Mais um na Multidão
Acordo e tento compreender a realidade... As ruas da minha cidade estão sendo manchadas de sangue por uma guerra silenciosa imposta pelo narcotráfico. No contexto político o funcionalismo público sofre os impactos da crise do capitalismo internacional e o governo transfere a responsabilidade pelo cenário caótico para os trabalhadores. As empresas anunciam “férias coletivas” para não prejudicarem sua lucratividade frente a avalanche tributária. A cada ida no mercado ou na feira o papel-moeda se desvaloriza, se gasta o mesmo mas as sacolas saem “leves” como uma pluma. Não há sustância no salário mínimo que ofereça condições salutares para o sustento das famílias. As dispensas nos lares estão se esvaziando e a paciência da população se esgotando. Há rumores de revoltas, conflitos e superação dos determinismos cristalizados.
Como um cataclisma natural que assola destrutivamente alguma parte do mundo nesse instante, nasce a revolta nos corações e mentes das pessoas. A revolta da exclusão. O “crash” no fundo monetário do governo do RS ocasiona no descaso com tudo o que é público, os serviços básicos nas áreas da Saúde, Educação e Segurança Pública. Pessoas deixam de ser atendidas nos hospitais e postos de saúde, medicamentos não são distribuídos, os estudantes querem uma educação de qualidade e encontram professores desmotivados e escolas sem estruturas adequadas enquanto a criminalidade aumenta significativamente. Certa vez, recebi uma abordagem policial e conversando com o soldado, ele me questiona qual era a minha ocupação. Respondi prontamente que erámos colegas. Fui fulminado por um olhar gélido do policial que não acreditava que um rasta poderia ser um policial ou que eu estava de gozação. Antes da animosidade, salientei que era professor e que éramos “colegas” como servidores públicos. Resumindo, o soldado não gostou da minha afirmação. Hoje, quando vejo entidades que representam os policiais militares e civis aderindo a um calendário de mobilizações juntamente com os sindicatos dos professores lembro desse episódio. Temos que compreender que somos pequenas peças de um imenso quebra- cabeças, o que eu não alcanço com meu trabalho pautado no exercício da cidadania com os livros, cadernos e lápis, o policial reprimi no final do ciclo com apreensões, violência, prisões e execuções para manter a ordem social. O que falha na ponta do “lápis” encontra seu destino na ponta da “pistola”. Me nego a naturalizar todas as formas de opressão e violência. Não podemos banalizar os atos de violência e achar normal nossas crianças brincarem nas calçadas manchadas de sangue.
Enquanto mais um na multidão percebo a complexidade do momento histórico que vivenciamos. Tive o privilégio de nascer num berço de livros, onde o “feijão com arroz” provinha do nobre trabalho de professora que minha mãe exercia. Constatava um cotidiano atribulado pelas reuniões pedagógicas, planejamentos, diários de classe, correções infinitas de provas e avaliações e procurava um motivo para justificar a escolha profissional de minha amada genitora. Era muito trabalho para pouca remuneração. A vida me fez trilhar a trajetória de minha mãe e com o passar do tempo sinto que existe um “pagamento simbólico” no ato de educar ou de forjar-se professor. A docência propicia o contato com o sonhar das pessoas e nos dá alternativas, caminhos que só o “conhecer” o “desvelar” do mundo pela curiosidade do aprendiz pode trilhar. Ao mesmo tempo, as condições dos trabalhadores da educação foi historicamente negligenciada, relegada as últimas prioridades nas plataformas de governo. Os professores não fizeram votos sacerdotais de pobreza e é um dos ramos profissionais que mais se atualiza e se aperfeiçoa a exemplo dos docentes mestres e doutores. Aliás, os professores/estudantes contrariam e superam as adversidades para continuarem seus estudos e em muitas vezes não recebem aumento salarial significativo. Professor é profissão e não um sacerdócio exercido por dons divinos e vocacionais. A população deve estar ao lado dos seus mestres e mestras para combater as injustiças que as autoridades governamentais nos impõe.
Um momento sagrado de consciência da classe trabalhadora que aprende, mais uma vez, que só a luta muda a vida. A luta pelos seus direitos sociais, culturais e trabalhistas. Direito à dignidade de existir e ser. Diante das atribulações, posso gozar da satisfação de ir na beira do mar ver os pássaros sobrevoando os morros e o vai e vem hipnotizante das ondas contrastando com um barco que avança lentamente em direção ao esperançoso horizonte do amanhã.
Publicado no Jornal Litoral Norte RS e Jornal A Folha.