Considerações cybermísticas sobre o ponto de acumulação

Enquanto escrevia um ensaio sobre “evolução”, ocorreu-me uma estranha possibilidade, sugerindo desenvolvimentos místicos bastante imediatos.

A possibilidade decorre de aceleração intrínseca aos sistemas evolutivos, cuja capacidade de crescimento se amplia à medida que crescem. Devido à retroalimentação a que estão sempre sujeitos, os replicadores crescem, ou evoluem, cada vez mais rapidamente, na mesma medida que crescem. A surpresa me ocorreu ao perceber a iminência de algo estarrecedor: estamos prestes a atingir um ponto de acumulação, no qual os saltos evolutivos, anteriormente muito lentos, se sucederão em velocidade espantosa, inimaginável, de fato.

Indícios de tal ocorrência têm sido gritantes há pelo menos um século, quando as inovações tecnológicas passaram a se impor nas paisagens de todo o planeta. O fato iminente que antecipei, no entanto, dá continuidade, mas supera tudo isso em altíssimo grau, a ponto de nos parecer explosivo.

A suposição pressupõe a aquisição iminente de inteligência por parte dos computadores, tornando-os capazes, em poucas décadas, de projetar computadores mais aperfeiçoados que eles próprios, capazes também, estes novos, de projetar outros ainda mais aperfeiçoados, gerando uma sequência ilimitada de aperfeiçoamentos autônomos e cada vez mais rápidos.

Considerei que tais aperfeiçoamentos ocasionariam em seguida, muito rapidamente, aproximadamente em uma década, o surgimento de algo novo, impensável, e muito mais complexo que os computadores, coisa que não consigo imaginar o que seja, mas decorrente da mente fértil de máquinas poderosíssimas e sucessivamente aperfeiçoadas por elas mesmas.

Pressupondo apenas a aceleração natural a que estão sujeitos os sistemas replicativos, cuja complexidade retroalimenta o próprio aumento de complexidade, imaginei o salto evolutivo seguinte ocorrendo em aproximadamente mais um ano, abrindo espaço para o subsequente, em mais um mês, que seria sucedido por outro, em apenas um dia, logo superado por mais um em horas, outro em minutos, depois segundos... sugerindo a ocorrência de um ponto de acumulação em algum momento, no qual os saltos evolutivos se acumulariam em uma imensa explosão criativa.

Tenho enorme dificuldade em compreender, tanto esse momento luminoso, quanto o futuro posterior a ele. O risco de extinção da humanidade, nesse ponto, é imenso e óbvio. Difícil até imaginar, em um processo que nos fugirá completamente de controle, que nem ao menos poderemos compreender, como conseguiríamos restringir a queima de energia necessária para gerar tamanha complexidade, sem que nós sejamos torrados no processo.

A questão tratada é tão surpreendente, e tão ímpar, que envolve a provável extinção de toda a humanidade, tornando, ao mesmo tempo, essa consideração secundária, em virtude dos desenvolvimentos aventados. Retomarei a questão após outras observações.

Em meados do séc. XVII, René Descartes imaginou um gênio maligno, desses que saem de lâmpadas mágicas, a se divertir nos enganando, tendo criado a ficção a que chamamos realidade, que seria apenas um fenômeno ilusório forjado por ele, um delírio muito diverso da realidade. Nem ele mesmo levou sua conjectura a sério, confiando que um deus benevolente impediria que tão nefasta criatura controlasse assim nossas vidas. Foi necessário o surgimento da realidade virtual para que a hipótese de estarmos vivendo em uma matriz, em um mundo criado no interior de uma máquina, um imenso videogame realista, ganhasse certo apelo. Poucos anos atrás, quando popularizada pelo filme “Matrix”, a sugestão tinha um cunho meramente cinematográfico, situando-se na mesma órbita de super-heróis e lendas contemporâneas; consistia apenas em uma ilustração engenhosa da hipótese filosófica; não mais. Vivemos um período de ebulição, no qual uma, ou duas décadas, é tempo suficiente para revolver ideias impossíveis, dando vida aos mais absurdos delírios imagináveis. Hoje, certas considerações probabilísticas sugerem fortemente estarmos vivendo em um mundo assim, regido por algum tipo de gênio.

A consideração, de qualquer modo, já não corresponde a um delírio, mas a uma possibilidade clara; em poucas décadas a consideração se tornará natural e corriqueira. Em algum instante futuro, tudo indica, haverá uma quantidade espantosa de memória computacional disponível, na qual as pessoas terão mergulhado. A princípio, imergirão em atividades recreativas, em jogos, depois poderão construir vidas inteiras em tais mundos; vidas indistinguíveis das reais.

