Ciência e ficção

Crêem, quase todos, que ciência e ficção sejam coisas muitos distintas. Se instados a apontar diferenças entre uma e outra, revelarão a crença em que a ficção constitui uma narrativa inventada, uma mera construção, fruto da imaginação, enquanto a ciência descreve o mundo, constituindo, portanto, um conjunto de relatos fiéis à natureza, de descrições “coladas” à realidade, moldadas por ela.

As mesmas pessoas talvez acreditem que, por exemplo, os números, teriam sido observados ao redor e, em seguida, transplantados para a matemática. De acordo com essa concepção, a visão de “um objeto” teria gerado o número um, a de “dois objetos” o número dois, e assim por diante. Não sei como tratariam o número 879.676.301 e outros ainda mais improváveis, mas também não acredito que muitas pessoas se preocupem com tais sutilezas.

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Euclides, o geômetra, propôs sua geometria dezenas de séculos atrás, lá pelos idos de 300 a.c, nos dizem. A crença em que “a geometria” descrevia o espaço perdurou por muitos séculos, até que, se não me engano, Lobatchevsky propôs uma geometria alternativa. Mais do que conjecturar sobre as feições de nosso mundo, os que propuseram novas geometrias propunham novos modelos de mundos, talvez fictícios. Não penso que os universos criados pelos geômetras sejam fundamentalmente diferente dos criados pelos chamados “ficcionistas”, apesar de apresentados, normalmente, de uma maneira bastante enxuta, de um modo apenas esquemático, como um esqueleto de mundo, seu cerne. Ao contrário, os ficcionistas costumam se ater às superficialidades, criando apenas quadros, apenas esboços de uma parcela muito superficial do universo.

No mesmo embalo dos geômetras, livres durante o século XX para criar, ao bel prazer, seus espaços, sob a mesma aura que em seguida viria libertar pintores e escultores em um movimento modernista, gerado, talvez, pela revolução matemática anterior, os lógicos também se viram livres para estabelecer conjuntos de axiomas mais, ou menos absurdos, conforme seus próprios gostos. Os que conhecem alguma lógica não-clássica percebem a naturalidade com que a criação de mundos pode ser efetuada, havendo hoje poucos freios para tal empreendimento.

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Muito mais simples e elegante que definir cada um dos infinitos números, e mais factível também, dizem-nos os algebristas, parece ser a construção de um pequeno conjunto de objetos matemáticos que funcionem como um vaso de plantas semeado.

Se definimos a unidade, digo, o número 1, além da operação de soma, “+” e da igualdade “=”, ou, mais fácilmente, se assumimos, mesmo sem definição, que tais grandezas primitivas podem ser fácil e integralmente compreendidas, podemos então utilizá-las, a exemplo do que poderíamos fazer com um vaso semeado, para gerar uma infinidade de números.

Desse modo, o 2 adviria da soma de 1+1, o 3 da soma seguinte, de 2+1, e assim, sucessivamente, geraríamos todos os inteiros positivos.

A operação de subtração, “–” seria necessária para a construção do restante dos inteiros, os negativos e o zero.

A operação de divisão geraria, de modo análogo, os números racionais.

Outros conjuntos podem vir se juntar a esses através de outros mecanismos de geração.

Tais construções ilustram claramente a natureza artificial da matemática, quero dizer, seu caráter construtivo. Vista sob esse enfoque, fica claro que a matemática trata de coisas inventadas, engendradas nas mentes dos matemáticos, e não descobertas em alguma sacola mágica. O resultado da criação orgânica assemelha-se a uma árvore, originada por uma semente.

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As considerações acima podem suscitar a seguinte objeção: se a matemática é uma invenção, por que não podemos, a exemplo dos ficcionistas, sair inventando qualquer história, dizer a nosso bel-prazer, por exemplo: 2+2 = 17, ou: 85 x 46 = 0 ?

Minha resposta, talvez surpreendente, é sim, podem ser criados sistemas que incluam tais “disparates”, no entanto a imensa maioria desses sistemas não tem nenhum atrativo, do mesmo modo que não atrairia interesse uma história de detetive em que o assassino esfaqueasse suas vítimas depois de morto, ou que outras rupturas lógicas ocorressem simplesmente, de maneira injustificada. Quero dizer, penso que em ambos os casos, as restrições para o impedimento de tais criações sejam fundamentalmente de ordem estética. Caso o autor vislumbre alguma arte na ruptura proposta, caso perceba nela algum atrativo, poderá tecer seu próprio mundo, guiado por suas próprias regras e intuições. O resultado será ficção em um caso, matemática em outro. Em ambos os casos a qualidade da obra dependerá da destreza do autor e do interesse que a criação possa ter.

