VALE QUANTO PESA (A Ficção Brasileira Modernista) - Silviano Santiago

Para Davi Arrigucci Jr.,

que precipitou.

Nesta altura do século XX, seria imprudente começar a escrever sobre a ficção brasileira contemporânea sem se levar em consideração o fato de que é veiculada através de um objeto a que chamamos livro. Incorreríamos em, pelo menos, dois defeitos grosseiros, embora justificáveis pela natural vaidade que os escritores costumam ostentar: dar a ela uma importância que não pode ter, pensar que o texto literário atinge camadas sociais diferentes, conscientizando-as. O objeto livro de ficção (como, aliás, o objeto livro em geral) circula de maneira limitada, deficitária e claudicante, numa média de 3 mil exemplares (cada edição) num país de 110 milhões de habitantes, segundo as últimas estatísticas. No melhor dos casos, 12 a 15 mil cópias (quatro ou cinco edições sucessivas) circulam pelo país no correr de quinze anos, sendo que o total de leitores do romance pode ser calculado na base otimista de 50 a 60 mil.

A proporção de 60 mil leitores para 110 milhões de habitantes, já levantada por Roberto Schwartz em 1970 e retomada por Carlos Guilherme Motta em 1977, é ridícula e deprimente, mas é por essa inevitável assimetria que começaremos a nossa meditação pouco ortodoxa sobre o conhecimento que o objeto livro de ficção tem trazido para os habitantes deste país chamado Brasil.

De imediato fica excluída a possibilidade de desvincular o leitor de ficção de um cosmopolitismo cultural burguês, já que ele vem mantendo contato direto e duradouro com os clássicos do gênero tanto estrangeiro quanto nacionais. Daí sem dúvida a primeira dupla de constatações: sendo o leitor de ficção brasileira pouco xenófobo, a qualidade universal é necessariamente uma componente importante no novo romance. Tais constatações se comprovam com a observação de que as discussões sobre tal e tal romance são sempre precedidas da situação da obra tanto na história do gênero, quanto no panorama atual da pesquisa romanesca em outros lugares (isto é, Europa, Estados Unidos e, recentemente, América Espanhola). Além disso, o romance não é criticado sem prévio exame da técnica ou sem cuidadosa análise formal.

E, como ricochete da ausência de xenofobia e da exigência de universalismo burguês, temos uma situação e uma descoberta tristes: por um lado, o romance estrangeiro tem melhor mercado que o nacional entre nós e, por outro lado, ainda não tivemos sucesso internacional com a nossa produção. Assim sendo, os estudos críticos sobre obras brasileiras não conseguem apreender a qualidade da ficção brasileira em si. Procuram, nos trabalhos trdicionais, rastrear as influências estrangeiras sobre o autor e a obra e, nos trabalhos acadêmicos recentes, configurar os intrincados caminhos da dependência cultural.

Dentro dessa linha de pensamento, pode-se dizer que, apesar de tudo, o luxo não é a componente técnica ou formal do texto, inerente ao romance-século-XX, mas o luxo é o livro. O livro em edições de 3 mil exemplares num país de 110 milhões de habitantes. Objeto caro, por um lado; um tanto quanto "difícil", por outro lado; impróprio para circular num país de analfabetos ou semi-analfabetos, por um terceiro lado; marginalizado numa nação onde tudo é feito para incrementar os meios de comunicação de massa e nada para incentivar a rede bibliotecária, por mais outro lado, e finalmente censurado quando ameaça arreganhar a boca e engolir outros leitores que não os seus 50 ou 60 mil. No centro dessa estrela de cinco pontas e pouca grandeza, cerceado, é que o livro de ficção encontra o seu espaço e o seu orgulho. Área mínima, um ponto talvez; orgulho limitado, uma ponta de vaidade talvez. Mas nem por isso sem importância, como veremos.

