Não-linearidades contemporâneas: em defesa do individualismo

Vivemos tempos incomuns. Antigamente, as coisas demoravam muito a mudar. Mil, 2 mil anos atrás, um homem nascia, vivia e morria em um mesmo mundo, vivenciando eventuais mudanças tópicas apenas após alguma catástrofe cíclica, ou derrota em guerra.

O século XX evidenciou mudanças nítidas durante a vida dos indivíduos. Para a maioria das pessoas nesse século, o mundo havia mudado significativa e irreversivelmente durante o transcorrer de suas vidas. O século XXI nos impõe, agora, sucessivas mudanças. As diferenças entre as pessoas mais velhas e as mais novas se acentuam, vivem, claramente, em mundos diferentes. Creio coexistirem hoje pessoas oriundas de 3 mundos, vivendo paralelamente umas às outras. Logo seremos 4, 5, e os mundos se multiplicarão. Haverá pouco diálogo possível entre os habitantes dos diversos mundos, pouca compreensão entre eles. Mas há também a massificação. Viveremos agora a massificação total, absoluta.

Deve haver um contingente significativo de pessoas, hoje, vivendo no interior de videogames. Suspeito haver uma fração considerável de pessoas que, tendo imerso ali, ainda crianças, permanecem submersas em mundos virtuais paupérrimos. A massificação a que estão submetidas não tem precedentes.

Estamos prestes a nos conectar a uma nova rede. Temos poucas defesas contra ela. Seremos transformados, a maioria de nós, logo, em periféricos dessa rede.

O google já lançou um artefato que nos conecta à rede, na forma de óculos, virão outros formatos cada vez mais intricados. Esse artefato terá o duplo papel de informar à rede o estado atual do indivíduo, e a ele suas diretrizes de ação. Consumidores serão adestrados a otimizar o próprio consumo, gastando o máximo que puderem gastar, mas usufruindo também, ao máximo, de uma ascensão social associada a esse consumo. Guiados por seu mentor virtual, pela rede, os consumidores maximizarão a ascensão social conseguida com sua renda. Serão guiados e avaliados pela mesma rede, não haverá como fugir desse padrão.

A ascensão social máxima será conseguida, assim, obedecendo cegamente as instruções impostas. A melhor escolha será não escolher nunca, mas se deixar levar. Impossível escolha melhor. Escolhas individuais serão punidas, avaliadas com má vontade. Tudo levará à aniquilação da individualidade.

Uma multidão crescente mergulhará no mundo virtual. Os que ainda ousarem buscar uma vida social real, não virtual, o farão através da cortina da virtualidade, através de seus óculos cerebrais. Logo os chips internos estarão disponíveis e ubíquos.

O primeiro passo será a periferização, a transformação das pessoas em periféricos acopláveis à rede. O segundo passo será a neuronização. Seremos transformados em partes da rede, englobados por ela. Comporemos a rede como os neurônios compõem o cérebro. Seremos controlados pela rede como os neurônios são controlados pelo cérebro.

A neuronização do homem, nossa assimilação a uma grande rede, como parte dela, não impedirá seu crescimento cibernético, ao contrário, a alimentará. A parte eletrônica da rede continuará crescendo exponencialmente, tornando-nos cada vez mais dispensáveis. Logo nos tornaremos periféricos obsoletos, como leitores de disquetes.

Lentos demais para acompanhar o restante da rede, seremos expurgados do cérebro, e nos assemelharemos, então, mais a líquens que a neurônios. Talvez seja a liquenização o nosso destino final.

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Mas a eternidade é muito longa e tediosa, deve haver lugar, nela, para individualidades, para todas as existências únicas. A incorporação à rede nos promete a eternidade. Talvez possamos ser incorporados à rede como um conjunto de estados, talvez nossos eus não passem disso.

Esta ficção absurda não tem o menor sentido para os antigos, para os que viveram em eras passadas, desconectados. Os advindos dos novos tempos, os que sempre viram o mundo sob filtros virtuais, admitirão com naturalidade tudo isso, e se impacientarão com a lentidão e a linearidade dessas ideias.

A multidão massificada permanecerá amorfa na medida de sua similaridade. Momentos singulares perdurarão. As vivências humanas são únicas.

Compomos, no decorrer de nossas vidas, uma longa história, única, constituída por momentos singulares. Algumas vidas se assemelham, se diluem amorfas na multidão, como as dos gnus. Outras se distinguem levemente, se diferenciam. Penso que as diferenças possíveis sejam mínimas, e ainda assim, significativas ante a eternidade.

Mas os indivíduos guiam os seus destinos, compõem, eles mesmos, suas próprias histórias, são agentes de suas vidas; os que se deixam massificar são controlados, entregam seus destinos a um fluxo banal, a um caminho opaco, empoeirado pelos passos da multidão que os precede. Neuronizados, liquenizados, transformam-se em partes do cenário, seres passivos, sem atuação.

Observados de longe, todos acabam por perder a individualidade, mas haverá sempre mais brilho nos que traçam suas próprias rotas.