Sabe-se, por outro lado, que as construções matemáticas disparatadas, ao contrário do que talvez fosse esperado, não costumam acarretar estruturas rebuscadas, mas tendem fortemente a trivializar o sistema, gerando estruturas super-simplificadas que acabam se assemelhando ao resultado do colapso de uma estrutura multi-dimensional em um único ponto. Assim, a tentativa de elaboração matemática tresloucada, longe de gerar artefatos complexos e elaborados, costuma gerar apenas um emaranhado colapsado em um único ponto comum e indiscernível, assim como um novelo de linhas emboladas agregado em um só ponto.

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Penso assim que toda a matemática é ficção, embora não seja mera ficção, quero dizer, é uma ficção, ou construção, sujeita a certas restrições.

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Vale lembrar que, a exemplo do criador, os matemáticos costumam utilizar a expressão “seja” para enunciar suas criações.

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O que afirmei acima vale diretamente para as ciências formais. Podemos analisar em que medida, se alguma, valem também para as ciências empíricas, como a física.

A mecânica se utiliza das grandezas primitivas: espaço, tempo e massa.

Tanto o espaço, quanto o tempo, são grandezas utilizadas pelo cidadão comum em sua vida diária, embora talvez de maneira ligeiramente diferenciada. A massa foi uma grandeza associada pelos físicos a todos os corpos.

A primeira lei de Newton, o postulado mais fundamental da mecânica, assevera que na ausência de forças externas, um corpo permanece indefinidamente em repouso, ou em movimento retilíneo e uniforme.

Assim, esse princípio assegura que um corpo que esteja em movimento permanecerá se movimentando indefinidamente, caso não seja perturbado por algo externo. Esse curioso princípio ilustra bem o caráter ficcional da física. Nunca foi visto um corpo que se movimentasse assim, indefinidamente em linha reta, de modo que o referido princípio não decorre de observações. Nossas observações cotidianas nos mostram que todos os corpos em movimento acabam parando, e o fazem, normalmente, bem rapidamente. Quanto aos corpos celestes que se movem indefinidamente, sem nunca parar, o fazem em círculos, e não se observam astros cruzando os céus linearmente, mas, normalmente, girando em círculos aproximados.

Também nunca vemos os objetos puntiformes tratados na mecânica, corpos sem extensão.

Estes poucos comentários são suficientes para mostrar que a mecânica é uma criação constituída por objetos imaginários, frequentemente pontos sem extensão movendo-se contínua e indefinidamente em linha reta pelo espaço.

Quando visualizamos mentalmente as abstrações criadas pelos físicos idealizamos algo similar aos jogos de vídeo game. De fato, a exigência fundamental tanto de umas quanto de outros é a coerência interna. Sem tal coerência, as abstrações físicas, assim como os jogos, travariam, ou colapsariam em uma imagem amorfa.

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A coerência é exigida em todas as outras teorias, ou áreas, exceto a mecânica quântica.

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A mecânica relativística descreve o mundo de uma maneira diferente da mecânica clássica (newtoniana). Em sua criação, Einstein utilizou as mesmas denominações usuais com as quais os físicos estavam acostumados, no entanto, estava criando novas grandezas.

Assim, Einstein usou as mesmas palavras utilizadas anteriormente por Newton: espaço, tempo, e massa, além de outras, mas deu a todas elas um novo significado. Quero dizer, quando inventou a teoria relativística, Einstein criou também todos os termos técnicos que a compõe. Os que queiram atenuar essa constatação podem considerar que Einstein remodelou todos os conceitos mecânicos.

As diferenças entre os conceitos clássicos e os relativísticos são bem marcadas.

O espaço clássico é constante e igual para todos, ao contrário do relativístico. Por constante quero dizer que uma dada medida do espaço permanece sempre a mesma. Assim, se medimos o comprimento clássico de um objeto qualquer, encontraremos sempre a mesma medida (a menos, é claro, que o comprimento intrínseco do objeto varie). A medida do comprimento relativístico de um objeto, ou de uma distância, dependerá do referencial de quem mede. Espaços acelerados comprimem-se, de uma maneira completamente impensável em um mundo clássico.

O tempo clássico e o tempo relativístico, assim como a massa clássica e a massa relativística, diferem do mesmo modo que os espaços tratados acima. Dessa maneira, todas as grandezas relativísticas, definidas a partir dessas grandezas primitivas, diferem das grandezas clássicas análogas.

