Aos novos tempos
Somos replicadores e, do meu ponto de vista, essa é nossa característica mais fundamental.
No início do século XX foram desenvolvidas tecnologias capazes de desequilibrar fortemente essa nossa condição através de mecanismos amplificadores.
Se um grilo encontra um microfone, torna-se uma grande estrela entre os grilos, encantador, irresistível aos olhos, ou ouvidos, de todas as fêmeas.
O cinema teve esse mesmo efeito sobre nós. Acreditamo-nos muito espertos, mas não passamos de macaquinhos presunçosos.
Entre os primeiros filmes sonoros, a maioria se assemelhava a documentários sobre os rituais de corte de nossa espécie.
Somos criaturas eminentemente visuais, razão pela qual preferimos cortejar em meio a cenários exuberantes. O cinema e as revistas de um século atrás consagraram o carro como moldura ideal para a corte. Forjaram a imagem de um homem barbeado, e emoldurado por um carro enorme. Conseguir tal imagem equivaleria à obtenção de um microfone por um grilo. Um homem assim emoldurado receberia enorme atenção das fêmeas humanas.
Um replicador humano da época tenderia então a buscar o dinheiro necessário para adquirir a moldura de um carro e o cenário de hotéis em belos locais.
Um macho humano que adquirisse tal imagem tenderia a ser admirado e desejado por muitas fêmeas.
O ponto de vista evolutivo privilegia o papel dos machos por serem eles capazes de se replicar muito mais eficientemente que as fêmeas. Um macho humano é capaz, em princípio, de ter milhares de filhos. A vantagem fundamental de uma fêmea humana mais bela que outra consiste na capacidade de escolher seus machos. A capacidade de obter favores de um maior número de machos também é significativa. A vantagem de um macho sobre outro se consolida sob a forma de um maior número de descendentes.
Alguns atores e cantores, utilizando esses amplificadores, à maneira dos grilos, obtiveram enorme sucesso reprodutivo, chegando às centenas de descendentes. De um modo ou outro, a compulsão pela replicação está inscrita em nós, mesmo que eventualmente truncada. A obsessão com a própria imagem é uma consequência direta disso.
O século XX transcorreu, em larga medida, sob os auspícios e determinações de tais princípios.
As palavras acima podem parecer tolas, deslocadas, inapropriadas, absurdas; podem ser acrescidas de inúmeros outros atributos pouco elogiosos e até mais contundentes que estes. E mesmo assim, pintam uma parte considerável do mundo que criamos para nós mesmos. Temos vivido, em larga medida, para a construção de uma autoimagem, obsessão atávica fundada em propósitos replicativos ancestrais; somos obcecados por nós mesmos. Não somos lá grandes coisas.
O século XXI nos apresenta uma nova possibilidade, os novos tempos nos dão voz. Estamos deixando de ser a foto de uma pessoa emoldurada por carro ou por outras molduras e cenários, estamos ganhando conteúdo.
Temos tecido uma imagem de nós mesmos, agora, muito mais “recheada” que um álbum fotográfico.
Nossa “linha do tempo” descreve nossa história. Oriundos do século XX, somos personagens emudecidos, pouco temos a dizer. Naqueles tempos enfumaçados nos deixávamos calar pelos meios de comunicação de massas, permitindo ter sido eles, sempre, a falar por nós; eram nossas vozes, e apenas os ecoávamos.
Os novos tempos nos permitem recuperar o arbítrio, permitem retomarmos as rédeas de nossos destinos, podemos agora ter voz. Atente existir, concomitantemente, arapuca nefasta, constrangedora, capaz de nos engolir por completo, de roubar nossas almas e nos trancafiar em jogo, ou cenário restrito, para nos deixar ali, cativos, pela vida inteira. Grassarão arreios e cangas eletrônicas, e iscas para quem queira encilhar-se a si mesmo; multidões desprotegidas cairão vítimas de tais engodos.
Mas temos os meios, temos os instrumentos. Estão à nossa disposição. Sob certo sentido, estamos riquíssimos.
