Sobre hábitos e absurdos
Conduzimos nossas vidas guiados por nossos hábitos. Poderíamos nos orientar pela razão, mas não o fazemos, preferimos nos manter aferrados a uma normalidade definida pelo costume.
Também definimos o absurdo em contraposição a nossos hábitos.
Consideraríamos um enorme absurdo o ato de comer carne humana, não o fazemos. Se o fizéssemos cotidianamente, acharíamos o hábito muito natural, quase todos nós o defenderíamos, por um motivo ou outro, e continuaríamos comendo carne humana com naturalidade.
Comemos alguns animais com muita naturalidade. Bois e galinhas, por exemplo. Mas nos indignamos com o hábito de outros povos de comer cachorros. Tivéssemos o hábito de comer cachorros, gatos e cavalos, e criar porcos em casa, e consideraríamos tudo isso muito natural e aceitável.
Por aqui, um enorme contingente reza para um deus bem estranho. Uns deles insistem muito no fato de ser esse o único deus, ainda que, absurdamente, ele próprio seja 3, e viva rodeado de um enorme panteão de outros deuses menores. Os religiosos bem sabem a força do hábito em nossas crenças. Fôssemos habituados a rezar para demônios ainda mais absurdos que nossos deuses e o faríamos com a mesma naturalidade.
Adestradores de animais tratam de incutir nos bichos um conjunto de disciplinas cotidianas, de hábitos. Sabem que, tendo se habituado a determinadas sujeições, resignam-se a elas. Tendo sido montado ontem, o cavalo permitirá ser montado hoje. Um breve período sem a imposição do hábito levará o animal a se habituar ao oposto, tornando-se indócil, selvagem, passando a evitar ser montado.
Alguns bois “vestem” o arreio por si, sem necessitar auxílio, e o fazem diariamente, condenando-se a si mesmos à eterna labuta.
Somos adestrados por nossa família, pela escola, pelo trabalho, pela televisão, por religiosos e mais um pouco no restante de nossa vida social. A televisão parece ter papel relativamente menor que outros, mas atua sobre todos os adestradores, de modo que nossa família, professores, e todos os outros, foram já, previamente adestrados pela TV, eles também. Assim, mais que os outros, a televisão se encarrega de remodelar nossos hábitos, transformando-os, atualizando-os.
Agimos conforme as instruções da TV, consideramos o que vem de lá natural e sensato, permitimos que ela nos modele, nos adestre; estamos habituados a isso.
Consideramos outros comportamentos absurdos e impróprios. Uma pessoa que não se submeta ao adestramento proposto pela televisão é considerada antissocial, absurda e evitada por todos.
Alguém que baseasse seu comportamento em considerações racionais agiria de forma imprópria. Devemos nos vestir e nos comportar da maneira apresentada na televisão.
Somos como cães adestrados, nos habituamos a isso e exigimos nos manter assim. Exigimos isso a nós e a aos outros, aliás.
Creio haver em nosso mundo uma enorme insatisfação. Suponho que a maioria de nós permaneça por toda a vida buscando metas absurdas, alvos completamente fora de propósito, adequados apenas a manter a pessoa bem adestrada. Suspeito que, excetuando os muito pobres que nesse momento estão buscando o pão com avidez, a vida da imensa maioria das pessoas seja o mais completo despropósito, definida apenas pelo dia de ontem. Acredito que a maioria busca hoje o mesmo que buscou ontem, mas apenas por hábito. Busca algo que não tinha sentido ontem e continuará não o tendo hoje.
Bem, deixemos disso e liguemos a TV.
(Existem outras possibilidades, a libertação econômica adquirida por muitos, hoje, permite inúmeras possibilidades. As pessoas são muito diferentes e o caminho de um não se adequa a outro, não havendo, por isso, uma solução única e conjunta para todos. O primeiro passo, no entanto, é comum, consiste na constatação do fato, na conscientização do absurdo, e na busca de um caminho próprio, definido por si mesmo, diferente do impingido pela televisão. A televisão é uma forma de dominação, existe para manter o rebanho dócil e sob controle. Tem-nos adestrado a um consumismo tolo, sem sentido e insatisfatório. Estamos habituados a uma vida absurda, a mudança de hábito é o primeiro passo em busca de uma nova vida. Não podemos permitir nos habituar com um cotidiano incômodo. Se seus hábitos atuais são insatisfatórios tente mudá-los. Lembre-se que nos habituamos aos maiores absurdos e que há quem lucre com o modo de vida insatisfatório que você tem levado. Busque e mantenha hábitos que o alegrem e que o deixem satisfeito, eles existem. Os sistemas de dominação que estão sendo engendrados através dos computadores são muitíssimo mais efetivos que a televisão, atente.).