O Valor das Coisas 1: O valor do discurso da ciência econômica.
Outro dia, à época das eleições, eu e uma amiga conversávamos sobre alguns temas eleitorais. Ambos votaríamos basicamente nas mesmas pessoas, temos vários pontos de concordância. Mas, politicamente, algo não estava afinado em nós: eu dava muito valor à responsabilidade fiscal (gastar mais ou menos o mesmo que se arrecada), já ela não estava muito convencida a este respeito. Daí ela me chamou a atenção para o seguinte: os economistas que ela conhecia (que estudaram com ela na UnB) eram todos de direita. Defendiam, por exemplo, redução dos salários dos trabalhadores para que o país se torne mais competitivo; defendiam redução de políticas de transferência de renda, defendiam investimentos mesmo que às custas do meio ambiente... Com isto ela via com muita desconfiança o discurso da responsabilidade fiscal, para ela é como se fosse um meio dos economistas imporem sua agenda de direita.
De fato os economistas que ouvimos falar na grande mídia, como a CBN (a rádio que toca notícia) são, em sua imensa maioria, afinados em um discurso liberal. E, por a mídia trata-los com tanta reverência, seu discurso parece com pregação religiosa. É como se o que dissessem fosse metafisicamente correto, como se eles tivessem acesso à verdade da mesma maneira que um profeta acessa a verdade de Deus. Eis alguns mandamentos: temos que diminuir o valor do trabalho (pagar salários menores) para que sejamos competitivos internacionalmente; diminuir os direitos trabalhistas é muito bom para os trabalhadores, pois torna o trabalho mais barato e as empresas contratam mais; temos que diminuir gastos correntes (como em programas sociais) para que possamos investir mais; o país tem que crescer, só assim são gerados empregos.... Estas avaliações quando saem da boca de um jornalista são opiniões, quando saem da boca de um especialista (de um economista) são verdades endossadas pela ciência (ou pela religião??). Entretanto, caso não tenham esquecido das aulas mais básicas das ciências econômicas, os próprios economistas estão muito cientes das limitações de seu campo de conhecimento.
A economia se preocupa com escolhas no âmbito da restrição. Você tem recurso para seguir um caminho (investir na compra de uma casa, por exemplo) ou para seguir outro caminho (continuar pagando aluguel e investir nos estudos), mas não tem dinheiro para fazer ambas as coisas. Neste caso é possível usar a ciência econômica para ponderar qual caminho seguir, ela levaria em consideração coisas como: juros, possibilidade de conseguir um emprego após a graduação, valor do aluguel, valor da prestação. Mas ela NÃO ajudará em outros aspectos: ela não diz quanto prazer você aufere com os estudos, não sabe distinguir em que casa você prefere viver (a alugada ou a que vai comprar). Ou seja, a decisão inicial, o norte que guiará as decisões é uma escolha pessoal. O máximo que a economia fará é mostrar que há restrições, ela é um instrumento que mostrará o quanto você abrirá mão de outras coisas para bancar sua opção. Nisso, em tornar claro as escolhas (os trade offs), a economia é muito útil. Tanto no âmbito individual como no âmbito do país como um todo a economia ajuda a ponderar as escolhas. Comprar uma casa ou alugar? Diminuir os gastos do país para diminuir a inflação ou aumentar os gastos do país para fomentar o crescimento do país (medido pelo PIB)?
