Sobre a estagnação da ciência contemporânea
O mito de que a indução teria um papel significativo no pensamento científico já existia no séc. XVI, advogado por Francis Bacon. Também já havia sido criticado por Hume no mesmo período em que a física de Newton se desenvolvia, ao explicitar seu ceticismo quanto à confiança racional em crenças como a de que o sol nascerá amanhã.
Creio terem sido os positivistas os que endossaram a sugestão de Bacon do papel significativo da indução na prática científica, desprezando a crítica de Hume, que duvidava da possibilidade de desenvolvimento de um conhecimento racional e seguro sobre o mundo.
Cientistas, ou filósofos profissionais, quero dizer, homens que dedicaram a maior parte dos esforços de suas vidas ao desenvolvimento de novas ideias, sempre existiram, mas seu número costumava ser limitado por restrições econômicas e sociais. Foi, de fato, no século XX que um contingente realmente vasto de pessoas pode dedicar a vida à elaboração de novas ideias. Além do enorme crescimento populacional do período, o aumento das riquezas proporcionou, no mundo inteiro, uma enorme ampliação do número de pessoas dedicadas precipuamente à elaboração de ideias. Deveríamos ter tido, em consequência, um florescimento científico proporcional a tal crescimento.
Temos vivido, no entanto, tempos de espantosa falta de criatividade científica. Consideremos os últimos 15 anos, os primeiros do novo milênio. Poderíamos citar grandes avanços científicos ou filósóficos nesse período? Vejo muitos avanços tecnológicos especialmente em computação e nanotecnologia, nossa capacidade técnica tem se desenvolvido. Mas, conseguiríamos apontar novas e grandes ideias recém surgidas? Não consigo encontrar nenhuma nova grande ideia revolucionária surgida recentemente.
Talvez, no entanto, a pergunta se refira a período excessivamente próximo, de maneira que as grandes ideias surgidas tão recentemente ainda não tenham sido compreendidas, ou divulgadas a contento. Em vista dessa possibilidade devemos estender o período de busca até abarcar, por exemplo, toda a segunda metade do século XX. Façamos isso, e então perguntemos; que grandes ideias revolucionaram nossa maneira de ver o mundo nesses últimos 65 anos? Que teorias inovadoras surgiram nesse período? Relembremos que os 50 anos anteriores embalaram o surgimento e a consolidação das mais importantes teorias físicas contemporâneas, a relatividade e a mecânica quântica. Os prévios haviam consolidado a teoria eletromagnética, a ideia de átomo e toda a química contemporânea, entre outros. Períodos de 5O anos vinham sendo longos e profícuos, alterando drasticamente as concepções de mundo em todas as áreas, apesar do esforço de relativamente poucas pessoas.
Creio estarmos vivendo um marasmo criativo apesar do imenso número de cientistas e filósofos em atividade. Se isso é fato, o que tem impedido o surgimento de novas ideias revolucionárias? Listo entre as grandes inovações do período a ideia de muitos mundos, as investidas na inteligência artificial, as ideias linguísticas de Chomsky, e, me perdoem a ignorância, ou o pouco entusiasmo com os desenvolvimentos da física e da química que podem ser descritos como “mais do mesmo”; outras áreas se desenvolveram ainda menos. Haverá algum grande filósofo da época a ser lembrado ao lado dos maiores nomes da história? Atentem ao fato de haver um número significativamente maior de profissionais na área. São centenas, ou talvez milhares de profissionais existentes hoje para cada um de outras épocas. (Talvez a psicologia tenha se desenvolvido mais que outras áreas, recentemente, mas, se for o caso, não a ponto de aglutinar a maioria dos estudiosos da áres em uma mesma corrente).
O que terá ocorrido? Qual a razão de tão absurda improdutividade intelectual? A resposta mais usual me parece fragilíssima: todas as coisas fundamentais já teriam sido descobertas, restando apenas detalhes, desenvolvimentos menores; nenhuma teoria importante restaria ainda para ser descoberta. Creio que esse modo de ver, bastante comum, se baseia no equívoco de se esperar “descobertas”. Teorias são invenções, construções da mente. Sempre haverá algo a ser inventado, bastando para isso, fundamentalmente, criatividade. Não se descobrem músicas, pinturas, ou romances, inventam-se. O mesmo ocorre com teorias. Com suficiente criatividade serão inventados até novos campos científicos, novas áreas de conhecimento, assim como novas formas de manifestação artística; o limite para tais criações é nossa inventividade. Teorias são frutos de nossa mente, brotam de nós, não do mundo. Creio que tal ponto de vista tenha mais defensores nas áreas mais recentemente desenvolvidas. Filósofos e matemáticos devem ter pouco entusiasmo por tal hipótese.