O autor de ficção não pode escolher os seus leitores. Faz o livro para que possa ser escolhido (ou eleito) pelo leitor, e, por isso, qualquer desagrado que o romance possa causar aos seus hábitos austeros o torna de imediato desclassificado criticamente. Isso é bom e isso é mau. Bom, porque o livro de má qualidade (ultimamente caracterizado pela indústria editorial tupiniquim com a velha etiqueta de best-seller) não encontra o sucesso fácil que o glorifica nos Estados Unidos e na Europa; mau, porque o livro um pouco estranho (isto é, experimental) não chega a surpreender, a despertar a curiosidade, já que não se espera dele que inquiete, mas antes que agrade ao gosto refinado, cosmopolita e auto-suficiente dos happy few. Como exemplo, cite-se o fato de que os textos mais audaciosos dos anos 20 só começaram a ser consumidos regularmente na década dos 60, ou mesmo no ano de comemoração do cinqüentenário da Semana de Arte Moderna. É o caso dos romances experimentais de Oswald de Andrade (Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande), ou de Mário de Andrade, Macunaíma. E podemos levantar a hipótese de que ainda estariam negligenciados pelo leitor comum caso não existissem, por detrás da publicidade de Oswald, os agressivos grupos Concreto e Práxis de São Paulo e, por detrás do romance de Mário, a versão cinematográfica de Joaquim Pedro de Andrade.

Temos assim um público de ficção reduzidíssimo, ao mesmo tempo sofisticado e conservador, petulante e cosmopolita, e ultimamente apressado. Público que hoje se dá os ares de viver na grande metrópole, onde time is money, dedicando maior simpatia às narrativas curtas (o conto), ou mesmo a esta subliteratura desenvolvimentista que é a crônica de revista ou de jornal, reunida posteriormente em livro, servindo de pasto para os nossos indigentes alunos de ginásio e as suas deslumbradas professoras.

O público de ficção no Brasil vive na grande cidade e é formado por camadas mais ou menos previsíveis e semelhantes de leitores, reproduzindo-se identicamente de Estado para Estado. Leitores que vão desde o próprio produtor de literatura (um romancista, poeta ou crítico lê um romance), passando pelo dilema ("não sei por que leio, acho que o hábito vem de família"), esbarrando no professor e aluno universitários (o professor indica e exige a leitura do aluno) e se espraiando, aleatoriamente, pelos muitos e poucos que necessitam dar uma ordem às suas asperezas de temperamento, ao seu inconformismo individual e ao seu mal-estar político e social.

Todos esses leitores, estamos vendo, vivem dentro do bem-estar, do lazer e das comodidades educacionais inerentes à classe média, classe esta privilegiada por todos os milagres brasileiros desde os anos 30, tanto os econômicos e sociais quanto os culturais. O livro é, pois, objeto de classe no Brasil e, incorporado a uma rica biblioteca particular e individual, é signo certo de status social. Como tal, dirige-se a uma determinada e mesma classe, esperando dela o seu aplauso e a sua significação mais profunda que é dada pela leitura, leitura que se torna um eco simpático de (auto)revelação e de (auto)conhecimento.

Não podendo ser profissional numa sociedade em que a sua mercadoria não circula e não é rentável, em que tampouco pode crer em dispositivos estatais ou empresariais que o amparem economicamente e em que o produto estrangeiro e concorrente é adquirido com mais constância, - o escritor acaba sendo aquele que dispõe do lazer que a sua classe lhe possibilita, que as suas atividades profissionais (paralelas e rendosas) lhe proporcionam. Autor do romance que o tempo e o leitor lhe permitem. Escravo deles em suma.

Assim sendo, o discurso ficcional, antes de refletir sobre os problemas do país, da nação ou da região em perspectivas diferentes e complementares, em visões até mesmo antagônicas, antes de refletir sobre as aspirações multifacetadas e contraditórias da população em geral, o discurso ficcional é a réplica (no duplo sentido: cópia e contestação) do discurso de uma classe social dominante, que quer se enxergar melhor nos seus acertos e desacertos, que quer se conhecer a si mesma melhor, saber por onde anda e por onde anda o país que governa ou governava, que se quer consciente das suas ordens e desordens, ou ainda da sua perda gradual e crescente de prestígio e poder face a novos grupos ou a transformações modernizadoras na sociedade.