Uma visão frequentemente apresentada nos livros de relatividade tem o intuito equivocado de minimizar tais diferenças. De acordo com esse ponto de vista, sugerido quando da apresentação da estranha teoria, com o propósito de torná-la mais aceitável, ambas as teorias são parecidíssimas, diferindo apenas em circunstâncias incomuns, e quanto a valores aproximados. Do meu ponto de vista essa visão é enganosa. Os entusiastas da teoria relivística deveriam ressaltar o seu caráter fortemente inovador. Trata-se de uma teoria completamente diferente da clássica, montada sobre conceitos radicalmente diversos, embora apresentados com os mesmos nomes.

Há certa analogia entre ambas as visões de mundo, a clássica e a relativística, e as diferentes geometrias. São construções diferenciadas tratando do mesmo escopo. Em termos artísticos, corresponderiam a algo como duas pinturas de uma mesma cena, a santa ceia, por exemplo, pintadas por diferentes autores.

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Em suma, o mundo clássico e o mundo relativístico constituem idealizações completamente distintas, tanto quanto um vídeo game costuma diferir de outro.

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A mecânica quântica difere em escopo das outras duas, e, nesse sentido, se distancia delas, assim como o eletro-magnetismo difere de todas elas. Desse modo, penso que a mecânica clássica e a relativística situam-se em uma mesma categoria, cada uma das demais em outra própria.

A mecânica quântica traz com ela uma espécie de ontologia, e uma série de entes, como átomos e partículas, inexistentes nas mecânicas propriamente ditas, que tratam apenas dos movimentos relativos dos corpos.

Além disso, a mecânica quântica permite também uma série de disparates lógicos designados usualmente pela expressão “abstruso”. Ao contrário das normas usuais de racionalidade que interrompem o jogo quando alguma contradição é encontrada, ou o trivializam, os físicos quânticos permitem, e até se divertem, quando encontram relações, abstrusas, incompreensíveis.

De acordo com concepção amplamente difundida e aceita, o mundo quântico é intrinsecamente abstruso, incompreensível para nossas mentes clássicas. Embora, a mim, tal visão seja completamente disparatada.

Devo confessar que os mundos ininteligíveis não me interessam pelo simples fato de eu não conseguir entendê-los.

Essas considerações, no entanto, ilustram bem o caráter fictício da teoria quântica, uma invenção tão alegórica, tão fantasiosa que incompreensível para nossas mentes.

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Já defendi alhures que a química não corresponde a uma ciência, mas a um conhecimento técnico, ou uma tecnologia (Ensaios p.13). Em termos lógicos, as teorias físicas se baseiam em sentenças universais que, por conseguinte, podem ser refutadas, mas nunca provadas. Quanto às tecnologias se baseiam em provas, ou melhor, em produtos, e não são verdadeiramente refutáveis. Têm assim um caráter mais concreto, menos especulativo, e mais imediato.

Ao contrário das teorias científicas que constituem mundos ideais, as tecnologias, como a química, produzem, fundamentalmente, produtos palpáveis, coisas de nosso mundo. Assim, enquanto os físicos idealizam mundos imaginários, fictícios, os químicos geram novas substâncias, pedaços de nosso mundo. O análogo de tal procedimento no escopo da física costuma ser chamado engenharia, e é também disciplina bastante profícua.

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Embora a biologia venha ganhando, ultimamente, contornos tecnológicos, especialmente com a biologia molecular, tradicionalmente esse campo do conhecimento se pautou pelas descrições. Para a maioria dos biólogos, seu trabalho consiste em observar e descrever o mundo. Se instados a uma comparação, dirão que seu trabalho se assemelha às pinturas representativas. Assim como os pintores tentam trazer para suas telas as imagens que vêem do mundo, os biólogos tentam descrever aquilo que observam atentamente.

O mesmo vale para astrônomos e geólogos, tradicionais observadores.

Embora muito menos evidente, devo ressaltar a presença mais que residual de elementos fictícios em tudo isso, como em uma ficção realista.

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Tendo delineado o diagnóstico acima, cabe esboçar a maneira de criação de umas dessas ficções.

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A criação de ficções matemáticas pode ser muito simples e instrutiva. Podemos esboçar um espaço em uma folha de papel ou em uma tela de computador. Isso pode ser feito, entre outras inúmeras maneiras, traçando dois eixos, ou quadriculando o campo visual. Podemos simbolizar que o espaço se estende indefinidamente para os lados, teremos assim espaços assemelhados ao nosso, quanto a esse aspecto.

