Revolução e Preconceito: A Utopia da Razão no Brasil.
Milton Pires
Outro dia, relendo “Almas Mortas” de Gogol, me deparei com um trecho em que um personagem dizia: “não tenho conhecidos: os que tinha morreram ou se tornaram desconhecidos”. Gostei de encontrar isso pela frente mais uma vez porque me faz pensar num drama, mais um “draminha” da moral tupiniquim, em que precisamos escolher entre acusar alguém de “coitadismo” ou de “cumplicidade pelo silêncio”. Em outras palavras: cada vez que alguém sofre uma injustiça no Brasil, e dá publicidade a essa injustiça, pode ouvir do “psiquiatra de plantão” - “esse quer dar uma coitadinho”, ou como um diz alguém que conheço - “coitadiiiiiinho de mim”. Se o sujeito que sofreu a injustiça não reage, não grita a plenos pulmões, aí então ele é considerado “covarde”: todos vão achar que ele é “mais um que não faz nada” e “se cala”.
Não me interessa, pelo menos aqui, se as pessoas vão me considerar um “coitadinho” ou um “covarde”. Não comecei o texto com a intenção de criticar uma escolha. Escrevo para atacar a necessidade da escolha, dessa escolha urgente que se impõem para aquele que não pode dizer “não sei”, “não conheço o caso”, “não pensei sobre isso”. Exatamente no momento em que coloco isso no papel, eu me dou conta de que vivo num país em que toda imprensa, toda opinião pública, não passa um dia sem bater e sem criticar os chamados preconceitos: “preconceitos contra gays, contra mulheres, contra negros, contra deficientes, contra idosos...Não há mais nenhum membro da sociedade que não possa se dizer vítima de algum “preconceito”. Não há, diria eu, sequer condição de fazer parte da sociedade se você não é vítima de algum preconceito já que, ou você é vítima de preconceito, ou deve estar sendo preconceituoso contra alguém.
Imagine que você, para formar uma opinião clara sobre o que é a eletricidade, precisasse enfiar um dedo na tomada para mostrar que não tem “preconceito”. Imagine também que, para mostrar que você não é homofóbico, deva ter uma relação homossexual antes de “ter direito” de dizer que isso não é natural. A comparação pode ser infeliz, não é? Claro que pode! “Nada a ver” como dizem os jovens...É, pode ser que “não tenha nada a ver”...Vamos deixar assim para não provocar polêmica.
Vou então direto ao ponto: é possível viver uma vida “sem preconceitos”? É natural ou é doentio que as pessoas, em qualquer época e lugar, tenham preconceitos com alguém ou com alguma coisa??
Esse texto não é uma defesa do mundo com preconceitos nem do “direito de ser preconceituoso”. Ele quer ser uma espécie de desafio, um questionamento sobre esse besteirol que tomou conta de um Brasil em que cada pessoa vive, por um lado, uma gigantesca necessidade de emitir juízos de valor sobre o que não conhece (como eu coloquei no início do artigo) e, por outro, o policiamento constante, o medo de ser enquadrada como preconceituosa, quando o faz.
Nós fazemos parte de uma espécie que formou todo seu conhecimento, toda sua cultura, sem as urnas e sem as pesquisas de opinião pública, sem as ONGS e sem as delegacias especializadas. Nós viemos de um mundo e de uma época em que as crenças em deuses, diabos e bruxas, em raios e trovões nos ajudaram a sobreviver sem passar pela experiência física (muitas vezes mortal) de enfrentar uma força desconhecida. Nossos “preconceitos”, tantas vezes apresentados como sinônimo de atraso, nos ajudaram a chegar até aqui !
Depois disso, eu mesmo digo: “Ah é? Levando sua tese adiante, negros e mulheres jamais votariam e os gays sofreriam mais do que nunca, não é verdade??”
Sim, é verdade sim, e é mais verdade ainda que deve haver, portanto, um meio-termo porque o que está acontecendo HOJE é que vivemos numa época em que é mais importante “não ter preconceito” com absolutamente nada do que formar um juízo correto sobre qualquer coisa. Quando o juízo tupiniquim é incapaz de ser contido ele então apela para os dois discursos de sempre: o marxista e o psicanalítico e aí, como eu mostrei lá no início, você (psicanalista) diz que o outro está se apresentando como “coitadinho” ou você (revolucionário) diz que ele é um “covarde que prefere ficar quieto”
Toda razão, tudo que restou da capacidade de pensar no Brasil, está doente e confrontada com a realidade vai sempre dizer que ela, ou quem sobre ela se manifesta, precisa ser modificado para que uma utopia seja alcançada. A revolução estará nas ruas ou nos divãs dos psicanalistas: o que não for “revolução”, será “preconceito.”
Porto Alegre, 6 de julho de 2015.