O romance brasileiro, apesar de um Jorge Amado (sobretudo o dos romances da sua primeira fase) e de um João Antônio, comandando com grande campanha publicitária o cordão dos "lambões de caçarola", não pode impedir essa sua vertente elitista, esse seu compromisso com à la recherche du temps perdu. Ou mais cinicamente: esse seu engajamento com o espelho retrovisor num carro que avança blindado o calhambeque por estrada asfaltada, cuja sinalização obviamente é pouco democrática. Já vemos que pouco adianta falar da intensidade dos faróis, ou do pedaço futuro de estrada que iluminam, já que os olhos do romancista e da classe média se concentram no espelho retrovisor.

A função social do romance contemporâneo é a de proporcionar um espaço crítico, mordente e rebelde, nos bons casos; complacente e generoso, nos textos mais afidalgados; cheio de piedade e de comiseração, nos livros apegados à tradição; amaneirado e apenas narcisista, nos piores casos; um espaço crítico em que se refletem os grupos sociais que vão ocupando as esferas de poder, prestígio e decisão nas fazendas e nas cidades. Círculo vicioso, que só pode se abrir no momento em que surgir um novo e diferente leitor. Leitor que requisite do romancista uma temática e uma postura diferentes. No momento em que surgir um novo e diferente romancista. Romancista que possa propor reflexões a camadas sociais diferentes. Mas, para isso, é preciso primeiro que esse indivíduo possa se alçar à condição de leitor ou à de romancista. Como chegar a uma dessas condições numa sociedade como a brasileira, onde os percalços da alfabetização (isto é, do primeiro domínio sobre a linguagem) já se esbarram em campanhas mobralescas?

Fica fácil, agora, configurar o dilema e a frustração nada invejáveis por que passa toda e qualquer tentativa de uma escrita ficcional populista. (A dos anos 30; a que teve sucesso passageiro nos anos 61-64, em torno do CPC; a recente invasão que tomou de assalto não só o romance, mas a poesia - vide Thiago de Melo, e o teatro - vide Gota d'Água, de Chico Buarque, O Último Carro, de João das Neves, ou Ponto de Partida, de Gianfrancesco Guarnieri.) Tentando levantar problemas de classes ou de grupos marginalizados pelo processo político neocapitalista e repressivo brasileiro, o populista utiliza um veículo - como estamos tentando provar - equivocado: o livro. (E, no caso do teatro, a sala de espetáculos comercial, onde o ingresso custa perto de Cr$ 100,00.) A denúncia da ficção populista, qualquer que seja ela, ou cai nas mãos de quem está consciente da arbitrariedade e da injustiça e nada pode fazer, servindo o texto apenas para alimentar a sua já gulosa mauvaise foi, para usar a expressão sartreana, ou cai em mãos de um leitor mais ágil politicamente, que por sua vez já conhece os problemas e fatos dramatizados e tenta camuflada ou clandestinamente atuar, passando o livro a ser uma espécie de muleta para os seus anseios de justiça combatidos e combalidos.

A denúncia social populista roda assim dentro de um vácuo ideológico, que só poderá ser ativado caso os membros da classe social dirigente brasileira (os possíveis compradores daquele romance) tivessem optado pela aniquilação dos seus desejos de poder ou pela contínua destruição de sua própria ambição econômica pessoal. Mas o Brasil não é um país de kamikases políticos, empresariais ou profissionais.

O desejo de poder aniquilado e a ambição pessoal destruída não são qualidades da classe média emergente latino-americana, pois até mesmo os parcos gestos apaixonados de revolta (que provavelmente a literatura de denúncia desperta, como numa peça de Górki) se suavizam diante do clima de festa que cerca as atividades culturais contestatárias, politicamente inclinadas para uma reviravolta social no país. Falta ao texto populista (que,em última instância, é praticamente escrito para a classe média que o consome) a exibição das chagas de que tem sofrido perseguições e mutilações, chagas que eclodiriam num texto abafado e ríspido, fúnebre e cinza, autocrítico e impiedoso para consigo mesmo, texto este tocado mais de perto pela pena de um Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere, Angústia ou São Bernardo).

