CANÇÕES QUE NUNCA SAÍRAM DO PAPEL
 
Tomou um gole de cerveja enquanto as pernas embaixo da mesa dançavam de ansiedade com a demora do passar das senhas. Mal pôde aproveitar o tempo desde que chegou. Já era 22h e o salão estava lotado. Mesas entupidas de gente denunciavam o que já sabia antes de sair de casa. A noite seria longa, as pernas continuariam agitadas e os ouvidos feridos por vozes estridentes e desafinadas.
Passada mais uma hora, finalmente seu número havia sido chamado. Tomou um gole mais de cerveja pra umedecer a garganta, levantou-se e caminhou apressadamente até o palco subindo um pequeno degrau de madeira. Pegou o microfone e disse o número da música de cor, já que cantá-la era um hábito quase ritualístico toda vez que batia ponto naquele karaokê.
Conseguiu passar os olhos pela plateia antes dos primeiros acordes começarem a tocar. As pessoas se agitaram, soltaram alguns grunhidos excitados e embaladas pelo álcool já presente em suas cabeças, puseram-se a cantar em coro a música que fazia mais sucesso em sua voz.

Have You Ever Seen The Rain

O refrão era sempre a mesma histeria. O final era sempre a mesma apoteose. Não importava se o monitor apontava uma nota baixa, sabia pois que karaoke não era programa de tv. O que valia era a diversão. O que valia era aquela mesma sensação que ficava toda vez que descia do palco com a certeza que tinha cantado e encantado. O resto era só o resto.
Abriu um longo bocejo e conferiu toda a folha de pagamento, funcionário por funcionário, com intuito de mensurar se o sistema havia calculado certo. Sim, estava no escritório trabalhando na frente do mesmo computador naquela nublada segunda de manhã em Curitiba. De minutos em minutos, de números em números e entre um piscar entediado e outro, buscou na memória flashes do “show” da noite anterior. Podia quase balbuciar algumas palavras de uma música qualquer. E pensava que se fosse mais jovem certamente teria feito mais, ao menos o suficiente pra realizar seu grande sonho. Viver de música.
Como um rock star de meia pataca listou em sua mente as músicas que cantaria naquela próxima noite. Não gostava de soar repetitivo. Adorava mostrar novidades, mas sentia-se seguro cantando sempre as mesmas músicas. Além do mais não era toda e qualquer que ficava bem em sua voz. Existia um perfil específico para o seu tom de barítono.
Voltou à realidade após encontrar um erro na folha de um dos funcionários. Entrou no sistema para corrigir o valor manualmente e por alguns segundos lamentou a sua realidade imposta por si mesmo e empurrada goela abaixo como um remédio necessário de tomar, mas com gosto horrível. O dia passou como passavam todos eles. Já era noite e era hora de ser feliz de verdade.
Era sempre o primeiro a chegar. Já tinha as manhas do karaokê. Sabia que se não chegasse cedo não conseguiria aproveitar muito, pois depois de um certo horário aquele lugar virava um inferno. Além do mais o DJ era um saco, dava sempre preferência às mulheres (e não podia julgar, era até compreensível) o que dificultava um pouco a sua ambição de ser o dono do pedaço.
Metódico como sempre era, motivo de várias reclamações da namorada (ela era feminista, descolada, bagunceira e pouco preocupada se as coisas saíam certinhas ou não. Seu cabelo cacheado esvoaçante era a personificação da aventura, do gosto pelo perigo), sentou na mesma mesa, pediu a habitual cerveja e começou uma conversa empolgada com a namorada, esta que o acompanhava para lhe agradar. Conjugues de cantores de karaokê eram assim. Na sua maioria não gostavam do negócio, mas o faziam para não contrariar, pois assim era a recomendação do médico. Iam como um pequeno chaveiro engatado na cintura, pois a felicidade do cantor amador/namorado profissional era mais importante do que possíveis desgostos.

Cantou uma...

Era Um Garoto Que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones

Cantou outra...

O Astronauta De Mármore

Cantava sempre com muita emoção, coração e empolgação. Às vezes fechava os olhos quando a música já era de seu domínio. Às vezes deixava os olhos soltos nas pessoas, pois gostava de ver as reações, se estavam cantando junto, ou se apenas olhavam para ele. Vez ou outra arriscava um gestual diferente, assim como uma inteiração com a plateia, sempre com muita discrição e timidez. Dependendo da música descia do palco sem ela ter mesmo terminado. Abaixava a cabeça e aplaudia sem jeito não acreditando no potencial que ali existia.
Voltava para a mesa já programando a próxima música. Pensou. “Será”. Não tinha coisa que ele mais gostava de cantar do que Legião Urbana. E cantava bem. Não era uma autoavaliação, nem alta autoestima. Era o que as pessoas diziam. E não tinha como não ficar feliz.

