Sobre o descontrole do mundo

Parece razoável pensar que, de um modo ou de outro, alguém está no controle das coisas. Pareceria disparatado imaginar construir uma imensa locomotiva, potentíssima, acelerá-la ao máximo, e depois largá-la conduzindo toda a humanidade alucinadamente, sem um piloto. Estamos a bordo desse trem fantasma sem piloto.

Como perdemos o controle? De fato, nunca tivemos controle de nosso destino. Quando nossos ancestrais viviam no meio do mato estavam sujeitos ao ataque de feras, de longas estiagens, do frio intenso, e de inúmeras outras contingências alheias às vontades deles. Também existiam eventuais inimigos, e em consequência, lutas e guerras, de modo que nenhum deles se viu, verdadeiramente, no controle de seu próprio destino. Caberia, no entanto, a sensação de que o descontrole adviria de vicissitudes alheias à razão, de desígnios além de suas possibilidades, e não de um descontrole provocado pelo desvario das próprias ações. Tendo controlado uma parte considerável de todas as contingências que um dia ameaçaram nossos ancestrais, hoje nos vemos confrontados por riscos causados pela própria humanidade, um imenso rebanho desgovernado seguindo em frente cegamente.

Ninguém está pilotando o rebanho humano e gostamos que seja assim porque somos muito gulosos. Sabemos que qualquer piloto favoreceria a si mesmo, desmedidamente, não há limites para nossa glutoneria, quereríamos tudo, cada um de nós. Então cada um tenta pilotar e levar a multidão para um lado, fazendo o imenso rebanho acéfalo se deslocar a esmo. Já podemos ver o abismo à frente, e continuamos impávida, ou loucamente, em sua direção. Cairemos. Sabemos disso.

Postos dessa maneira, os fatos parecem absurdos, nossa conduta injustificada. Ela é. Ou melhor: nossa conduta é injustificada por considerações sobre racionalidades individuais; rebanhos não são guiados por esse tipo de racionalidade. Rebanhos assumem uma suprarracionalidade (bastante obtusa, diga-se de passagem) e são guiados por ela. Posto em um rebanho, cada indivíduo passa a se comportar como uma unidade de algo maior. Comporta-se, então, como uma formiga em um formigueiro, ou como um neurônio em um cérebro. Nesses dois casos, as unidades se conectam gerando uma supraunidade composta pela rede de indivíduos, mas francamente alheia a suas aspirações individuais, qualquer que seja o significado da expressão. É extremamente provável que, assim como formigas, ou neurônios, nos organizemos em uma rede inteligente, com razões e desígnios próprios que não fazem sentido para nós.

Uma forte indicação da existência desse leviatã, que pode ser descrito como um ser individual, (a imensa rede humana) encontra-se no consumo crescente de energia da humanidade, muitas vezes superior ao necessário para nossa replicação individual. (Estimei estarmos utilizando, pelo menos, umas 25 vezes mais energia que o necessário para isso. O restante consistiria no consumo desse ser gigantesco).

Se considerada a existência de uma imensa rede humana composta por 7 bilhões de pessoas, outros bilhões de computadores, telefones, e outros tantos nodos que, cada vez mais, se conectam à teia descomunal, e considerando que tais redes tendem a se organizar compondo entidades autônomas e capazes de deliberações, e cuja inteligência guarda certa proporcionalidade com o número de nodos que as compõem, intuímos a presença de uma supraentidade, voraz, composta por todos nós, mas autônoma. Sei que a aplicação da palavra “ser” a tal coisa desagradará a muitos; descrições novas nos incomodam, temos que nos acostumar com elas. Vejo a criatura como um monstro imenso que nos governa como um cérebro a seus neurônios. Os que sentem demasiada repulsa por tal descrição podem continuar considerando tudo isso apenas uma rede; ela não passa disso. Devem, no entanto, considerar que, de um modo ou outro, a rede compele seus componentes a inúmeras ações. A adoção da visão animista, da assunção de uma entidade autônoma, tem por objetivo, apenas, facilitar deduções relativas ao comportamento da rede, do rebanho como um todo.

Analisado individualmente, nosso comportamento coletivo rumo ao suicídio consiste no mais completo desvario (estamos caminhando franca e decididamente rumo ao suicídio coletivo, embora “algo” nos impeça dar atenção a isso). Ao considerarmos a teia humana, no entanto, perceberemos, de imediato, algo bastante usual: um ser se alimentando e crescendo.

Ao considerar que constituímos uma imensa rede que se comporta como um indivíduo autônomo que se alimenta e cresce, compreendemos com naturalidade a razão de estarmos cavando nossa própria cova. Agimos de acordo com a vontade da criatura gulosa composta por toda a coletividade humana. Trata-se de um leviatã voraz, ávido por toda a energia que consegue encontrar, gula usual, aliás, chamativa apenas devido ao tamanho do monstro.

Esse monstro imenso continuará buscando cada vez mais energia, e se fortalecerá com seu alimento. O resultado desse consumo voraz será a destruição de nossas condições de vida no planeta.

Não tenho nenhum compromisso com qualquer assunção animista, não propugno a existência de monstros, nem de criaturas sobrenaturais ou místicas. Proponho essa descrição como uma fábula, uma metáfora ilustrativa capaz de expor e elucidar claramente as causas de nossa insanidade coletiva.