Sobre a racionalidade no Direito
Quando falamos em Direito de uma forma geral, reconhecemos que as suas várias acepções linguísticas levam o senso comum a afirmá-lo simplesmente como conjunto de normas que guiam a conduta humana, o que corresponde ao conceito de direito objetivo. No entanto, outra acepção popular do direito é o chamado direito subjetivo, que apresenta o direito como faculdade, ou seja, o caráter facultativo de exercer ou não aquilo que a norma garante.
A diferença básica que caracteriza a oposição entre os dois conceitos é a de que o direito objetivo está mais ligado a um rigor sistemático do que o direito subjetivo, que é mais vocabular. Daí se tem a concepção de direito como objeto, como dogma e como sistema normativo que rege os interesses humanos. Se levarmos em conta o senso comum, a visão mais popular que se tem sobre o direito é primeiro associada a uma noção de regras do que primordialmente à noção de justiça.
A crença de que as normas jurídicas e as regras explicitamente colocadas no ordenamento jurídico são a primordial e principal fonte do direito começaram a ser amplamente difundidas numa época de admiração pelo cientificismo e pela positivação de todo o conhecimento humano. Essa concepção de que as normas impostas pelo Estado são a mais abrangente e completa forma de regulamentar a conduta humana, independente de interpretação jurídica ou de questionamentos sobre a ética da lei, surgiu com máxima força no pensamento juspositivista, que vai de encontro às correntes jusnaturalistas do pensamento jurídico.
Todavia, esse sistema de extrema exaltação das normas jurídicas no juspositivismo se mostrou falho, pois suscitava uma preponderância do Poder Legislativo sobre o Poder Judiciário e exigia uma intensa pesquisa por parte dos juristas, que deveriam aplicar exatamente a norma correspondente a cada caso, sem fazer interferência valorativa nenhuma sobre ela, já que a vontade do legislador era autoridade. Isso também acarretava uma intensa atividade legislativa, pois a norma devia ser expressa de modo seguro e completo, algo que, do ponto de vista da linguagem, é impossível se o pensamento é ilimitado e a linguagem, imanente. Logo, o sistema acabaria se tornando um confuso amontoado de normas que nada diziam ou diziam a mesma coisa sobre vários aspectos diferentes, e isso inviabilizava a funcionalidade do ordenamento jurídico.
Tal fato em consideração nos leva a questionar, portanto, até que ponto a racionalização do direito serve ao propósito de reger as relações entre a sociedade e a justiça de maneira satisfatória. Ou ainda, existe uma única e infalível razão que se pode aplicar ao direito?
No âmbito da Filosofia do Direito, temos como pressuposto estudar as diversas perspectivas em que o direito deve ser conhecido e abordado na sua relação com o mundo e o sujeito humano. Uma filosofia do direito não pode se ater a uma forma única de conhecimento que pretende ser a mais aceitável na atualidade, a forma científica, sistematizável, transmissível e que pretende ser verdadeira, porque não trata apenas de conhecer e descrever o mundo que está a nossa volta, mas de emitir valores sobre ele, entender o que fundamenta seus princípios éticos e sua relação com as estruturas do pensamento humano.
A filosofia do direito abarca no mínimo três lados: o científico, ou seja, a descrição ontológica de fenômenos, fatos, objetos e relações; o ético, com o objetivo pragmático de nortear o ser humano para viver o mais adequadamente possível; e o metafísico, que se ocupa no plano das ideias das questões que não podem ser exatamente resolvidas.
Também para o senso comum, embora as ciências tenham cada vez mais autoridade em influenciar o pensamento das massas, ainda se acredita não ser possível explicar tudo o que se relaciona às “humanidades”, isto é, aos fenômenos não verificáveis, às coisas não tangíveis, como os mistérios da alma e da essência humanas, por esse viés radicalmente ontológico. Essa visão, ainda existente, adversa a cientificismos, é bem ilustrada em uma cena do filme Les Chansons D’amour de Christophe Honoré, em que as personagens Alice e Madame Pommeraye travam o seguinte diálogo:
“Alice: Ismael me falou dos resultados da autópsia.
