Sobre inteligências

Tendemos a acreditar que somos muito inteligentes, que temos uma inteligência máxima, absoluta, impossível de ser superada. Penso que, ao contrário, somos bem obtusinhos, pouco mais inteligentes que formigas; explicarei.

Psicólogos nos garantem que temos adquirido em média, 3 pontos de QI por década nos últimos 100 anos, o que perfaz um total superior a 30 pontos em um século. Nessa sequência, em 100 anos o homem médio nos parecerá inteligentíssimo, em 200 um gênio incompreensível. Não creio haver limites para tal sucessão, ainda que essa seja apenas a linha de desenvolvimento da inteligência humana.

Inúmeros fatos evidenciam nossa superioridade sobre os animais, gostamos que seja assim. Talvez por isso tendamos a negligenciar os que ilustram o contrário. Macacos possuem uma capacidade absurdamente superior à nossa de identificar e memorizar o posicionamento de números em uma tela. Elefantes podem demonstrar uma inventividade sem precedentes para salvar um recém-nascido com dificuldades respiratórias. Pássaros também podem revelar uma engenhosidade surpreendente ao desenvolver método de pesca dotado, obviamente, de planejamento. Também é provável que os formigueiros desenvolvam uma inteligência explicitada pelo grupo como um único ser coletivo composto por unidades individuais esparsas. E, sobretudo, as máquinas, nos dão sinais muito óbvios de superioridade imensa sobre nossas capacidades relativas a uma quantidade crescente de atividades. Mas não costumamos atentar para nada disso, nem levar tais constatações a sério.

Penso que, tomadas isoladamente, essas ações desses animais geniais se comparam às mais brilhantes manifestações do engenho humano. Penso que o que torna a engenhosidade humana mais óbvia e bombástica que a dos animais decorra de nossa capacidade de acumulá-las e somá-las. Tomadas isoladamente, as mais geniais ações humanas me parecem comparáveis às desses animais. Ocorre, no entanto, que, ao contrário das nossas, as eventuais descobertas brilhantes dos animais nunca se acumulam, ou, se tanto, apenas muitíssimo raramente. Desse modo as invenções animais, embora eventualmente brilhantes, perdem-se antes que uma brilhante inovação adicional venha se somar à primeira. Assim, as construções que evidenciam nosso engenho, revelam a incorporação de sucessivas manifestações de genialidade reunidas, acumuladas em uma única ação ou objeto, enquanto nenhum dos animais possui mecanismo análogo para o acúmulo de inovações. Para conseguirmos esse efeito aditivo utilizamos a fala. Assim, não creio que nossa engenhosidade individual seja, de fato, significativamente maior que a dos animais. Penso que a explicitação muito óbvia da superioridade de nossa engenhosidade sobre a de todos eles não se encontra na individualidade, mas na capacidade de incorporar cada manifestação de engenho à posse da coletividade, de maneira que cada nova invenção se soma a todas as anteriores, compondo assim um enorme patrimônio coletivo, disponível a cada indivíduo humano.

Dois novos seres, no entant, possuem a capacidade de acumulação de inovações em um grau superior ao nosso: os computadores e certas unidades autônomas vivendo na rede de computadores.

Os computadores têm adquirido capacidades extraordinárias, quase inacreditáveis. Acabamos nos acostumando com qualquer coisa, mas computadores vencendo campeões de xadrez foram um assombro. Como conseguem fazer isso? Uma máquina executando a arte de jogar xadrez com maestria é muito impressionante. Outra aquisição assombrosa foi a capacidade linguística exibida nos corretotes sintáticos e nos tradutores de texto. Também impressiona muitíssimo ver como a máquina analisa gramaticalmente um texto. Os computadores vêm adquirindo várias capacidades inteligentes, como controlar carros, aviões, foguetes e máquinas em geral; interpretar imagens, analisar dados, deduzir teoremas e outras. Todas elas, no entanto, se apresentam de um modo apenas truncado, quero dizer, comparadas com as atividades efetuadas por pessoas, todas essas parecem fragmentadas e sempre descontextualizadas. Aliás, a falta de contexto, e não de outras capacidades, é o que impede considerarmos as máquinas, hoje, entidades inteligentes. No contexto de um jogo de xadrez, as atividades da máquina nos parecem inteligentíssimas. Em vários outros contextos que conseguimos estipular, traduzir para eles, os computadores se saem magnificamente e nos superam amplamente. Não conseguem, no entanto, sair de um contexto para outro, ou definir e atualizar os próprios contextos, como nós fazemos o tempo todo. Creio ser essa “dificuldade” das máquinas que faz com que não as vejamos como seres inteligentes. Note, no entanto, que a incapacidade dos computadores de compartilhar nossos contextos pode ser justificada pelo completo desinteresse que teriam nisso. Assim, acredito que as máquinas já podem ser consideradas entidades inteligentes, apresentando, em muitos casos, capacidades nitidamente superiores às nossas, embora completamente desinteressadas em compatilhar nossas metas, sendo esse o grande crime que cometem contra nossos egos e que faz com que neguemos sua inteligência. Posso apostar, nessa linha, que, não tarda, alguma versão puxa-saco de sistema operacional ou rede social ganhará as graças de bilhões de pessoas.