Uma nova forma de espaço será criada se, simplesmente, “enrolamos” o espaço criado. Isso é obtido fazendo o final de um eixo coincidir com o do outro, como em um cilindro. Na tela de computador, esse procedimento fará com que um objeto que esteja saindo da tela por um lado, esteja entrando nela pelo lado oposto.

Torcendo-se apenas um dos eixos, construímos um espaço cilíndrico. Um mundo aproximadamente esférico será obtido torcendo-se eixos perpendiculares.

Tais espaços têm sentido e aplicação matemática, e podem ser vistos com frequência em jogos de computador, ilustrando a aplicabilidade da idealização.

Espaços discretos podem ser gerados quadriculando seus pontos. Muitos espaços diferentes podem ser obtidos variando-se ligeiramente a maneira com que são gerados.

Referi-me às criações geométricas por serem facilmente visualizáveis. Analogamente, as estruturas algébricas podem sofrer alterações, passando a descrever novos mundos. Via de regra, qualquer criação matemática pode sofrer distorções, gerando assim um mundo diferente, analogamente ao que aconteceria com o texto de um romance que viesse a sofrer alteração, ou a uma pintura reproduzida com adulterações.

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A dificuldade, hoje, de se fazer uma nova criação matemática, um novo mundo matemático, não se encontra na surpresa de tal conceito, mas em encontrar um universo ainda inexplorado. O leitor criativo que se empenhar em descobrir novos mundos matemáticos encontrará muitos deles, mas, a menos que se entregue com enorme empenho e criatividade, dificilmente conseguirá criar um mundo ainda inexplorado.

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Universos físicos ainda são pouco comuns. Creio que os físicos ainda não encontraram aplicações suficientes para brincar com universos físicos distintos. Podem ser vistas simulações aplicadas a universos cilíndricos em telas de computador, mas esses tendem a corresponder ao mundo físico suposto real, transposto para um espaço matemático distorcido adequado à tela de computador.

Aplicações de especial relevância tecnológica dos computadores têm sido as simulações. Constrói-se um mundo no interior da máquina análogo ao real. Uma vez construído um universo similar ao mundo físico, qualquer alteração em um parâmetro estará gerando um novo universo. Tentativas nesse sentido, no entanto, creio, acabam gerando normalmente universos triviais. De algum modo, todos os parâmetros de um mundo devem se encaixar de modo a torná-lo um mundo interessante. Isso sugere uma analogia com um mecanismo mecânico, como um conjunto de engrenagens que se encaixam umas nas outras. Alterações na composição de tal engenho podem simplesmente travá-lo, impedindo assim o seu funcionamento. Do mesmo modo, modificações nos parâmetros físicos de um mundo podem acarretar o seu travamento. O resultado de um mundo travado é a trivialização do universo proposto.

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Alterações triviais do mundo físico, de pouco ou nenhum interesse, podem ser obtidas facilmente acrescentando-se novos objetos a ele. Mais interessantes parecem ser as alterações que se “propaguem” por todo o universo.

Em um universo unidimensional, como um fio, a energia se propaga uniformemente, sem nenhuma dissipação.

Em um mundo bidimensional, como uma superfície, a energia se dissipa linearmente ao se propagar, caindo proporcionalmente à distância.

Em universo tridimensional, como o nosso, a energia cai com o quadrado da distância.

Podemos construir um mundo tetradimensional em que a energia se dissipe com o cubo da distância. Seria interessante observar os eventos nesse mundo, sou capaz de apostar que teria também aplicações práticas.

As exigências acima dependem do princípio de conservação de energia. Se queremos um mundo no qual a energia se conserva, devemos seguir as instruções acima impondo que a energia se dissipe da maneira descrita acima.

Mundos em que a energia se esvai tendem a morrer, são mundos efêmeros, portanto.

Mundos em que a energia é criada constantemente tendem a ser instáveis e explosivos, por isso, pouco importantes. (Possibilidade interessante viria do aumento concomitante do espaço, mantendo constante a densidade de energia).

Mundos com energia flutuante tendem a ser mais estáveis que os anteriores, embora não possuam, normalmente, a elegância daqueles nos quais a energia se conserva.

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Mundos biológicos podem ser criados a partir do conceito de replicador. Em poucas palavras, um replicador é uma coisa capaz de gerar outra análoga a si mesma. Exige-se que a coisa gerada tenha essa mesma capacidade, de gerar algo análogo a si mesmo.