Cantou e quase dançou.

Será

Durante a música podia-se ouvir gritos acalorados de “Renatooooooooo”. Adorava escutar aquilo. Era música para seus ouvidos. Usava óculos, tinha barba e era meio desengonçado. Ao término da canção foi recepcionado por um grupo de adolescentes que estava na beira do palco gritando histericamente por “seu nome”. Os pedidos não paravam - Canta “Pais e Filhos”, “Tempo Perdido”, “Eduardo e Monica”. Sentiu-se um rock star e sua mente voltou no tempo, trazendo lembranças da época onde tudo, inclusive a paixão pela música havia começado.
O ano era 1996. Um ano triste para a música brasileira. Morria ali o maior nome do rock nacional, Renato Russo. Então com seus 18 anos, nunca havia ouvido falar de RR (na música múmias do Biquini Cavadão, onde ele fazia uma participação especial, sua voz era tão parecida com a do vocalista que não conseguia distinguir qual era de quem. Só depois com o tempo as diferenças ficaram gritantes). Despretensiosamente foi até uma loja de CDs em busca de alguma referência. Naquela época CDs eram novidade, principalmente pra si que ainda estava na onda do walkman e fitas cassete.
Entrou na loja e sem conhecimento nenhum sobre a banda, soltou - Oi, eu gostaria de um cd que toca a música Eduardo e Mônica, você tem? Nunca conseguiu esquecer aquele dia e aquela sensação de ter nas mãos um cd cor creme que na capa tinha escrito Dois – Legião Urbana. Ouviu muito até gastar o cd. E depois daquele dia não foram poucas as vezes que ia embora caminhando do Colégio Estadual do Paraná onde estudava até sua casa cantando a faixa número dois do cd, “Quase sem Querer”.
Em pouco tempo tornou-se sua música preferida. E o amor por aquela banda tomou conta do seu coração, não deixando espaço para mais nada.
Os anos subsequentes foram assim, sonhados em se tornar o novo Renato Russo. Estava prestes a se formar ator. Lembrava-se que nas aulas de canto enquanto uns escolhiam MPB, outros músicas internacionais, ele escolhia alguma música da Legião Urbana que cantava sempre baixinho pra não correr o risco de desafinar.
No teatro quando precisava encenar um musical, em seu peito mesclava-se o medo e a alegria de cantar. Nas aulas de expressão vocal era sempre o último a ser avaliado, pois gostava primeiro de observar o desempenho dos demais. Por fim, era afinado, mas longe de ser um cantor regular.
Não foram poucas as vezes que tentou montar uma banda com amigos ou conhecidos. Era no máximo afinado, não sabia tocar nenhum instrumento, não era nenhum menino prodígio, mas gostava de escrever, fosse no caderno durante uma aula chata de história, fosse na hora do recreio, fosse em casa. Eram inscritos cheios de profundidade escondendo, ou melhor, transparecendo sentimentos introspectivos, submersos em tristeza, melancolia e amor platônico. Esse último era responsável por cenas românticas tragicômicas, onde lia poesias inteiras, entregava flores para a menina mais bonita do colégio, mas o máximo que recebia eram palavras de agradecimento. Nunca fora muito popular o que acabava por acender ainda mais o poeta que existia dentro de si.
Nas madrugadas de Curitiba em meio a pedaços de pizzas, inventava bandas com amigos. Quem iria cantar, que instrumento quem ia tocar, as letras quem iria escrever. Essas invenções sonhadoras nunca saíram do papel.
Restava apenas escrever, escrever, escrever e colecionar tudo que fosse da Legião Urbana. Camisetas, reportagens em jornais, revistas, CDs, DVDs. Raramente escutava outra banda. A voz de Renato Russo, sua forma de cantar e suas canções eram e foram durante muito tempo o norte na sua vida.
Um dia resolveu largar o teatro e jogou tudo pra cima. Pensou então em estudar música e dar vazão a um antigo desejo. Começou aulas de canto, teclado e violão. Não tinha muito saco pra estudar os dois últimos (também não tinha muito jeito), mas o primeiro era mais que um prazer, era uma necessidade. E por anos a fio assim foi. Cantava e cantava Legião. Sua professora que nem conhecia muito da banda passou também a gostar. Passou, muito por causa dela, a conhecer outras bandas, outros cantores, outros estilos. Já não era mais do mesmo. A música o havia mudado.
