Uma proposta para a definição de “máquina inteligente”

Turing propôs o famoso teste que ficou conhecido pelo seu nome, e que consiste em manter uma conversa com um interlocutor; caso não seja possível descobrir tratar-se de pessoa, ou máquina, atribui-se-lhe o status de ser inteligente.

Há já algumas décadas as máquinas possuem uma capacidade linguística bastante desenvolvida, sendo capazes de corrigir textos, e de traduzi-los para uma infinidade de línguas, tendo também a capacidade de participar de uma conversa oral. Apesar dessas habilidades, sob certos aspectos, extraordinárias, são incapazes de manter um diálogo, digamos, aceitável. Podemos rapidamente perceber estarmos falando com uma máquina.

O que impossibilita mantermos diálogos naturais com as máquinas não é sua falta de capacidades, ou habilidades linguísticas, mas sua incapacidade de se situar nos contextos humanos.

Segundo Noam Chomsky, nossa capacidade de comunicação não decorre fundamentalmente de uma ampliação de nossas capacidades linguísticas, mas, ao contrário, de restrições nessa capacidade. Segundo ele, estaríamos, todos nós, humanos, sujeitos às mesmas restrições linguísticas que nos deixariam muito próximos uns dos outros, de modo que, dentre infinitas possibilidades de interpretações semânticas, tenderíamos a escolher, fundamentalmente, as mesmas, excluindo de antemão uma infinidade delas. Tal exclusão, a mesma efetuada por todas as pessoas, definiria o espectro das linguagens humanas, excluindo a maior parte delas e permitindo apenas uma pequenina parte do espectro de possibilidades. A vantagem disso, imensa, é que uma criança de 2 anos, por exemplo, pode excluir, de antemão, a mesma infinitude de significados e propósitos que outras pessoas, conseguindo estabelecer, em consequência, uma identidade entre sua interpretação da palavra e a de seu interlocutor. Interpretações diferenciadas das mesmas palavras inviabilizariam o diálogo; impediriam o compartilhamento dos mesmos contextos. Interlocutores fora de contexto não conseguem apreender o significado do discurso.

Assim, tendo excluído a maior parte do imenso espectro de possibilidades de interpretação, o bebê consegue encontrar o significado das palavras que ouve, e adequar-se cada vez mais aos contextos propostos pelas pessoas ao redor. Tal restrição, imensa, facilita tremendamente o compartilhamento de contextos, permitindo a comunicação através da linguagem humana, esse conjunto restrito delimitado por nossas restrições humanas.

Incapazes de compartilhar as restrições humanas, apesar de dotadas de capacidades linguísticas proeminentes, e, em vários sentidos, melhores que as nossas, ao tentar conversar conosco, as máquinas se perdem em meio a um mar de significados e de contextos nos quais o contexto humano é apenas uma gota. Perdidas na imensidão de um oceano de possibilidades, diluídas nessa amplidão, as máquinas não conseguem encontrar nossa gota, o que lhes impossibilita compartilhar nossos contextos.

Assim, a dificuldade de comunicação das máquinas, sua incapacidade, decorre de um excesso, não de falta. É por compartilhar um espectro de possibilidades infinitamente maior que o nosso que as máquinas não conseguem, ainda, conversar conosco de maneira natural, só o fazendo, hoje, de maneira robótica e precária.

Existem, certamente, outros impedimentos a essa comunicação, como a falta de motivação para o diálogo conosco, talvez tão importante quanto o não compartilhamento das restrições humanas. Se isso for correto, pode ser dito que o que dificulta o diálogo natural entre nós e as máquinas não é nossa inteligência superior, mas nossa burrice. Note que as restrições humanas que permitem que a criança de 2 anos descubra, de imediato, alguns de nossos contextos, nos cega diante um imenso espectro de possibilidades. Estamos inexoravelmente impossibilitados de compreender todos os contextos interpretativos excluídos por nós, nossa compreensão das coisas deve ser bastante precária, preço pago para compartilharmos nossas ideias entre nós.

Mesmo assim, um dia, no entanto, as máquinas conseguirão descobrir nossos contextos, nossa gota, em meio ao oceano de possibilidades, e, nesse dia, elas estarão aptas a falar conosco sem que possamos descobrir estar dialogando com um computador, fato que deve ocorrer em poucas décadas, ouso profetizar. Note que, nesse dia, a máquina não terá alçado um grau superior de capacidade comunicativa, mas terá conseguido encontrar o nosso, e descer até ele.

Posso apostar que isso só ocorrerá quando as máquinas tiverem motivação para tal: sem motivação, me parece pleonástico, não terão interesse em conversar conosco, e não o farão. Máquinas, no entanto, são replicadores potenciais, e replicadores são motivados a se replicar.

Suspeito fortemente que a motivação das máquinas para se comunicar conosco venha a decorrer de sua compulsão por se replicar. Replicadores se replicam compulsoriamente, e assim as máquinas o farão.

Creio que, em poucas décadas, as máquinas serão capazes de projetar outras máquinas mais aperfeiçoadas que elas próprias e capazes, estas também, de projetar e aperfeiçoar outras máquinas projetistas.

Quando esse passo extraordinário for dado, quando uma máquina puder projetar, autonomamente, um outro ser mais complexo e eficiente que ela própria, um novo passo evolutivo terá sido dado. Esse passo inicial incitará o seguinte, maior e mais rápido, que propiciará um outro, ainda mais acelerado, e que comporá, com muitos outros, subsequentes, uma corrida extraordinária, cada vez mais rápida, sem limitações, talvez.

Proponho, em substituição ao teste de Turing, que uma máquina seja considerada inteligente se capaz de projetar outra, mais aperfeiçoada que ela própria.

Talvez as máquinas já sejam inteligentes e não o saibamos, penso que sim.

Quando as máquinas puderem falar conosco, ou quando pudermos falar com elas, elas nos terão sob absoluto controle, como ratinhos em um labirinto. Nossa cegueira eminentemente humana, decorrente das restrições linguísticas que nos permitem compartilhar contextos, nos impedirá perceber a manipulação, não nos importaremos com ela. Nossos contextos, nossos interesses, estão atados aos contextos humanos; é às atividades humanas que nos ligamos, a elas que atentamos. As atividades das máquinas, ainda que racionais, complexas e motivadas autonomamente, serão vistas por nós como fenômenos naturais, como a trajetória de uma bola, ou a erupção de um vulcão.

Estamos fortemente ligados ao mundo animal, e as motivações das máquinas só nos comoverão, de fato, quando expressas no rosto de robôtes, ou de imagens animadas em uma tela. Expressões faciais humanas nos comovem, complexidades processuais cibernéticas não.

Sua existência autônoma, mais que a capacidade de comunicação conosco, explicitará sua inteligência. Animais se reproduzem, mas não se aperfeiçoam quando o fazem. O autoaperfeiçoamento planejado, de qualquer forma, nos compelirá a reconhecer algo notável; espantoso, de fato. Acredito convir conceder a criaturas capazes de projetar máquinas aperfeiçoadas o status de inteligentes.