Semeando-se um mundo com um replicador, podemos ter, depois de algum tempo, uma infinidade de criaturas habitando esse mundo.

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Replicadores tendem a adicionar complexidade ao mundo. Mesmo replicadores extremamente simples, como zeros e uns, podem se organizar em sistemas absurdamente complexos. O tempo e a reprodução diferenciada das formas replicativas tendem a se encarregar do aumento na complexidade do mundo.

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A sociologia, a economia, a política, assim como todas as formas de manifestação humana, podem ser vistas como expressões biológicas especiais, e simuladas por sistemas replicativos.

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O caráter fictício dos mundos de replicadores artificiais é bastante óbvio, o que não os torna menos relevantes, ou menos elucidativos.

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Boa parte dos cientistas profissionais cumprem a função exclusiva de buscar dados. Para esses, minha proposta de identificação de ciência e ficção constitui não apenas um disparate, mas uma falta de ética absurdamente descarada. Para tais pessoas, a prática científica consiste em buscar determinados dados, com o máximo de precisão. A prática eventual de invenção dos dados consistiria em fraude, devendo ser denunciada como prática criminosa. Aos olhos de tais profissionais, minha proposta parecerá carnavalesca, destituída de qualquer seriedade.

Devo acentuar que não proponho a invenção dos dados, que não propugno a fraude observacional, nem a mentira deslavada.

O que proponho é a criação livre de mundos, de novos princípios enriquecedores do conhecimento.

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Mas haveria distinções de conteúdo entre ciência e ficção, ou a diferença entre ambas se baseia fundamentalmente na forma, da mesma maneira que uma tela de computador se distingue de um livro?

Creio que nem toda ficção seja ciência, atividade sujeita a determinadas restrições. A livre criação pode gerar ficção, mas não produz ciência. Conjecturas científicas estão sujeitas a certas normas.

Também a arte já se viu sujeita a restrições. Um soneto, por exemplo, tem sua forma rigidamente definida.

Um soneto consiste em quatorze versos decassílabos com tônica na sexta sílaba , divididos em duas estrofes de quatro versos e duas de três com rimas ABBA ABBA CDE CDE.

A composição de um soneto se assemelha assim a um jogo, sujeito a regras bastante definidas.

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Quanto à ciência, suas restrições não se exprimem na forma de sua apresentação, ainda que a maioria dos autores científicos creia que, uma longa lista de referências, por exemplo, seja parte constituinte necessária de uma contribuição científica, um erro, creio.

Penso que a regra básica que define a ciência seja a coerência interna.

Uma nova geometria, assim como uma nova mecânica, deve se basear em princípios, e advir, ou se desdobrar deles, como uma árvore se desdobra, ou se desenvolve de uma semente.

A analogia entre a boa ciência e a árvore deveria permanecer na mente dos cientistas continuamente. Boa ciência está contida em bons princípios, assim como a árvore na semente. Tentativas de remendar teorias ilustram apenas a precariedade e imperfeição das ideias ali expostas.

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Proposta de metodologia científica: Crie mundos! Invente! Crie realidades diversas, ricas, absurdas!

Mas mantenha a coerência. Defina previamente as regras de criação, e as mantenha. Defina regras que se ponham, umas às outras, a funcionar continuamente.

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Como criar mundos:

Os geômetras costumam iniciar a criação de seus mundos estabelecendo eixos definidores do espaço, assim:

Um eixo*:

Dois eixos ortogonais*:

3 eixos ortogonais*:

* (o texto original possui as figuras ilustrativas referentes a cada um desses)

n eixos ortogonais.

Uma vez criado o espaço, pode-se povoar o mundo com qualquer entidade que se consiga definir. O limite para a criação é o verbo. Podemos dizer: faça-se o ponto, e o ponto se fará. Os geômetras costumam usar a expressão: “seja”. Assim: seja um ponto nas coordenadas (0,0,0); e o ponto terá sido criado.

Mundos criados por geômetras são de fácil visualização. Outros matemáticos podem optar por definições algébricas para fazer o mesmo. As vantagens dos estilos matemáticos de criação de mundos incluem a precisão e a facilidade de definição da recursividade das criaturas habitantes dos mundos. Chamarei tais criações “mundos formais”.