Nesta época o hábito por karaokê estava começando. Soltar a voz nos “palcos” de Curitiba era uma forma de exercitar e se exibir. A timidez ia ficando de lado e isso refletia diretamente no seu lado compositor. Começou então a trabalhar com outra professora de canto o seu repertório particular, cifrando, gravando e registrando as músicas que saíam de sua mente solitária.
Chegou a conseguir montar uma banda de verdade, com guitarrista, baixista, baterista, tecladista e si próprio nos vocais. Comprou equipamentos, investiu pesado na parceria, mas a parceria tinha outros objetivos. A banda queria tocar e cantar em inglês. Olhava pro céu e perguntava – Por quê? As coisas não eram fáceis e mais uma vez teve que se adequar. Começou a cantar em inglês com seu sotaque carioca. Não ficava tão bom, mas ao menos tinha uma banda e conseguia um pouco extravazar.
É certo que uma hora a coisa afunilava e não tinha pra onde correr. Resolveu sair da banda porque ela não dava aquilo que queria pra si.
Com o tempo o amor pela música foi ficando de lado, afinal precisava trabalhar e ganhar dinheiro. A cobrança dos pais e a cobrança da sociedade eram implacáveis. Fez outra faculdade, foi trabalhar na área e inevitavelmente o karaokê foi deixando de ser uma febre para ser um estado para febril.
Um dia, numa das muitas crises existenciais que tinha, lembrou do garoto de Curitiba, nascido no Rio de Janeiro, que queria ser o novo Renato Russo. Seu coração ficou apertado, um choro ficou preso na garganta e ao se olhar no espelho, não podia concordar com uma frase célebre da música “Tempo Perdido”. Não tinha todo tempo do mundo. Não tinha mais tempo.
Seu pensamento voltou aquele salão lotado. Quando cantava não se permitia ser infeliz, nem nutrir pensamentos negativos. Adorava ser “idolatrado”. Era nessas horas que via sua vida ora boa, ora ruim, numa bifurcação de possibilidades.
Seus olhos vagaram e foram surpreendidos por um homem que se aproximava para iniciar uma conversa.
- Olá, meu nome é... Já disseram que você tem uma voz incrível?
- Obrigado, mas não acho que seja tudo isso.
- Acredite cara. Vou lhe dizer mais. Você manda muito bem as músicas da Legião. Nunca pensou em fazer um cover?
- Já, mas eu gosto mesmo de criar minhas próprias músicas.
- Ah é? Me mostre que eu quero ver. Aqui está o meu cartão. Vamos conversando. Sou produtor aqui em Curitiba e tenho uns contatos no Rio e São Paulo. Quem sabe...
- Vou te ligar sim, pode deixar.
Depois daquela conversa o que parecia impossível tornou-se real. Mostrou todo material para o produtor que imediatamente conseguiu contatos com outros produtores que viabilizaram o que ele jamais pensou que fosse acontecer. Virar um rock star.
O álbum inaugural intitulado Vigília contendo aproximadamente 15 faixas estava ali na sua frente, diante dos seus olhos. O restante das músicas guardaria pra ser reaproveitado em álbuns posteriores.
Sua mente foi à frente visualizando o show que estava prestes a acontecer. Diante de si o setlist com faixa a faixa indicando a ordem cronológica das canções. Via a plateia delirando. Ouvia o coro cantando suas músicas.
Respirou e sua mente voltou para o salão lotado onde havia sido interceptado pelo homem na saída do palco.
- Deixei a porção que o senhor pediu na sua mesa.
- Ah, obrigado.
Tinha tudo pra voltar pra mesa decepcionado, mas ao invés disso sorriu. As suas músicas eram reais, falavam de sentimentos reais. Isso ninguém poderia lhe tirar.
A noite acabou, voltou ao trabalho na manhã seguinte e se permitiu organizar no computador o repertório da banda Vigília que nunca deixou de existir em algum mundo paralelo.
Algumas letras. Algumas melodias. Braços balançando freneticamente em algum lugar, de algum dia, de um ano qualquer, num tempo que não era mais seu.
E se perguntou.
Qual era o seu tempo?
Kadu Leayza
Enviado por Kadu Leayza em 15/07/2015
Código do texto: T5311917
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