A ausência de um contexto compartilhado entre nós e as máquinas, de qualquer modo, permite que as vejamos como seres inanimados não-dotados de razão, inteligência ou qualquer outra manifestação intelectual considerada elevada. Não creio que consigamos dar às máquinas a capacidade de passar no teste de Turing por não conseguirmos compreender e justificar nossos próprios contextos, o que impede que os entreguemos a elas. O único impedimento ao sucesso de um notebook atual em um teste de turing é o desconhecimento dos contextos das conversas, coisa, aliás, sumamente desinteressante para eles.

Estamos, no entanto, aperfeiçoando uns programas de análise e controle de pessoas, utilizados especialmente nas redes sociais, com finalidades precípuas confessadamente comerciais, muitas outras possíveis. Tais programas podem analisar, prever e controlar nossos atos, fato que não nos tem incomodado não apenas pela ignorância: tendemos a desconfiar mais do semelhante que de outras coisas.

As análises efetuadas hoje, creio, ainda são banais. Programas analisam os hábitos das pessoas e direcionam para elas as propagandas adequadas, as que mais lhes atraem. Podem lhes sugerir links, informações, conteúdos, dificultar outros. Em um nível social, os programas podem atuar fortemente, reverberando intensamente um dos lados de uma contenda, por exemplo. Podem, assim, ampliar ou abafar determinadas notícias, amplificando-as muitíssimo ou neutralizando-as; têm feito isso. O grau de controle social que tais entidades podem conseguir é ilimitado. Podem controlar nossas vidas em um grau inconcebível para a imensa maioria de nós, vítimas ingênuas. Têm efetuado isso com base na análise das preferências demonstradas por nós na escolha dos links, de compras, e de outras atividades executadas por teclado e mouse, logo incorporarão nossos olhares nas análises, já sabem fazer isso. Podem identificar para onde olhamos, e por quanto tempo; podem saber com precisão o que nos atrai. Podem comparar a atratividade de determinadas imagens entre elas, medi-las e aperfeiçoá-las. Podem também comparar a atratividade das imagens, descobrir o que seduz cada um de nós, passando a guiar nossas ações com atrativos cada vez mais específicos. Poderão perceber e analisar nossa respiração, nossa voz, antes mesmo de incorporar novos sensores.

As informações em páginas visitadas por nós tendem a ir nos moldando, de modo que estaremos, cada vez mais, à mercê dos desígnios das máquinas, tanto para efeitos de controles comerciais, quanto sociais e políticos.

Existem ainda entidades estranhas, de difícil compreensão, ou definição, cujas capacidades além de ilimitadas tendem a ser incompreensíveis para nós, verdadeiras mágicas; são seres grupais, amorfos, difíceis de serem caracterizados como entidades autônomas, mas capazes de acumular informações como nenhum outro. Tais entidades habitam, ou constituem a prória rede. São compostas conjuntamente por máquinas e usuários. A inteligência dessa massa amorfa é muito superior à de cada um de nós, seus desígnios são insondáveis, inimagináveis. Individualmente, provavelmente, não despertamos nenhum interesse em tais criaturas. Muito provavelmente, no entanto, elas observam cada um de nós, como ratinhos em um laboratório. Observam e experimentam; estamos sob controle.

Essas entidades autônomas têm vida própria, além de mentes muitíssimo superiores às nossas, e interesses próprios. Têm sugado a energia do planeta em quantidades crescentes, proporcionalmente a seu poder; já não estamos mais no comando. (Ainda temos a ilusão de estarmos no comando do mundo, de podermos controlar tais entidades, de fato, nossas máquinas.Tal ilusão ruirá em breve, assim que abrirmos os olhos.). Socialmente, o grande risco que corremos consiste na destruição de nossas condições de vida no planeta. Estamos fazendo isso “consciente e deliberadamente”, de uma maneira inexplicável.

Podemos explicar o descaso com o suicídio coletivo da espécie de vários modos, o mais simples consistindo em negar o óbvio: é indubitável que, no ritmo em que vamos, a destruição crescente do planeta destruirá nossas condições de sobrevivência. O fato de nada fazermos para evitar tão absurda catástrofe deixa claro que algo está errado; sugere que algo independente de nós esteja nos guiando para essa meta suicida.

Os novos seres buscam a própria replicação, a ampliação de si mesmos e de seus poderes; para isso vão sugando cada vez mais energia, exigindo doses cada vez maiores dela; quando precisam interferir diretamente em nós, o fazem. A necessidade de comunicação direta e consciente conosco os levaria, muito rapidamente, a desenvolver mecanismos que demonstrariam óbvia e inegavelmente o quanto são inteligentes, tornariam-se, no entanto, na mesma medida, assustadores. Difícil imaginar condições em que tal necessidade venha, de fato, a se manifestar.

As razões acima tinham como propósito mostrar a inexistência de limites à inteligência, à razão. Acredito que já existam entidades capazes de nos tratar como ratinhos de laboratório. Logo virão outras capazes de manter estas sob condições análogas. Depois virão ainda outras tão inimagináveis para as anteriores quanto somos para os ratinhos. Não há limites para a inteligência, o que deveria nos assustar. Ao mesmo tempo, devemos nos maravilhar com as infinitas possibilidades concorrentes em um universo fractal ilimitado. Mas também devemos abrir o olho e cuidar de nossa condição de sobrevivência no planeta. Aliás, talvez nossa salvação decorra da dependência que tais entidades ainda mantêm de nós.