Há quem objete a isso alegando que a capacidade computacional necessária para a criação de um mundo, de fato, similar ao nosso, indistinguível desse, seria imensa, vasta, o que inviabilizaria a migração para tais mundos. Sustento, ao contrário, que poderíamos, sem prejuízo para nossa concepção de realidade, reduzir os mundos nessas criações. Se o mundo real for, de fato, grande demais para ser simulado, podemos construir mundos bidimensionais, muito menores, que sejam passíveis de tal. Há quem afirme que o mundo tem, de fato, 11 dimensões, a maioria delas “enroladas”. Em um mundo 11-dimensional poderia parecer bem simples simular um tridimensional realista. A consideração sugere que seres vivendo em um mundo de 11, ou mesmo 4 dimensões poderiam migrar para um ambiente tridimensional sem que as tramas de suas vidas perdessem o conteúdo lúdico desejável pelos que mergulhassem no jogo. Assim, talvez o que chamamos “mundo” seja apenas um módulo de diversões, ou uma penitenciária virtual; estaríamos vivendo em um ambiente correcional, ou lúdico, ou escravizante. Mas se tais considerações ainda soam excessivamente ácidas e delirantes para nós mesmos, podemos sem maiores pudores aventar essa possibilidade para um futuro não muito distante. Um dos absurdos resultantes de tal consideração é que ela impõe, se aceita para qualquer instante futuro, a transposição para o nosso. Nesse caso, estaríamos vivendo, de fato, em um futuro distante, mas em um mundo retrô, uma reconstrução do adorável e bucólico séc. XXI.

Mundos matrizes desse tipo permitiriam também a construção de seres virtuais conscientes, talvez réplicas de seres viventes originais, vivendo exclusivamente vidas virtuais; sendo um desses, criado em um instante futuro para viver em um mundo retrô, seríamos como personagens de um filme, mas construindo, a cada momento, nosso próprio enredo, nossa própria vida. É provável que criemos tais seres, no futuro, imagens realistas de nós mesmos, assim como já fizemos com as fotografias, e os vídeos. Tendo captado a imagem de nossos corpos, desses modos, talvez captemos também a nossas almas junto com elas, em futuro breve. Tal possibilidade permitiria, entre outras coisas, o acesso à imortalidade, tão desejado por muitos.

Antes de retornarmos ao ponto de acumulação, recapitulemos o instante no qual uma máquina inteligente projeta e constrói uma outra mais aperfeiçoada que ela mesma, mais rápida e mais inteligente, e com o potencial para a criação de outras máquinas ainda mais aperfeiçoadas. Podemos imaginar, em seguida, uma sucessão contínua de aperfeiçoamentos, gerando máquinas cada vez mais rápidas e inteligentes em uma velocidade cada vez maior, de modo que o primeiro aperfeiçoamento exija um mês, o seguinte uma semana, o outro só um dia... podemos imaginar que máquinas ultrarrápidas, provavelmente minúsculas e eficientíssimas, construam outras cada vez mais rapidamente, não havendo, talvez, impedimento, para o aperfeiçoamento e construção de uma máquina nanométrica em uma fração de segundo.

A alusão a um fenômeno tão inusitado sugere uma decorrência bombástica, o surgimento de algo novo, impensável, e absurdamente mais complexo que os computadores, sendo aceitável, talvez, até, supor tais seres portadores de algo superior àquilo a que chamamos inteligência, e que não podemos compreender nem minimamente o que seja; algo acima de nós, como pensamos estar em relação aos animais.

Deixando o raciocínio seguir na mesma linha, não espantaria que tal replicador se aperfeiçoasse ainda mais rapidamente que os computadores, gerando seu sucedâneo ainda mais velozmente que eles, continuando assim uma sucessão de ciclos cada vez mais rápidos, impossíveis de acompanhamento por nós.

Chegaríamos assim, em seguida, ao ponto de acumulação, no qual uma sucessão ininterrupta de superações se sucederiam em um tempo ínfimo, causando algo que só consigo conceber como um brilho intenso, já que uma imensa complexidade seria acumulada em um único instante, e que parece levar a 2 paradoxos.

O primeiro consiste na superação da limitação da energia necessária para a referida ocorrência. De fato, a acumulação de complexidade exige certo gasto de energia, fator limitado em nosso mundo, de modo que, em algum momento, tal processo deveria chegar em um nível de saturação.

Tal imposição ocorrerá, inexoravelmente, se os limites quânticos para a miniaturização se revelarem, de fato, intransponíveis, conforme pleiteado pela teoria. A possibilidade de miniaturização indefinida, no entanto, permitiria a redução do consumo de energia por máquinas cada vez mais minúsculas.