Teremos então ficado obtusos, e por isso não criamos nada novo? Os psicólogos nos dizem que não. Dizem que nossos resultados em testes de QI têm crescido quase tanto quanto nosso peso, que estamos muito mais inteligentes que um século atrás. O que, então, pode ter impedido o desenvolvimento de ideias revolucionárias em todo esse longo tempo?
Creio haver uma certa incompatibilidade entre ciência e capitalismo, por uma razão simples: a ciência não dá lucros imediatos, mas distribui suas dádivas. O séc. XX foi a era da tecnologia, das patentes lucrativas. Não se patenteia ciência, patenteia-se tecnologia. Por essa razão a ciência tem ficado em segundo plano (confira que os resultados divulgados como “grandes avanços científicos atuais” são avanços tecnológicos). Apesar disso, mesmo descontando o imenso contingente voltado para a busca de novas tecnologias, o número de cientistas é imensamente maior que o de todas as épocas. Por que não temos, então, um desenvolvimento científico compatível com isso? Tenho uma resposta parcial e cruel.
As teorias científicas estabelecidas estão enredadas em atividades fartamente lucrativas. Verbas gigantescas são distribuidas para o financiamento de pesquisas fundamentadas nas teorias aceitas (imagino algo da ordem de trilhão de dólares). A desconfiança em alguma dessas teorias poderia dificultar parte dessa dotação; podemos imaginar alguns bilhões de dólares sendo revertidos a alguma outra destinação, em virtude de descrença em alguma teoria.
Partamos desse ponto. Consideremos que um abalo, por exemplo, na confiança sobre a mecânica quântica viessse à tona. Imaginemos que as críticas à teoria fossem amplamente divulgadas, disseminando dúvidas sobre sua validade. Poderíamos esperar, em decorrência, a suspenção de bilhões de dólares destinados a pesquisas na área. O risco seria grande, e aqueles que pleiteiam e esperam receber essas vultosas quantias não gostariam de perder tal oportunidade, prefeririam agir profilaticamente garantindo, de um modo ou de outro, que tais dúvidas viessem a ser caladas e aniquiladas. Sabemos que alguns bilhões podem fazer milagres, influenciando, muitíssimo, de um modo ou outro, a crença de indivíduos e de multidões.
Creio ser essa a causa fundamental da blindagem sobre a mecânica quântica, teoria notoriamente ruim, mas inatacável.
Apesar de suas fraquezas intrínsecas, ou talvez, em virtude delas, a mecânica quântica tem tido um fortíssimo apelo popular disseminado entre astrólogos, místicos e na maioria dos que se sustentam em crenças irracionais. De fato, confiram, todo o fascínio da mecânica quântica decorre de sua irracionalidade (somos completamente absurdos)!
A situação é risível. Físicos construíram um discurso irracional, abstruso. A constatação é saudada por uma multidão de tolos defensores de ideias disparatadas, sentindo-se igualados aos cientistas. Concordo com eles: os esforços dos físicos quânticos os têm levado a se igualar aos místicos mais tresloucados. O apelo resultante da peripécia favorece a concessão de mais verbas pelos sisudos e conservadores administradores de fundos e donações para pesquisa. As verbas resultantes financiam a perpetuação da situação, realimentando a bufoneria ridícula. A comédia prossegue em ciclos retroalimentados.
A substituição da mecânica quântica corresponderia a uma revolução brutal na física. Alterações na compreensão do átomo, conceito fundamentado em concepções quânticas, se estenderiam por toda a química. Toda a nossa visão de mundo seria alterada.
Creio que alguns bilhões de dólares injetados anualmente tenham o poder de blindar a teoria, de resguardá-la de qualquer crítica, penso que tal poder tem sido usado.
Talvez seja esse o motivo do conservadorismo da ciência contemporânea, a razão porque nenhuma teoria realmente revolucionária despontou durante quase um século! Temos vivido tempos de um fortíssimo conservadorismo, nos quais as ideias realmente revolucionárias podem estar sendo, simplesmente, bloqueadas, talvez, por ameaçar grandes lucros.
A mecânica quântica postula, sem nenhuma justificativa, a impossibilidade de entendimento sobre o mundo; sem nenhum fundamento postula uma estranheza intrínseca, abstrusa, incompreensível, inerente a todas as coisas. Postula a inutilidade da tentativa de compreensão do mundo; a mecânica quântica é uma anticiência.
Paradoxalmente, a mecânica quântica, embora obscurantista e retrógrada, costuma ser apresentada sob roupagem moderninha, vibrante, inovadora, revolucionária, mas tem sido um enorme entrave ao conhecimento.
Absurdo querer abdicar da razão.
Mas o conservadorismo contemporâneo não se restringe à física, a biologia pode ser acusada do mesmo mal.
