TEXTOS PERDIDOS DO CADERNO DE ALGUÉM
 
O Discurso

Todo mundo fala muito, mas no final das contas não falam nada. Todo mundo se diz artista, mas quer um preço pela carcaça. Hipocrisia do velho mundo, da velha cultura estabelecida.
Todos dizem amar a arte, mas essa arte tem algumas cifras e condições. Hipocrisia. Ninguém tem coragem de tirar suas máscaras. E ainda dizem que os outros é que se escondem pra não apodrecer no meio da rua.
Todo mundo diz uma coisa aqui e outra acolá. Fala uma coisa na frente e desmente por trás. Hipocrisia. A infelicidade no amor carrega a falsa felicidade no trabalho.
Todo mundo se diz artista com toda força da alma. Algo pulsante. Energia metafísica que faz o coração explodir. Balela. Todos mentem ao menos uma vez. Hipocrisia. Mente aquele que diz que não cospe no chão.
Todo mundo quer dinheiro. No fundo somos todos iguais. Verdade. É a mais pura verdade. Não há porque eu mentir. Não agora. Porque eu minto. Minto mesmo. Ninguém está pronto para ouvir certas verdades.
Todos são flores de estufa. Delicadas. Não podem ouvir uma palavra mais dura. Ninguém pode ser contrariado. Imensa pena. Que todos vão à merda. Que todos vão se foder. Pronto. Explodi.
Todo mundo precisa explodir um dia, uma hora, em algum momento. Depois passa, ou pode não passar. E também se não passar que se foda, não estou nem aí pra ninguém. Vão todos ver se o teu espírito está na esquina. Você pode ter morrido sem saber. É verdade. É a mais pura verdade. Verdade.
Todo mundo gosta de ter razão, de ser o exemplo, de dar a lição de moral, mas ninguém tem moral pra isso. Fazer o que. Arrogância é um privilégio para poucos. Então calem a boca, fechem os olhos, virem as costas, vão embora e façam de conta que eu não chamei vocês. Que essa conversa não é com vocês.
Todo mundo gosta de fazer pose. Ninguém é modelo, ninguém desfila ou posa pra foto.
Todo mundo fala muita coisa, que nada significa pra mim. São só palavras. Palavras perdidas no ar. Discursos prontos. Hipocrisia. Pura hipocrisia.
Todo mundo quer o mundo, mas precisam perguntar se o mundo os quer também.
Todos querem, somente querem. Quando pergunta-se quem vai ajudar, ninguém, absolutamente ninguém levanta a mão.
Esse é o nosso mundo de pessoas perdidas.
Talvez sim, talvez não.
Sempre há uma saída. Só não sabe-se pra onde.


Delírio

- Vou ficar aqui e beber toda essa água, de todos esses copos e de todas essas garrafas que estão aqui na minha frente.
- Não faça isso. Você pode morrer. Você pode inchar e explodir. A água vai acabar e como iremos lavar nossos pés?
- Preciso beber essa água. Ela um dia vai acabar e por isso preciso deixá-la guardada dentro de mim.
- Não fale bobagens. Nenhum homem jamais conseguiu manter tanta água dentro de si por tanto tempo. A água se transforma em mijo. O mijo estoura a bexiga e quem irá enchê-la novamente?
- Se não houve nenhum homem, então serei o primeiro. Vou agüentar o quanto der. Não comerei assim terei mais espaço. Não farei extravagâncias assim não terei vontade de ir ao banheiro. Me manterei concentrado em beber, em segurar por anos, muitos anos, longos anos.
- Você iria morrer. E eu até deixaria se toda essa água não fosse importante para os nossos pés. Não posso deixar você acabar com nossa fonte de limpeza.
- Vou beber. Lavem os seus pés no rio. Não há rio. Só essa água de todos esses copos, de todas essas garrafas. O que eu ia fazer? Beber tudo e não deixar pra ninguém. Peguem. Lavem os seus pés. Afinal a sede é suportável, o mau cheiro não. Lavem os seus pés. Depois que terminarem beberei a água que sobrar.
- Você não está bem. A água estará suja. Suja de matar.
Kadu Leayza
Enviado por Kadu Leayza em 16/07/2015
Código do texto: T5312823
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