A “Arte Útil” - Ensaio sobre o Fim da Filosofia

Milton Pires.

Disse certa vez Jorge Luís Borges que era, vejam só, muito melhor leitor do que escritor. Algo que não surpreende para quem considerava o paraíso como “uma espécie de biblioteca”, mas afirmou também que, comparando as duas atividades, achava a leitura algo mais civil e, quem sabe (acrescento eu), mais racional. Chesterton dizia que para “ser sincero é necessário ser egoísta”, definição que talvez justificasse Borges na sua comparação entre ler e escrever já que não posso acreditar que qualquer um dos dois, Chesterton ou Borges, quisesse escrever de uma maneira “não sincera”

Há nos dois atos – de ler e escrever – pelo menos pra mim, uma necessidade de solidão profunda, de uma espécie de comunhão que faço comigo quando leio e com alguma outra coisa (que não sei definir) quando escrevo. Sei por que leio; nunca sei por que escrevo. Escrevo intuitivamente, sem organização nem plano algum, numa espécie de ato fisiológico, numa tentativa de deixar algo que, uma vez no papel, sequer parece ter saído de mim. Escrevo sempre assim: para mim mesmo e de uma maneira que é, ou “pouco civil” como dizia Borges, ou “egoísta”, como definiu Chesterton.

Independente das diferenças entre as duas coisas – ato de criar escrevendo ou de criar-se a si mesmo lendo – não tem mais este mundo a solidão necessária, o elo que defini acima como sendo comum entre as duas atividades, para que qualquer um deles possa ser completo. Essa solidão, essa privacidade urgente àquele que apela à palavra escrita para dar testemunho de sua consciência, parece ter sido esquecida num mundo em que a própria consciência se “dilui”, se perde ou se modifica, a partir de uma experiência que é, antes de tudo, coletiva; jamais individual.

Parece-me, sobretudo quando vejo os jovens, que não existe mais possibilidade de uma leitura nem de uma escrita honestas. A arte de escrever e o prazer de ler estão paralisados, presos diria eu, e quase que que engessados num estereótipo do qual jamais podem fugir. Escreve-se social ou psicologicamente, mas sempre de maneira “útil”, e não se pode ler muito longe disso. Talvez sequer se possa ler “fora” disso, haja visto que é imperativo que nos modifiquemos a nós mesmos ou a sociedade em tudo que criamos. Impossível, portanto, fazer a apologia do devaneio, do belo “per se”, que constitui, ele mesmo, a base de toda discussão filosófica no campo da estética.

Miserável é, pois, toda sociedade que contempla a arte de uma maneira utilitária, de um ponto de vista prático, quer seja ele justificado na base da psicologia ou da política. Essa necessidade de justificação é sintoma de algo muito mais grave, de muito mais “trágico”, diria eu, que é a morte da própria filosofia, pois se necessária é a solidão para que se crie e se contemple a verdadeira arte, ela também o é para que se possa pensar sobre ela, para construir um discurso original sobre o belo que, impedido de nascer, representa a impossibilidade de um discurso original sobre qualquer outro aspecto desta vida e, no final das contas, o “fim” da própria filosofia.

Para o pai

Porto Alegre, 5 de julho de 2015.

cardiopires
Enviado por cardiopires em 11/07/2015
Código do texto: T5307337
Classificação de conteúdo: seguro