O cerne da biologia, o esqueleto fundamental de sua estrutura, consiste na teoria da evolução, que já tem um século e meio, embora tenha adquirido suas feições contemporâneas no início do século XX, na mesma época em que a mecânica quântica e a relatividade. A coincidência me sugere um espírito favorável às mudanças iluminado pela então recém inventada lâmpada elétrica.
Ao contrário da física, no entanto, a biologia é muito pouco estruturada; só muito recentemente os biólogos voltaram a dar atenção à máxima de Theodozius Dobzhansky: em biologia nada tem sentido se não à luz da evolução. Durante a segunda metade do século XX os biólogos permaneceram imersos em suas respectivas especialidades, praticamente alheios às conexões entre os vários campos. Só recentemente, após os trabalhos de Dawkins, creio, as discussões biológicas centrais voltaram a ganhar interesse.
Mas, provavelmente, o marasmo contemporâneo se espalha por todos os campos do conhecimento abarcando, inclusive, áreas pouco suscetíveis a influências financeiras, como a matemática e a filosofia (torço para que essa minha avaliação esteja errada). É provável que não tenhamos tido nem desenvolvimentos matemáticos, nem filosóficos, proporcionais ao contingente de pesquisadores nessas áreas. Se assim for, deve haver outra causa impedindo o desenvolvimento de ideias revolucionárias. Um candidato para isso, nesse caso, seria a estrutura atual de produção intelectual, outro a de ensino. Ambas as sugestões, no entanto, me parecem paradoxais, já que o ensino contemporâneo é mais universal que o de outras épocas, e as condições de trabalho, comunicação e divulgação dos cientistas contemporâneos são amplamente melhores que as de outras épocas.
Talvez eu esteja errado quanto à avaliação do resultado, mas suspeito que se os matemáticos do início do século passado fossem informados sobre o tamanho do contingente de matemáticos contemporâneos e sobre as facilidades de comunicação e outras usufruidas por esse grupo, esperariam um florescimento matemático muito superior ao que conseguimos. Se tal expectativa se estende por todas as áreas devemos buscar uma explicação geral para o fato.
O século XIX viu o florescimento extraordinário da ciência, em especial da física, e se inebriou com suas conquistas. Encantados e perplexos com os conhecimentos recém obtidos alcançados por intermédio da nova ciência, os de então viram-se forçados a acreditar na veracidade absoluta da ciência. Tendo encontrado o método de obtenção de verdades, cabia a eles desvendar e listar todas elas, tarefa que poderia ser feita com maior eficiência por especialistas. Creio ter sido essa crença ingênua, e hoje desacreditada, na veracidade inconteste das ciências que acabou por induzir a formação de especialistas restritos, conhecedores profundos de uma pequena área do conhecimento e apenas dela.
Em decorrência da generalizaçãodessa crença, uma deformação imperou na época. Uma característica marcante dos cientistas do século XX foi sua especialização excessiva, ceio ter sido essa a principal causa da falta de criatividade que nos tem assolado desde então.
Os sábios de outros tempos discutiam todas as questões relevantes de sua época, costumavam dar contribuições significativas em variados campos do conhecimento. Desde o alvorecer do século XX, no entanto, tais personagens praticamente desapareceram. Difícil encontrar algum cientista que tenha se destacado em duas áreas distintas; nenhum deles se sobressaiu em várias delas simultaneamente, naquele século.
Suspeito ter sido essa uma das principais causas da falta de criatividade do período, do conservadorismo científico vigente na época. Ideias oriundas de outras áreas podem ter efeito revolucionário, renovando e removendo ideias antigas estagnadas.
Junto a esse fator, o ensino dogmático deve ter contribuído significativamente para o impedimento do surgimento de uma ciência significativamente revolucionária.
O futuro imediato promete duas novidades capazes de insuflar esperança. Acredito estarmos nos afastando da era obscurantista dos hiperespecialistas centrados exclusivamente em um único tema. Suspeito que o auge dessa aberração tenha ficado no século passado, e que esteja havendo um movimento no sentido da diversificação do conhecimento por parte dos especialistas. A diversidade de ideias tenderia a sugerir novos pontos de vista a enfocar antigas questões.
Questões sociais e econômicas devem também ter um efeito significativo no debate. A superação dos Estados Unidos como maior potência econômica mundial pela China deve trazer alterações significativas em uma vasta gama de assuntos. Assim que as rédeas do poder mudem de mãos, quando os chineses, os novos líderes econômicos mundiais, começarem a dar as cartas, a definir as novas regras do jogo, haverá alterações radicais em inúmeros pontos de vista. Acredito que nossa visão de mundo ruirá em bloco, cedendo lugar a novas crenças significativamente diferentes das atuais nos campos sociais, políticos e econômicos. Penso que essa revolução drástica propiciará o substrato ideal para a sustentação de novas bases científicas. Aguardo o reflorescimento da física com alegre expectativa.