Qualquer pessoa pode ter hoje o equivalente ao que teria sido uma super gráfica nos anos 80, bastando para isso possuir computador e impressora. Com isso, apenas, temos à disposição um conjunto de recursos superior à de qualquer gráfica de 50 anos atrás.
Também podemos ter um estúdio de som mais equipado que os melhores daquela época. Bastará colhermos na rede alguns softwares gratuitos. Um teclado ajudará. Poderemos então produzir, sozinhos, discos com qualidade superior à de então.
O cinema era caríssimo. Com uma filmadora simples podemos ter mais recursos que os maiores estúdios de TV ou cinema desse mesmo tempo.
Assim, de posse de um computador, impressora, câmera filmadora, um teclado, e softwares gratuitos, temos à nossa disposição algo maior que qualquer conglomerado de comunicações possuía nos anos 80. Teremos todo o equipamento necessário para produzir vídeos, discos, livros, jornais, revistas, documentários, filmes... poderemos, além disso, distribuir nossa produção para o mundo inteiro. Realmente, podemos ter voz.
Também temos ao nosso alcance um imenso acervo de livros, vídeos, músicas e obras de arte em geral. Temos cursos de línguas, e outros à disposição, e canais de comunicação com centros de todos os tipos pelo mundo inteiro.
Mas a riqueza não consiste em possuir esses bens. Sua posse nos permite deixarmos de ser a foto emoldurada pelo carro, consagrada tempos atrás. Podemos agora nos apresentar ao mundo como um ser independente, produtor de ideias, não um mero papagaio reprodutor do discurso da TV. Podemos mostrar nossa própria voz, nosso mundo, nossa verdadeira riqueza.
Venho vaticinando uma revolução iminente; creio que viveremos, agora, tempos revoltos, de grandes mudanças. Creio que, em breve, mudaremos nossos valores. Torço para que um dos traços mais marcantes dos novos tempos venha a ser o retorno de nossa voz, de nosso arbítrio. Penso que o consenso fabricado pelos meios de comunicação será demolido, que o imenso muro de mentiras ruirá de uma só feita. Consolidaremos então uma babelização, uma multiplicidade de ideias e valores.
A velha foto com o carro simbolizará, nos novos tempos, um passado ao longe; incompreensível e distante.
Continuaremos, então, replicadores; machos e fêmeas humanos, e continuaremos a alardear nossas virtudes, como os grilos, e todos os outros. Mas descobriremos microfones mais eficientes que os do passado.
Não bastará ao macho humano plantar-se à porta do carro com o rádio ligado em alto volume amplificando vozes de outros. Será exigido de cada um que se pronuncie, que revele seu conteúdo próprio.
Guiados por novos princípios, penso, por novos valores, construiremos linhas do tempo muito mais ricas que as de outrora, constituídas por meia dúzia de fotos convenientemente emolduradas. Constataremos, então, a pobreza imensa desses tempos de opulência. Como eram pobres aqueles que trocavam seus carros imensos anualmente. As estranhas personagens do século XX se nos assemelharão a uma antiga nobreza caricata e empoada. O uso de carros imensos, absurdos, se assemelhará ao de enormes perucas, a vestidos imensamente incômodos mais largos que portas. A ostentação do século XX se igualará ao ridículo de outros tempos análogos.
E retornarão os heróis, eles sempre retornam. E não ostentarão espadas nem carros, e nem perucas empoadas. Ostentarão, paradoxalmente, o próprio despojamento. Erguerão suas belas vozes, qual novos bardos, para proclamar suas próprias ideias, suas próprias visões de mundo. Terão construído mundos e alardearão o fato. Pintarão imagens, tecerão vídeos, defenderão causas e ideias. Comporão histórias, canções, objetos e cenários, e, sobre todos os outros feitos, engendrarão a própria vida, a maior obra possível, tecida momento a momento, cuidadosa e impolutamente, sabedores de que não há esquecimento, nem ocultação. A riqueza será, então, encontrada nas mentes, ela não cabe em outros locais.
Aos novos tempos!