Umas considerações sobre a loucura

Um surto psicótico pode ser descrito como uma mudança de mundo. Nesse caso o indivíduo pode ter a impressão de que as coisas estão completamente fora de controle, ou de que ele próprio pulou para um outro mundo.

Sob a visão comum, a loucura é inexplicável, uma falha no sistema cognitivo de um indivíduo.

Sob o ponto de vista pluralista da análise de replicadores, o “indivíduo” não é tão individual como pode parecer à primeira vista. Suas ações não são governadas por uma única entidade individual chamada “eu”, mas por uma enorme coletividade de replicadores. Assim sendo, não surpreende que eventualmente outras entidades assumam o poder sobre o “eu” de uma maneira explícita. Sob esse ponto de vista, o que chamamos loucura seriam, usualmente, tentativas de replicadores alternativos ao eu de assumirem o poder.

Lembremos que estamos gastando, a humanidade, uma quantidade crescente de energia, muito superior à necessária para nossa replicação individual, atestando que outros replicadores estão utilizando essa energia adicional para sua própria replicação. Tais replicadores competem por essa energia excedente, por necessitar dela para a própria replicação. Para isso, utilizarão as estratégias tradicionais dos seres biológicos, como o parasitismo, e as artimanhas de controle do hospedeiro pelo parasita descritas pelo fenótipo estendido.

Se isso é correto, em breve teremos multidões vivendo vidas estapafúrdias, sem o menor sentido, completamente alheias à realidade, imersas em jogos reconhecidamente tolos, ou em outras atividades igualmente vãs e alienadas. Terão suas consciências guiadas pelo único propósito de fugir do tédio, deixando-se levar pelo encanto dos replicadores. Vivendo sob essa meta exclusiva, queimarão suas vidas inteiras, consumirão até o fim suas existências. Viverão sem nenhuma consciência de si nem de suas vidas, apossados, dominados por replicadores empenhados exclusivamente na própria replicação. Terão vivido para esperar a morte.

Mas nem só os tolos serão dominados pelos replicadores. Os poderosos serão suas vítimas mais especiais e mais cuidadosamente controladas. Sabe-se, há muito, que o poder corrompe, mas não se sabia como nem porque. O poder transforma as pessoas em marionetes e as controla do mesmo modo que os parasitas controlam seus hospedeiros, compelindo-os a agir sempre em sua defesa. Dessa maneira, os poderosos acabam por perder a consciência; transformados em zumbis, agem para garantir o fortalecimento e a reprodução das relações de poder.

Comandados pelo poder, estamos hoje, coletivamente, destruindo o mundo, impossibilitando nossa própria condição de existência, estamos loucos.

Não há sentido em destruirmos nosso próprio mundo, fazemos isso inconscientemente comandados por criaturas autônomas. Estamos alienados, loucos.

Definimos a loucura, no entanto, (e essa deturpação da racionalidade já é um forte indicativo da própria loucura) por um critério de familiaridade; comportamentos usuais são considerados normais, mesmo se conduzem à destruição de todos nós. Serão considerados loucos, por exemplo, os que denunciarem tal loucura.

Sob o controle da multidão de replicadores, abandonamos a razão e nos vemos guiados pelo hábito, facilmente moldáveis por eles, que já nos controlam.

Estamos loucos.