Mme. Pommeraye: Por que ele lhe contou? Tem alguma importância para ele?
Alice: Creio que sim... É importante entender, não é?
Mme. Pommeraye: Não tenho tanta certeza. Estamos habituados a que os médicos nos esclareçam todos os mistérios, que eles expliquem os pequenos segredos escondidos... Recuso-me a aceitar. O mistério faz parte da vida.”
É certo que não se pode descartar a importância das sistematizações metódicas no estudo do direito, ainda que nem todo fenômeno humano possa ser explicado, compreendido e estudado da maneira como estudamos as ciências de objetos mais “palpáveis”, como as ciências da natureza.
Por razões lógicas, é possível afirmar que as generalizações, ou os tipos ideias pretendidos por Weber, são imprescindíveis para a aquisição e transmissão do conhecimento humano. A conceituação é uma das características primeiras dos métodos de estudo científicos, e não seria possível avançar em nenhuma forma de conhecimento se não houvesse tais idealizações a nortear as pesquisas, já que os tipos ideais, isto é, conceitos desprovidos de valores, sustentam os enunciados científicos.
Entretanto, ocorre que tais conceitos gerais são exteriorizados e transmitidos através da linguagem, de um conjunto de símbolos que indiscutivelmente é limitado. Assim como uma câmera fotográfica não capta exatamente os mínimos detalhes do que se pode ver com os próprios olhos, a linguagem também não exprime com todas as mínimas propriedades o conteúdo do pensamento humano, que é um universo inteiro de complexidades.
Em síntese: é impossível transmitir através de símbolos exatamente o que se pensa. Assim, no que diz respeito à dogmática tradicional e à argumentação jurídica lógica, se todo o discurso e toda decisão judicial fossem baseados apenas naquilo que está explícito formalmente no texto legal, não se estaria levando em conta o pensamento humano no que diz respeito àquilo que não se pode exprimir em palavras, mas que faz tão parte da concepção de justiça quanto o que está escrito na lei. É desse fato que se vale a filosofia retórica para negar os determinismos de uma sociobiologia, ou de ciências mecanicistas e, assim, fazer valer a argumentação e a linguagem comum para controlar os conflitos jurídicos. Compreender a filosofia e o conhecimento exige uma dosagem mista e combinada de razão e emoção. E ponto final.
A razão não pode simplesmente ter a pretensão de dispensar a dimensão da linguagem, com todos os seus limites, e chegar a uma verdade pura ou a um método autojustificável externo ao próprio discurso. Isso não quer dizer que a postura gnoseológica da retórica dispensa todo e qualquer enunciado geral e ontológico sobre o direito, mas que o considera não como um objeto sobre o qual se possa atribuir certezas, mas como uma atitude linguística.
É impossível negar a ontologia na constituição da ciência jurídica, posto que qualquer ciência pressupõe certa metodologia e características gerais, no entanto, também não se pode levar toda a dimensão que constitui o direito a uma objetivação estática ou a concepções essencialistas, ou essencialmente cientificistas. O poder da ontologia na ciência do direito está atrelado a descrições, porém não só de descrições é feito o direito. Os dilemas axiológicos não podem ser descritos como coisas tão palpáveis quanto dados e análises.
Tal dicotomia entre essas duas correntes, uma sobre a referência objetiva, outra sobre a autorreferência discursiva do ser humano, representa uma discussão antiga e tão relevante que ainda permanece nos estudos filosóficos do direito e talvez nunca seja solucionada. Contudo, mais importante do que se chegar a uma resposta definitiva, é permitir que a discussão continue avançando e procurar compreender os argumentos de cada parte.
Afinal, achar a verdade absoluta, se é que ela existe, não é o que motiva a filosofia de modo geral, muito menos a filosofia do direito, mas sim, a disposição para compreender e avançar cada vez mais em direção a essa verdade, ainda que ela seja inalcançável. Por isso, toda filosofia que tem a pretensão de deter a única e absoluta verdade, sem que haja espaço para argumentações, está muito provavelmente equivocada.