UMA FAXINA NOS PESQUEIROS DO MORRO DAS FURNAS
No litoral existe uma ligação íntima entre o mar e os homens numa linha ininterrupta e permanente que atravessa os tempos. Desde a ocupação primitiva da faixa costeira, os primeiros pescadores e coletores construíam monumentos de conchas conhecidos como Sambaquis. Há cerca de 4.000 anos atrás, os homens-mar exercem sua afeição às benesses do oceano na ritualística prática da pescaria. Em nossas praias, o ato de pescar é uma das permanências da História. Houve transformações nas técnicas e materiais utilizadas nas pescarias em que acumularam saberes e fazeres típicos dessa atividade milenar. O mar nos presenteia com à dadiva do alimento, os peixes e mariscos que garantem a sobrevivência das famílias litorâneas. Atualmente, a pesca predatória coloca em risco muitas espécies que compõe a biodiversidade marinha em detrimento da sabedoria da pesca tradicional que respeita a sazonalidade e o ritmo do oceano propiciando a manutenção e reprodução da vida marinha. Segundo alguns dados disponíveis a pesca predatória extinguirá 30% das espécies até 2050. A pesca tradicional e artesanal é elemento primordial da cultura popular perpetuando a sustentabilidade dos habitat e ecossitemas e garantindo os mais de 4.000 anos de atividade nos pesqueiros das nossas praias. Na cidade de Torres/RS, no litoral norte do Rio Grande do Sul, existem locais de pescarias consagrados pela população local denominados pesqueiros. Entre as torres que conferem o nome a cidade há pesqueiros do rio Mampituba à Pedra da Itapeva. A cultura pesqueira está emaranhada no “jeito de ser Torrense”, na leitura das vagas na linha do horizonte, na paciente observação das marés, na prática de esportes aquáticos ou no simples passeio a beira mar.
Pensando na valorização da pesca artesanal e reconhecimento da cultura e história impregnados nos pesqueiros é que o Projeto Praia Limpa/ AST sob a coordenação de Alexis Sanson e a DEFENDER (Defesa Civil do Patrimônio Histórico) por meio do delegado regional Leonardo Gedeon organizaram uma ação de limpeza no Morro das Furnas, famoso pelas fartas pescarias e arriscados locais de pesca, no último dia 02 de agosto no período matutino contando com a presença dos voluntários Miguel Ayres, Willian França, Carlos Freitas, Rodrigo Christini, Paulo França, Toco Menezes, Alysson Kunzler, o oceanógrafo Geraldo Medeiros e sua companheira Morgana. O objetivo da ação era aliar os conhecimentos históricos advindos das pesquisas realizadas no Morro das Furnas pelo historiador Leonardo Gedeon divulgado recentemente no livro O Passado em Ruínas (Editora e Gráfica TC, 2014) e sensibilizar os pescadores para à devida destinação de seus resíduos sólidos que por muitas vezes são dispensados nos locais, provocando mal- estar pelo acúmulo de lixo e ameaça as aves e peixes que os ingerem.
Os pesqueiros selecionados para a ação são locais perigosos na porção oriental dos íngremes penedos que fornece acesso somente por escadarias. O alvo dos voluntários foram os pesqueiros conhecidos como Portão, Saltinho, Furna Grande, Furninha, Diamante e a Ponte na Praia da Guarita. As escadarias foram estruturadas em 1957 e a do Saltinho em 1992- a mais íngreme delas- com intuito de oferecer melhores condições de acesso aos turistas. Com a introdução do turismo, locais de fruição da comunidade local como os pesqueiros tradicionais foram transformados em pontos turísticos. No verão há uma invasão de visitantes de diversos lugares (inclusive com tragédias com vítimas fatais por descuidos e afogamentos) e no inverno um intenso trânsito de pescadores em busca dos cardumes de “tainha”, na fisgada do “pampo” ou do “papa-terra” ou na clássica “embarcada” dos peixes de grande porte como o “burriquete”, “garoupa” e “miraguaia”.
O grupo se reuniu na Praia da Cal passando pelo caminho das Caieiras, o Portão e seguindo pelo cume do morro até chegar na Guarita. Durante o percurso havia paradas estratégicas nos lugares de relevância histórica e cultural. No caminho das Caieiras, a história dos fornos de cal e da olaria onde por cerca de um século forneciam a argamassa, as telhas e tijolos necessários para a construção das edificações da vila de Torres durante o século XIX. No primeiro ponto, o Portão, o grupo encontrou inúmeros pescadores e teve oportunidade de distribuir sacolas ecológicas e “bituqueiras” (recipientes para armazenar a guimba do cigarro) para os fumantes. Um bom momento para o diálogo exaltando as belezas naturais e a história local como uma ferramenta importante na preservação do meio ambiente. Nesse momento, o ambientalista e professor Benedito Ataguile e o folclorista e memorialista Bento Barcelos, responsável pelo Instituto Meteorológico prestigiaram a ação nos envolvendo com informações e incentivo. Seguindo o roteiro, os voluntários subiram a escadaria da Praia da Cal e puderam deslumbrar o exuberante panorama do Morro das Furnas com a observação da Ilha dos Lobos e do horizonte marinho à leste, os contrafortes da Serra Gera à oeste e ao sul as dunas do Parque da Itapeva. À norte, os contornos da cidade de Torres que se verticaliza acima do Morro do Farol e deturpa os aspectos paisagísticos que conferem a simbologia das falésias torrenses. O terceiro farol de 1952 é ofuscado pelas edificações modernas que sobem aos céus com suas vigas de concreto e lembram a ambição da bíblica Torre de Babel. Nas torres naturais, uma parada revela uma interessante área de extração de matéria prima para a olaria da Praia da Cal que funcionou em meados do século XIX. Uma lagoinha, um depósito pluvial que resguardava um excelente “barro” para a produção de telhas e tijolos. Percebe-se no chão uma canaleta de aproximadamente 20 metros que foi escavada pelos trabalhadores do local para escoar a água dessa bacia natural, como demonstra um documento do militar responsável pela fixação do povoado, Francisco de Paula Soares de Gusmão datado de 1844. Paulo França nos relata que nos contos dos pescadores locais, a formação dessa canaleta é explicada de maneira diferente, alegando que o rastro foi feito por uma “miraguaia” que foi colocada por um antigo pescador no lago e cresceu tanto que voltou para mar. Esse relatos são as riquezas das memórias da cultura popular.