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Ficcionistas costumam usar textos descritivos para a confecção de mundos. Podem criar, por exemplo, uma história relacionando pessoas comuns. A criação de um ser complexo, como uma pessoa, se resume à escrita de seu nome. Escrevendo-se o nome de uma pessoa em um texto ela passa a ter existência naquele universo do mesmo modo que as entidades criadas pelos geômetras nos seus. A grande vantagem desse modo de criação é a facilidade na definição de criaturas complexas. De fato, esse modelo pressupõe a compreensão prévia, eterna, das criaturas que povoam o universo. Ao contrário das criações matemáticas, tais criaturas são importadas de outros mundos, não sendo, propriamente, construídas no mundo em que habitam. A importação das criaturas pressupõe um forte compartilhamento de contexto. Chamarei essas criações “mundos textuais”.

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Enquanto a física fundamental, teórica, transcorre em universos formais, a física aplicada, se passa em mundos híbridos, ao mesmo tempo formais e textuais. Os físicos conseguiram grandes avanços misturando ambas as formas de criação, incorporando a espaços formais figuras textuais importadas de outros mundos. Cosmólogos, por exemplo, tratam de estrelas, galáxias e outros macro-objetos com que povoam seus mundos definidos previamente de maneira formal.

A criação pura e simples de um mundo se assemelha à loucura, ao delírio, ao sonho, ou à pura ficção. A incorporação de uma ideia a qualquer dessas categorias dá-se a posteriori, após a criação. Karl Popper define 4 características necessárias para a incorporação de uma ideia à categoria de teoria científica vigente (ele usa outros termos). A teoria deve ser consistente (livre de contradições que colapsariam e trivializariam o sistema), deve ser informativa ou testável (muitas formulações linguísticas, por vezes pomposas, descrevem mundos vazios), deve ser melhor que outras teorias concorrentes, e deve passar nos testes empíricos.

Se uma dada ficção revela essas 4 características, Popper lhe atribui o status de teoria científica (vigente).

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Considero conveniente manter, fundamentalmente, as bases metodológiccas popperianas eliminando a etapa 3, de comparação entre as teorias. O resultado dessa eliminação é uma metodologia pluralista.

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Também acredito em uma justificação das teorias conseguida com a obtenção de tecnologias oriundas da teoria. A existência de tecnologias não prova a teoria da qual provêm, mas justifica o seu uso, torna racional sua utilização instrumental, não a demonstra.

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Se as regras de construção do mundo se contradizem, o mundo trava, como um vídeo-game emperrado, ou o mundo colapsa em um único ponto.

A maioria dos mundos idealizados resultará em colapso ou em mundos triviais, como um espaço tridimensional habitado por uma única boneca, ou por um conjunto finito de elementos.

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Objetos que se reproduzem, replicadores, costumam habitar mundos interessantes e ricos.

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Ficções textuais, como as literárias, costumam ser mais aprazíveis que as formais, como as matemáticas.

A magia resultante das teorias científicas, no entanto, como as previsões decorrentes das teorias, confere um enorme interesse a tais construções. Note que as teorias físicas contemporâneas possibilitam a previsão de fenômenos celestes muito distantes, como o movimento de planetas, cometas e outros, enquanto permitem também a idealização, construção, previsão e funcionamento de artefatos tecnológicos em geral, como os computadores.

De fato, todos os poderes mágicos fictícios imaginados no passado encontram-se hoje sob o domínio das ciências. Assim, temos hoje telepatia (via telefone), bolas de cristal (por tv), poções mágicas, armas letais à distância, materializadores, tapetes voadores e tudo o que foi um dia pensado como magia. Todas essas idealizações mágicas transformaram-se em tecnologias oriundas de conhecimentos científicos prévios. Todas as ficções mágicas se materializaram.

Tais magias são lucativas o suficiente para manter um interesse enorme nas ciências.

A magia científica mais atraente para os cientistas, no entanto, consiste na premonição, o fundamento de toda a magia científica.

Essa ficção chamada ciência tem como característica distintiva a capacidade de proporcionar previsões. São elas, as previsões, que garantem o funcionamento das tecnologias. São as confirmações das previsões que dão a confiança à teoria e sugerem termos alcançado algum conhecimento.

Seguindo Popper mas eliminando a terceira exigência proposta por ele, especialmente nos casos em que duas teorias não compartilham o mesmo escopo, estabelecemos uma metodologia pluralista de triagem das ficções para a escolha de teorias científicas.

Recomendo ao cientista aplicar todo o capricho usual entre os ficcionistas na construção das teorias, são seus mundos.

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É provável a crença em um personagem único e contínuo, um “eu”, perpassando a nossa existência seja também uma ficção, assim como o próprio mundo em que vivemos.