Ziraldo tem toda razão

“Ler é melhor que estudar”, já disse Ziraldo.

Aproveitando o mote dessa famosa frase, de brasileiro tão ilustre, autor do clássico infantil O menino maluquinho, pode-se afirmar que todos que adquirem o gostoso hábito da leitura, que leem um pouco todo dia, com satisfação, jamais terão de se matar de tanto estudar.

Pode até parecer assustador, mas leitura, para alguns, é quase sinônimo de tortura, talvez pelo fato de que rime com essa hedionda palavra. Para alguns, tal ‘tortura’ é um fato inconteste... Mas leitura é, também, conhecimento de mundo, não só de palavras (como muito bem já o disse Paulo Freire), apesar de estas possibilitarem, sim, uma conformação mental de mundo para nós (o que o semioticista russo Iuri Lotman denomina de ‘modelização primária do mundo’). Assim, as palavras lidas remetem a mente para a reflexão sobre o mundo, sobre as pessoas e sobre o que elas pensam. Então, leitura provoca renovação, inovação, faz emergir o novo pela crítica construtiva e dialética do já-dito. Do já-pensado, nasce o nunca-até-então-pensado, portanto.

Ler é viver. Ler é pensar. Mas a leitura não deve ser entendida, aqui, apenas como processo de decodificação da palavra escrita. Nem tão-somente acrescente-se a esse processo a decodificação de palavras oralmente veiculadas. Acima disso, acrescente-se o entendimento de tudo a partir de um processo de interpretação da realidade. O que for possível de se decodificar, é possível de se interpretar. De se ler. No entanto, antes desse estágio, o ser humano primeiramente capta sensações de origem externa (pela visão, audição, olfato, tato e paladar) e interna (como fome, sede, dores em geral, mal-estrar, etc.). Essas sensações “viajam” pelo sistema nervoso sob forma de impulsos elétricos, de sinais decodificáveis que chegam ao ‘cérebro em funcionamento’ (à mente), que os interpreta e dá remate ao processo, reagindo, respondendo de alguma forma aos estímulos, tanto de origem interna quanto externa.

Mas aí é coisa já técnica, científica ou filosófica -- talvez até metafísica -- demais. Nem sei por que cargas d’água me pus a divagar por plagas tão distantes do meu reles conhecer do comum metier de leitor (Mas nunca de ledor! Perdoem-me a empáfia...) ou educador de língua e literatura maternas. Se bem que, nos paradigmas atuais, é mais que imprescindível que tentemos, todos nós mestres, meter nossa colher de educadores na região nebulosa da intangível transdisciplinaridade, surgida dos escombros da nunca alcançada interdisciplinaridade. Não alcançada, diga-se, porque nunca buscada de fato, principalmente por causa da falta de projeto das secretarias de educação, que almejam mudar sem investir capital: mesquinharia com o futuro do povo do município, estado ou país! Fosse uma campanha eleitoral, o dinheiro apareceria!...

Mas... retomemos nossa trilha. Ler também é sonhar, ser imaginativo. Ter projeto de vida futura. Muito por causa disso, certa vez Paulo Freire (autor de A importância do ato de ler, entre outros livros seus) afirmou algo sobre nunca devermos deixar de sonhar sonhos possíveis. Por isso, lembramos de parafrasear aquele belo samba: “Sonhar não custa nada/Se o ‘seu’ sonho é tão real”. Com certeza! E, se leitura é capaz de rimar com tortura, certamente rimará também com belezura, ternura, doçura e, até mesmo com “travessuras e gostosuras”. É, ler rima também com prazer, sim, rima com lazer, crescer, adolescer. Ler é saber. E saber também é poder: poder ter -- conforto, saúde e felicidade --; poder ser -- ser feliz, ser livre, ser agente/sujeito da própria história. Ler para, mais tarde, inscrever (e não somente escrever) sua própria história.

Ler nunca é perder -- ler é sempre vencer! Vencer ―vencer barreiras, vencer preconceitos, vencer a pobreza material e cultural. Sim, vencer -- vencer conflitos com os outros e consigo mesmo; vencer os medos e fobias, vencer os fracassos, as frustrações e decepções; vencer as distâncias geográficas e aquelas que separam o povo de uma nação em classes sociais e econômicas (em quase castas, como na Índia); ou seja, ler sempre é, e sempre será, uma forma de superação, uma arte de resistir às adversidades, principalmente em espaços de crise, palavras estas últimas inspiradas na antropóloga francesa Michèle Petit, que escreveu o livro A arte de ler -- ou como resistir à adversidade.

No entanto, sabemos que não é só a partir de uma apologia do ato de ler que conseguiremos convencer qualquer pessoa dos benefícios de esse hábito tornar-se cotidiano; pelo contrário, quanto mais se faz isso, mais se dá do mesmo: uma espécie de remédio amargo que o convalescente não quer, por sua aparência de beberagem asquerosa. Por causa disso, pensamos que o professor de língua francesa Daniel Pennac, em seu livro Como um romance, dá uma pista da falha dos adultos e educadores, em geral. É a imposição, a obrigação da leitura como trabalho forçado para a escola e para a vida profissional (o estudo) que sabotam o prazer da descoberta, a viagem ficcional e a viagem do saber científico, filosófico e artístico. Já que a leitura dos livros inpiradores, segundo esse autor, deveria ser, como no passado, “um ato subversivo”. Para nós, uma escolha própria, uma manifestação de liberdade de ser e estar no mundo. Uma rebeldia contra as convencionalidades.

Defendendo pontos de vista bem próximos de Pennac, o estudioso Alberto Mussa, na revista EntreLivros, de julho de 2007, na matéria “Os 30 mandamentos para começar a ser leitor, escritor e crítico”, deu alguns conselhos proveitosos, que são estes: “Nunca leia por hábito: um livro não é uma escova de dentes. Leia por vício, leia por dependência química. A literatura é a possibilidade de viver vidas múltiplas, em algumas horas. E tem até finalidades práticas: amplia a compreensão do mundo, permite a aquisição de conhecimentos objetivos, aprimora a capacidade de expressão, reduz os batimentos cardíacos, diminui a ansiedade, aumenta a libido. Mas é essencialmente lúdica, é essencialmente inútil, como devem ser as coisas que nos dão prazer”.

Como se pode muito bem constatar, estudar soa como obrigação. Ler não tem essa conotação negativa. Pelo menos, não deveria ter. Por tudo isso, Ziraldo está, sim, repleto de razão:

-- Ler é melhor que estudar!