A Lagoa do Violão
No coração da cidade de Torres/RS uma lagoa brota das lágrimas de Ocarapoti. Uma herança indígena contada e recontada através da tradição oral e que remonta ao período colonial e as navegações marítimas. A Lagoa do Violão é um dos mais belos cartões postais e representa o entrelaçamento do meio ambiente natural e urbano. O tecido urbano engoliu a lagoa, incorporou seus domínios aos limites da cidade, os muros, as ruas e as cercas. A lagoa da Vila de Torres - como era conhecida nos séculos XVIII e XIX– congrega elementos naturais e históricos que nos permite compreender os múltiplos significados e valores atribuídos ao longo do tempo. Uma das lendas mais conhecidas é a da Lagoa do Violão em que discorre sobre a chegada de um náufrago e seu instrumento musical, um violão, e sua relação amorosa com uma nativa chamada Ocarapoti. O enredo revela uma prática religiosa comum entre os povo tupi, a antropofagia ritual (a ingestão de carne humana no sentido de absorver as qualidades do prisioneiro) e a frustração e tristeza de Ocarapoti que se esvaiu em lágrimas pela morte de seu amado, abraçada em seu violão formando a silhueta da serena lagoa. No sentido de valorizar o imaginário local foi erigido um monumento na praça dos Escoteiros, representando a lenda indígena por iniciativa do Curso Técnico de Edificações do Instituto Estadual de Educação Marcílio Dias em 2003. Recordo na minha infância, na volta da escola os banhos na lagoa e a pescaria no meio dos banhados de “tiriricas”. Era comum fisgar peixes como o “cará”, o “cascudo” e o “muçum” entre uma brincadeira e um mergulho nas turvas águas da lagoa com os “cágados” e “tartaruguinhas”. Outros períodos de extrema poluição e negligência no manejo dos “aguá-pés” propiciaram uma verdadeira mortandade entre os peixes. Nesta época, ainda resistia ao tempo uma estreita ponte de madeira retilínea onde os transeuntes se espremiam para passar. Hoje, as pessoas atravessam a ponte de concreto chamada passarela Jaime Pozzi. A lagoa histórica preservava sua mata original e inestimável biodiversidade com dunas que escorriam em suas bordas e durante muito tempo o cotidiano da Vila testemunhava o canoeiro que se aproximava com mantimentos e madeira pelo riacho que ligava o rio mampituba à lagoa. O carregamento de madeira que vinha pelo caminho das águas abastecia a usina de energia às margens da lagoa e a caieira na Praia da Cal até meados do século XX. Atualmente, a ligação fluvial é conhecida como “Valão”. No século XIX, o naturalista francês Auguste Saint Hilaire descreve apaixonadamente o panorama da lagoa contrastando com a Serra e, certamente, não imaginaria que durante a década de 1990 funcionaria um mini zoo no cercamento da lagoa do Violão, onde eram avistados avestruzes, capivaras e aves. Na porção sul, o “Curtume” e uma área alagadiça entrecortada por caminhos, picadas e estradas. Na parte norte se desenvolvia a vila e futura cidade de Torres, num fluxo de ocupação do território entre os bairros centrais e a orla marítima de interesse turístico. As enchentes se intensificam a medida que as áreas de restingas e banhados são aterrados para os loteamentos e a lagoa que era um “Violão” torna-se um “Cavaquinho”. Um espelho d’água magnífico que reflete a vida da sociedade torrense e seus visitantes, inspirando os poetas e artistas no alaranjado pôr do sol, os atletas que se exercitam em caminhadas e corridas ou os ambientalistas que combatem o acúmulo de lixo e a poluição. A Lagoa do Violão entoa canções que acalentam os corações daqueles que a admiram com a mesma paixão ardente de Ocaropoti, a sua mãe criadora.
Publicado no Jornal Litoral Norte RS.