Pequeno Ensaio Sobre Questões de Filosofia - parte 30
O conceito de felicidade
Encarada pelo prisma da filosofia e pela análise popular, a felicidade parece surgir como a grande seara impenetrável, a deusa sedutora dos homens. A questão da impenetrabilidade e da sedução não se vê aí, todavia, ligada a algo impossível, tampouco carnal. Demócrito foi quem mais se aproximou, a meu ver, da definição de felicidade ao afirmar que a mesma só advém pela serenidade de espirito e eliminação das ilusões. Entre ter essa percepção e vir realmente a praticá-la reside toda a diferença. À partir do momento em que tomamos conhecimento da nossa identidade como um ser social, portanto influenciável, na roda dos conceitos vigentes, vamos deixando, inconscientemente, que os desejos nos dominem. Viver torna-se um persistente apelo às demandas da ilusão.
Tudo o que passamos a almejar, nossos sonhos, nossas metas mais acirradas vem cravejado de egoísmos; queremos a auto realização e para isso pagamos o preço do trabalho e da renúncia. São os embates contínuos, as frustrações e a decepção da derrota que nos fazem sacudir os sentimentos adormecidos. Nesse ponto a filosofia do otimismo não está equivocada ao definir o sofrimento como algo benéfico que nos quer arrancar das garras da ilusão. A incompreensão quanto a este princípio da vida é que resulta nas tragédias que assolam o mundo devido exatamente à razão exposta. Então, não é a ilusão, tampouco o sofrimento que distancia a felicidade, mas a forma de encará-los.
A explicação da inexistência do sofrimento encontra-se nesse ponto. Tendo-o como algo inevitável ele passa a ter essa conotação. Mas, à medida que o vamos compreendendo pelo acúmulo de experiências, fica mais fácil lidar com as ilusões da vida e elas passam a inexistir igualmente. Por que uns sofrem terrivelmente e outros nem tanto assim? Sendo comum a todos, deveria ele, o sofrimento, afetar a todos do mesmo modo, mas sabemos que não é isto o que acontece. A forma de lidar com a vida varia em função do entendimento proporcionado pelo aprendizado. Porém, depende de cada um esse relacionamento consigo mesmo. É daí que partem todos os prêmios como partem todos os puxões de orelha. A felicidade vai-se delineando ao longo da vida como recompensa pelo desprendimento. Não é preciso ser um filósofo nem sábio para entender algo tão notório no dia a dia de qualquer um de nós. A grande diferença não está em saber, mas o que fazer e como fazer para que o que vemos não nos atinja e tire de nós a chance de sermos felizes.
É lançar-se a um tipo de vida que proporcione alegria sem o perigo de se deixar ludibriar pelo terrível fantasma das comparações. Este seria o passo fundamental na senda da existência capaz de proteger o ser contra as investidas da ilusão. É muito fácil a teoria. Mas, toda teoria existe para ser transformada em prática, do contrário não teria sentido expô-la. Tudo no mundo, sendo o resultado das ações humanas, é prova de que, é no comportamento e na atitude em se fazer as escolhas que se encontra essa parte prática que parece tão difícil pela exposição teórica.
Vivemos nos comparando uns com os outros. Fez-nos, o criador, dessemelhantes em diversos aspectos; não existem duas criaturas iguais no mundo. Dentre os bilhões que já passaram por aqui e outros bilhões que ainda virão não há, nem haverá dois seres iguais. Somente isto já faz cair por terra todas as presunções materialistas. O maior cego é o que não quer enxergar. Se somos diferentes em constituição por que haveríamos de querer nos igualar em outros aspectos tais como posição social, aquisição de sabedoria ou poder econômico? Os conflitos pessoais e, no outro extremo, as guerras surgem como consequência dessa insatisfação e teimosia em não aceitar o outro, em tê-lo como superior em uma ou mais exterioridades; é o medo da soberania, da superação econômica, da supremacia bélica.