Apesar da forma como a televisão os trata, os próprios economistas, a não ser que tenham esquecidos as suas aulas mais básicas, estão bem cientes das limitações do seu campo de estudos. Considere apenas o PIB. Tudo o que é transacionado (tudo que é vendido, todo serviço que é prestado) é contabilizado. Repare, se você comprou um bolo ele entra no cálculo do PIB. Mesmo que fosse um bolo que você experimentou e não gostou, mesmo que tenha esquecido o bolo e ele tenha estragado. Ele entrou no PIB, o Brasil cresceu! Mas... Imagine que uma pessoa que adore cozinhar faça um bolo: o gratificante momento de descontração que é preparar o bolo não está contabilizado no PIB, nem tampouco o bolo em si (a não ser que seja vendido). Caso você pague por uma deliciosa massagem ela entrará no PIB; caso você receba uma maravilhosa massagem do seu parceiro ela não é contabilizada. Caso jogue futebol no quintal o PIB do Brasil não aumenta, caso pague para jogar em um clube o PIB do Brasil aumentou! Pronto, jeito fácil de aumentar o PIB do Brasil: troque todos os campos e quadras públicas por campos e quadras pagas! A despeito do que é o melhor (tem gente que defende que tudo ter um dono é o melhor para todos) uma coisa é consenso: O cálculo do PIB deixa de fora uma imensa parte da produção e do consumo (quanto vale caminhar na praia para você?, em termos de PIB não vale nada, pois não é transacionado). De fato existem diversas outras falhas na ciência econômica e sobre elas tratarei com mais calma, é um dos assuntos que mais me interessa. Por hora problematizar o cálculo do PIB é suficiente para o objetivo deste ensaio: problematizar a opinião dos especialistas, especialmente quando chamados pela mídia.
A mídia se mostra preocupada com a crise econômica, seu principal parâmetro é o crescimento do PIB. A principal pauta de discussão nos programas eleitorais foi este. Sempre que se discute os direitos dos das pessoas este ponto é colocado em pauta. O cálculo do PIB é um instrumento incrível e devemos sim tê-lo em vista – como devemos ter em vista a responsabilidade fiscal, como devemos ter em vista o balanço de pagamentos... apenas devemos estar cientes que estes são instrumentos (com qualidades e defeitos) para ponderarmos nossas decisões. Ela ajuda a decidir se vou alugar ou comprar uma casa, mas ela é um instrumento para minha decisão. Ela ajuda a pensar em como devem ser as leis de aposentadoria pública, mas a decisão é do povo (através dos seus representantes eleitos). O que o especialista apresenta como uma verdade transcendental acessível apenas ao iniciado é, na verdade, uma opinião qualificada (não necessariamente em consonância com os meus ou os seus valores).
Minha amiga, uma pessoa de esquerda, identifica a fala dos economistas com a agenda de direita. Ela tem razão para isto, ela sempre os vê defendendo conclusões em que o trabalhador, aos seus olhos, as pessoas assalariadas saem prejudicadas. O modo com que a mídia apresenta suas opiniões (apresentando as conclusões deles como verdades inescapáveis) apenas as torna infantis e ainda mais suscetíveis de desconfiança. Desse modo ela escolhe se posicionar contra os economistas, mas não por entender sua fundamentação, mas por sentir que os economistas estão num espectro ideológico diferente (estão no time adversário) e que por isto devem ser derrotados.
Este é um primeiro ensaio. Nele gostaria de mostrar que a economia não é, ao contrário de como é apresentada, uma fonte de uma verdade transcendental e inescapável. Nem tampouco é um campo de batalha em que um time é vencedor e outro é perdedor. A economia é um instrumento (ou um conjunto de instrumentos), com virtudes e defeitos, para analisar cenários e ajudar a tomar decisões. Se virmos os economistas como profetas que tem acesso ao que é correto estaremos delegando nossas decisões a eles (e aos seus valores). Se, por outro lado, virmos a economia como um campo de batalha em que devemos nos posicionar em um time, estaremos descartando um instrumento importantíssimo para tomarmos decisões. Neste primeiro ensaio peço para que o nosso posicionamento não se dê a partir de alinhamento ou oposição cega, isto seria delegar nossas decisões para líderes e políticos. Do mesmo modo seguir as opiniões do especialista cegamente é delegar as decisões a ele e a seus valores. O que defendo é que você mesmo tente entender os argumentos, os prós e os contras, e tenha uma opinião própria (por mais que isto seja doloroso nos momentos em que diverge da maioria). O principal neste ensaio, entretanto, é mostrar o caráter falho da economia. Ao contrário do que pode parecer defenderei que isto (reconhecer suas limitações) é uma grande qualidade desta ciência.