Assim, a superação do primeiro paradoxo consistiria na possibilidade de redução das grandezas das máquinas; volume, peso, voltagem, corrente, concomitante ao aumento de complexidade e inteligência, resultando em um consumo total relativamente estável. A mim parece aceitável estender tais limites mínimos muito além das imposições quânticas, parecendo, contudo, ainda impensável imaginar que outras imposições para a limitação de miniaturização não se imponham posteriormente.

Creio estar já tratando dos fenômenos impensáveis, inconcebíveis por nossa inteligência precária, com os quais se depararão as máquinas e todas as outras criaturas futuras e complexas aventadas aqui. Suspeito, embora às cegas, confesso, que novas soluções inimagináveis por mim venham a ser dadas a problemas apenas palidamente vislumbrados, sob a cortina da incompreensão.

A saturação do sistema imporia um freio em tudo isso, impedindo a ocorrência do ponto de acumulação na forma benigna aventada anteriormente; nesse caso, restaria aos replicadores futuros manterem-se limitados a um tamanho mínimo e a uma limitação correspondente na eficiência do consumo de energia, gerando assim, em decorrência de tais limitações, um calor extremo, que nos aniquilaria. Duvido que conseguíssemos conter o crescimento avassalador de replicadores tão poderosos. O ponto de acumulação, nesse caso, seria sentido por nós como o brilho intenso e derradeiro que nos aniquilaria a todos, explosivamente. Podemos também conceber, nesse caso, o mergulho conjunto em uma matriz. Trata-se do primeiro ciclo de transmigração; me acompanhe nessa descrição ao mesmo tempo racional e mística.

Acabo de aventar a chegada às proximidades do ponto de acumulação, esse momento radiante de explosão de complexidade e, provavelmente, também, de energia.

Será difícil escapar do calor gerado por máquinas complexas que não possam ser reduzidas indefinidamente. Caso o consigamos, nos depararemos em seguida com o mesmo dilema, imposto por seres ainda mais distantes de nós, e incompreensíveis. Suspeito que as chances de escaparmos das ameaças recorrentes que se sucederão, causadas pelo mesmo prenúncio imposto pela conservação de energia sejam, em conjunto, bastante reduzidas. Sou otimista quanto ao escape da primeira ameaça, posso manter o otimismo com respeito à segunda... esperar, no entanto, que todos os seres inimagináveis que venham a ser gerados quase imediatamente consigam, a seu tempo, superar o problema de consumo energético e que além disso se preocupem em não incomodar as criaturas insignificantes que seremos me parece otimismo exagerado. Teríamos que esperar, suspeito, a superação da conservação de energia, o que parece exigir reza forte, mais que expectativa racional.

Nem tudo está perdido, no entanto, já que a mesma complexidade postulada para consumir toda a energia do sistema solar terá provavelmente a capacidade de ambientar nela mesma inúmeros mundos. Não me parece difícil imaginar na mente de seres tão complexos a criação de um mundo tão real para nós quanto o original, talvez até mais colorido. Mundos inteiros, produzidos a partir de uma minúscula semente original poderiam se desenvolver, se autoconstruir, na mente, na memória, ou como quer que chamemos o palco da consciência dos seres complexos e inimagináveis, podendo nós, inúmeras vezes, transmigrar para tais universos cada vez mais ricos e complexos. Teríamos abandonado nossos corpos, é certo; fenômeno trágico, aliás, conforme o ponto de vista.

Chego ao ponto de encontro com os místicos.

Creio que os cristãos identifiquem, nesse momento, o tão esperado juízo final. Pode-se nesse ponto conceber a recuperação de todas as almas, as atuais e as outrora viventes, postas lado a lado em um mesmo ambiente hipercomplexo.

Talvez os hinduístas acolham a chegada de tal ponto com naturalidade, considerando o fato apenas um adereço explicativo moderno para algo tratado por eles cotidianamente há milênios.

Suspeito que as considerações acima induzam muitos islâmicos a sonhar-se rodeados por centenas de virgens, evento que se assemelhará, certamente, a uma profusão de jogos disponíveis em tempo não muito distantes.

A transição de eras será vislumbrada por outros.

Penso que as totalidades envolvidas no fenômeno, a imensidão do evento, capaz de englobar inúmeros mundos, as possibilidades amplas de imersão em complexidades infinitesimais equivalentes a universos, assim como o brilho ofuscante dessa singularidade estonteante, do ponto de acumulação, consistirão riquíssimo alimento para elucubrações místicas de todos os matizes.