Não importam as justificativas políticas; estas não fazem mais do que fomentar as divergências suscitadas pelo medo e pelas comparações ao longo do tempo. A felicidade seria uma companheira de todas as horas se utilizássemos mais a sabedoria do que a inteligência. A inteligência compara, oprime e, não infrequente, tortura os desabilitados. A sabedoria não faz comparações. Ela procura unir os pensamentos divergentes num só pensamento de união e tem por primordial a paz, centeio da felicidade. A felicidade pode ser pessoal, contanto que o almejo tenha por alvo o todo. Vistos por este prisma, os conflitos também não deixam de ser o espocar da insatisfação das almas sedentas por felicidade.
A alegria é fator preponderante de felicidade. Sem alegria não pode haver vida que valha a pena. A espontaneidade do sorriso, da fisionomia alegre, do bem estar são características de quem vive com alegria. Se a serenidade é essencial, é pela prática da alegria que conseguiremos alcançá-la. Muitas são as razões que possam tornar difícil a manutenção de um estado de espirito alegre e temos por natureza o dom da lamúria perante os fatos que não preencham nossas expectativas. É inconveniente para o homem olhar o próprio umbigo, mas é raro que assim não seja; não pela natureza humana, senão pela acomodação em praticar princípios simples de vida. A alegria é contagiosa, não depende da satisfação do ego nem de graças inesperadas. Não deve ser uma dádiva, mas um prêmio adquirido pela vontade de agradar.
É por isso que ter alegria pelo advento de uma ou outra graça não traz a vantagem da felicidade, pois surgiu do egoísmo; não atinge o outro. Pelo contrário, pode trazer a inveja, pode gerar uma felicidade vulnerável, carcomida de praga e de ressentimento. A alegria espontânea é a melhor de todas as alegrias. A principal delas, pelo fato de estarmos desfrutando o dom maior que é a própria vida. Não depende de nada, não cobra obediências e não se desgasta com o tempo, posto que é fomentada à medida que passam os anos quando se olha para trás e se comprova que só ela restou de tudo que adquirimos e vai continuar existindo pela eternidade afora; inteira, fortalecida e, o mais importante, perpetuada no rastro que ela conseguiu alastrar.
Contudo, não deve haver fator maior de felicidade do que o exercício da gratidão. É dela que surge a alegria espontânea de que falamos. Basta uma vida temperada pelas demonstrações de gratidão para que a felicidade se instale. Todas as coisas partem daí. Eu gosto de me espelhar nas pessoas idosas que passaram pela vida e, a despeito de todas as montanhas que tiveram que atravessar, ainda mantêm no semblante a prova de que foram gratas a tudo. Destrinchando muitas das dissertações filosóficas ao longo da história do homem deparei com inúmeras páginas caracterizadas pela falta de gratidão. Não há dúvidas de que comparando-se o mundo de hoje ao de séculos que já se perderam na poeira do tempo vai uma diferença marcante na qualidade de vida. Somos mais felizes do que foram os nossos antepassados em função da própria máquina evolutiva, da ordem natural de todas as coisas. A tendência do planeta é alcançar a evolução pelo esforço humano em desprender-se da mediocridade. Ele evolui porque tem que evoluir; não há outro caminho. Mas falo da postura negativa em relação a vida em si. Ela é uma dádiva.
Não importa a época em que aqui chegamos, foi-nos dado esse laurel na medida do nosso merecimento e é desse prêmio que estamos falando. O que passamos é para o crescimento do espirito e é o esforço para reconhecer isto que resulta no nível de gratidão alcançado. A maioria das colocações filosóficas parece que pranteia a existência, dando a ela conotações dolorosas. Folhas e mais folhas são abarrotadas de estoicismo e resignação diante dos sofrimentos inevitáveis. Vejo nisto a falta de gratidão, do reconhecimento de um simples fato: o dom da vida. Por outro lado, apesar da postura daqueles grandes homens, e pelo que sei, não cometeram suicídio, já que achavam a vida tão difícil de ser enfrentada. Talvez isto mostre que gostavam dela, acima de tudo.