rochas. O que desperta fascínio neste sítio encontra-se no interior desta furna onde se localizava o marégrafo. No lado direito de quem entra na furna, existe um painel com inscrições históricas. Na parede de basalto, foram encontrados muitos nomes inscritos que acompanhavam a data da inscrição. Os nomes legíveis mais antigos pertencentes à Deoclécio Godinho Porto (1- 4- 1917) e Walter Robenhond (16- 2 - 1918) – registros entalhados com técnicas de picoteamento, inclusive com refinada letra cursiva no caso do último nome citado - , datas que coincidem com as primeiras décadas do século XX. Na escadaria da Furninha, constata-se diversos nomes e datas inscritos que iniciam nas décadas de 1920, 1930, 1940 até rabiscos mais atuais. As escadarias de acesso aos pesqueiros do Diamante, Furninha e Furna Grande foram construídos em 1957, exceto a escadaria do Saltinho em 1992. No local de acesso ao Marégrafo de Torres (atualmente sem escadaria entre o Diamante e a Furninha), há o registro “H. Rieger 10.3.9 1927”. No acesso à Furninha destacam-se “Evory 1923” e “Mario D. Pilla 9. 23 1929” entre outras de décadas posteriores. Chegando na paradisíaca Praia da Guarita a paisagem foi deturpada por um projeto portuário inacabado. Durante a primeira República, inaugurada pelo Mal. Deodoro da Fonseca entre 1889 e 1891, projetos portuários ambiciosos para o Sul do Brasil estavam na pauta de governo. Em Torres, ponto estratégico no litoral norte, a praia da Guarita foi escolhida pelos engenheiros e especialistas devido a abundância de matéria-prima fornecida pelas elevações rochosas. A obra não teve conclusão, pois Deodoro da Fonseca não cumpriu seu mandato. Os aspectos materiais do porto marítimo de Torres, ainda são vistos na base da Torre Sul. O molhe que adentrava o mar, já não tem a mesma proporção. A área de extração de matéria-prima para a construção do porto é chamado de Ponte, uma referência histórica devido aos trilhos que transportavam as rochas para o outro lado da praia da Guarita no período da construção do porto. Atualmente, não há vestígios do suporte do trilho ou de algum vestígio da citada Ponte, apenas à memória do período da empreitada. O abandono da obra teria sofrido o impacto das movimentações de tropas da Revolução Federalista (1893-1895) na região litorânea. Em trabalhos de campo foram localizadas 67 evidências das explosões na porção sul do Morro das Furnas (Torre do Meio) a Pedreira do Porto, local conhecido como Ponte e na banda leste da Torre Sul próximo à base do quebra-mar. Muitas pérolas podem ser encontradas nas histórias e belezas naturais, na caminhada a beira mar ou nas trilhas sobre os morros, reverenciamos a cultura popular no sabor da “mariscada” e aspiramos o sonho de Lutzenberger: PRESERVE TORRES!
Texto produzido para a Revista Penélope edição verão/2016.