No alto do Saltinho, a vertiginosa escadaria que leva ao pesqueiro em sua base. Antigamente os acessos eram feitos nas fendas e reentrâncias das falésias onde os pescadores passavam com seus balaios, caniços e tarrafas. O pesqueiro Saltinho é porque eles tinham que dar “um pulinho” para chegar no local tão almejado. No sentido sul, chega-se numa arriscada passagem chamada de “Feio” porque segundo os relatos, por ali “é feio de passar...” Retornando ao percurso, os voluntários aproximam-se das escadarias da Furna Grande e da Furninha onde a equipe foi dividida para melhor aproveitar o tempo. Um grupo desceu no pesqueiro da Furna Grande, onde ano passado sofreu um intenso processo erosivo com a queda de grandes blocos rochosos, e o outro foi em direção à Furninha e o Diamante. Na Furna Grande, dezenas de filhotes de peixes (pampo) foram encontrados mortos em uma poça natural de água. Foram deixados ali ao invés de serem largados ao mar para sobreviver e perpetuar sua espécie. Do mesmo modo, iscas são dispensadas em meio às rochas em sacolas plásticas e ficam ali apodrecendo podendo ser devolvidas ao mar para servir de alimentos aos peixes. Foi evidenciado um saco de tatuíras em decomposição. Pequenos gestos são grande atitudes que tem um profundo impacto no ciclo natural. Nesse local foi encontrado significativa quantidade de embalagens e garrafas plásticas, restos de linhas de nylon utilizada na pesca, restos de cigarros e muitos resíduos orgânicos como frutas e até dejetos humanos.
A Furninha resguarda os vestígios do primeiro Datum Altimétrico do Brasil de 1919 conhecido como o Marégrafo de Torres. Na escadaria de acesso existem inscrições que datam das décadas de 1920, 1930, 1940 e outras de anos posteriores, demonstrando a fruição dos primeiros turistas nestes históricos e tradicionais locais. No interior da Furninha, há inscrições pioneiras de 1917 e 1918. São inscrições em baixo relevo forjadas por técnicas diferenciadas podendo fornecer informações históricas, ao contrário dos atos de vandalismo ao patrimônio natural como as pichações nas rochas do Morro das Furnas. A limpeza foi feita nos pesqueiros da Furninha e do Diamante, nos ambientes explorados por essa prática. Pessoas que passeavam pelo morro na ensolarada manhã de domingo, auxiliavam procurando o grupo para destinar seus resíduos em locais apropriados. Por fim, os voluntários chegam próximo da Praia da Guarita e são surpreendidos pelo desenho nas areias do artista Paulo França de uma Sereia e o lema Preserve Torres. Paulo França, conhecido como Paulo Kabeça pelos amigos, abrilhantou nossa jornada com estórias, contos e poesias da cultura pesqueira acompanhado da interpretação do ambiente marinho e formação geológica de Torres pelo oceanógrafo Geraldo Medeiros. Descendo a escadaria para a Praia da Guarita, os participantes puderam observar as evidências das dinamitações na Pedreira do Porto Marítimo de Torres, uma obra inacabada da Primeira República do Brasil durante os anos de 1890 e 1892. O local foi batizado como Ponte em memória a uma ponte de trilhos onde vagonetas transportavam os blocos basálticos para a outra extremidade da praia. Dali foram observados e localizados outros pesqueiros como a Piriquita, o Buraco do Parafuso, a Pedra Molhada, o Bico do Luís e o Mata – Fome. O grupo também foi informado sobre os filmes Pontal da Solidão (1972) e o Vento Norte (1951) que tiveram como pano de fundo para suas tramas a bela Praia da Guarita.
Uma faxina foi feita recolhendo cerca de 50 kilos de lixo nos pesqueiros históricos do Morro das Furnas que escondem muitas histórias e estórias, contos e lendas, recantos preservados e uma rica fauna e flora. Uma oportunidade de admirar e re-admirar nossas praias e falésias sob um novo olhar e fortalecer as amizades numa consciência de percepção de cidadania planetária. As nossas Torres são um monumento geológico que nos faz viajar na história do planeta Terra, a divisão dos continentes, o avanço e recuo do mar e a ligação entre Torres/Brasil e a África. Dos Canyons da Serra Geral às areias da planície costeira, um clamor de zelo, responsabilidade e cuidado sob a égide: PRESERVE TORRES, PRESERVE O PLANETA!