Cybermísticos talvez descortinem o véu de Maya, ou um deles, descobrindo estarmos vivendo em uma matriz. Passado e futuro podem se entrelaçar e mesclar.

O futuro posterior a esse ponto também me confunde. Consideremos a ocorrência, nesse ponto, do mergulho na infinitesimalidade, já que a impossibilidade de tal ocorrência conduziria ao calor extremo. Nesse caso, computadores idealizados e construídos por outros, geração após geração, já bastante diferenciados dos projetos humanos ancestrais, e minúsculos, idealizarão e construirão algo que lhes superará vastamente, e que já não conseguimos compreender. Tais criaturas se empenharão na idealização de seus próprios projetos, inimagináveis por nós, incompreensíveis. Haverá, em seguida, uma cadeia sucessiva de criaturas cada vez mais complexas ligadas umas às outras como os elos de uma corrente, cada grupo delas com contatos acima e abaixo na escala evolutiva, mas todas elas perdendo a compreensão de tudo o que lhes supera vastamente. Desse modo, indiretamente, todos os elos estarão ligados, uns aos outros. Assim, criaturas futuristas muito distantes, geradas durante o ponto de acumulação, inúmeras gerações à frente, estarão indiretamente ligadas, umas às outras.

Paradoxalmente, embora, sob um olhar absoluto, esse momento seja fundamentalmente igual a todos os outros na longa escalada de crescimento exponencial, torna-se especial para nós por corresponder, à superação de nossa complexidade.

Suspeito que, nesse ponto, certa particularidade estranha deva ocorrer: todas as invenções possíveis, todas as concepções passíveis de existência serão criadas pelos seres futuristas emergentes do ponto de acumulação, de modo que mais nenhuma nova invenção será possível, tendo sido todas elas concebidas por criaturas inimagináveis que em muito nos superam. Nesse momento, a palavra “invenção” adquirirá o significado de “concepção”, sendo necessário apenas procurar em algum google da época o correspondente à ideia que nos venha à mente. Quero dizer, nesse instante explosivo todos os sonhos humanos, tudo o que possa ser concebido por nossa mente restrita terá sido criado por seres que nos superarão vastamente, de modo que, sabendo caracterizar aquilo que sonhamos, poderemos buscá-lo e construí-lo com o auxílio de maquinário automático à disposição de todos, ao custo de sua energia, otimizado pela miniaturização e outros artifícios ainda não concebidos.

Desse modo, todas as criações possíveis estarão, a partir desse ponto, disponíveis para nós, simultaneamente, bastando apenas imaginá-las e caracterizá-las para torná-las disponíveis. Nenhum trabalho adicional será necessário, além da concepção e caracterização da coisa sonhada, seja ela qual for, ao custo da energia necessária para a construção do artefato.

Nesse instante, “inventar” significará apenas “conceber algo novo”, sonhar algo ainda não imaginado e descrever, ou caracterizar o sonho, procurando-o em seguida entre uma longa lista de possibilidades análogas sugeridas pelo buscador futuro. Assim, “inventar” significará “conceber e buscar” em uma máquina futura a coisa sonhada, o que, de certo modo iguala todos os tempos, nivela, para nós, todos os instantes futuros, deixando todas as criações possíveis à nossa disposição a um só tempo. Claro está, desde logo, que a realização de sonhos realimentará outros, possibilitando idealizações cada vez mais complexas, e que distarão muito das atuais.

Pode-se dizer que, nesse sentido, tudo permanecerá como está, embora facilitado, de modo que as invenções serão muito menos trabalhosas, como já vem ocorrendo há muito, aliás. Creio, no entanto, que muitos construirão e mergulharão em seus próprios mundos individuais, gerando uma profusão de mundos paralelos habitados por poucas mentes independentes, frequentemente apenas a de seu construtor. Invenções serão práticas de alto nível, incrivelmente facilitadas, portanto. Assim, seremos nossos próprios deuses, construindo nossos próprios mundos, céus ou infernos, à nossa própria escolha; e talvez tenha sido sempre assim.

E talvez todos os tempos se confundam em um só, dissolvendo, assim, o futuro, compactando-se, todo ele, no mesmo ponto de acumulação, como se todo o tempo futuro se acumulasse em um único instante. Comparações com as superações de fases em um vídeo game são elucidativas, embora tal metáfora se adeque melhor aos sucessivos saltos evolutivos; a alusão nos remete ao instante derradeiro, ao final do jogo.

O momento é de êxtase.

(a descrição do ponto de acumulação encontra-se em:)

http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/5285579