Mas o que presenciamos é a contínua explosão de alegria nos momentos de abertura consentida, como se a derrota anterior fosse motivo de riso e o exílio-e-retorno dos líderes motivo de júbilo, e não a ocasião para a reflexão sobre os desacertos. O que vemos - por outro lado - é uma juventude estudantil abafada pela repressão se entregando ao texto populista num processo de liberação pequeno-burguesa que não pode ser confundido com o duradouro e pungente engajamento político. Ou pode - e é o espetáculo intermitente que vemos no festivo e inócuo recinto universitário desde os anos 30.

Configurado como obra formalmente universal e moderna, sendo reduzido e precioso o conjunto dos seus leitores, sabendo ainda como é limitado e cerceado o seu poder de penetração e de eficiência sócio-política, o romance brasileiro modernista buscou consciente ou inconscientemente a sua postura ideológica mais avançada no discurso ficcional memorialista, como a dizer que a aventura individual, pela sua rebeldia social e audácia política, pela sua fuga e desrespeito da norma burguesa, pela sua ambição de ser exemplo e modelo autêntico de individualismo em regimes autoritários, seria digna da curiosidade e interesse dos seus pares. Estes se veriam refletidos na ficção memorialista, e a partir dela poderiam melhor saber de si próprios, melhor conhecer sua condição social, melhor apreender sua importância e inoperância dentro da sociedade brasileira, fechando assim a tautologia dos 60 mil leitores num país que teve 50 milhões de habitantes e hoje tem 110 milhões.

Nos nossos melhores romancistas do Modernismo, o texto da lembrança alimenta o texto da ficção, a memória efetiva da infância e da adolescência sustenta o fingimento literário, indicando a importância que a narrativa da vida do escritor, de seus familiares e concidadãos, tem no processo de compreensão das transformações sofridas pela classe dominante no Brasil, na passagem do Segundo Reinado para a República, e da Primeira para a Segunda República. Tal importância advém do fato de que é ele - o escritor ou o intelectual, no sentido amplo - parte constitutiva desse poder, na medida em que seu ser está enraizado em uma das "grandes famílias" brasileiras.

Nesse sentido, uma reflexão, ainda que passageira, sobre o todo do discurso poético de Carlos Drummond de Andrade seria reveladora da ambigüidade ideológica que mapeia os (des)caminhos do discurso memorialista da classe dominante.

De maneira surpreendente, o texto de Drummond dramatiza a posição e a contradição, dentro da elite pensante brasileira, entre Marx e Proust, ou seja, entre a almejada revolução político social, instauradora de uma nova ordem universal e nacional, exemplificada pelos poemas de A Rosa do Povo, e o apego aos valores tradicionais do clã familiar dos Andrades, os seus valores econômios e culturais, como é visível em Boitempo e Menino Antigo. Drummond constitui, de maneira nem sempre muito explícita, duas posturas como portadoras dessas duas opções ideológicas: a postura do começo e a origem. Essas posturas se concretizam em situações autobiográficas, pois, como assinalou Décio Pignatari na revista Invenção, "o Drummond autobiográfico é antes autográfico: escreve-se a si mesmo para ser".

Por começo, entende-se o desejo do homem em inaugurar por conta própria uma sociedade em que pode negar totalmente os valores do passado e do clã. Não se identificando com os seus antepassados, o poeta pode afirmar com convicção e radicalismo os valores de rebeldia e de individualismo que julga justos para uma sociedade sem classes. Tal mito é representado na poesia de Drummond pela estória de Robinson Crusoé, "comprida história que não acaba mais". Retirado da cultura européia por acidente imprevisto, Robinson arriba a uma ilha deserta onde tem de refazer todos os passos culturais do homem, a partir da estaca zero. Da solidão passa à descoberta do outro, empolgando-se com o retorno à vida social. É um mito de rebeldia e, no caso de Drummond, de negação do Pai, como transmissor da cultura, e da Família, como determinação da situação sócio-política do indivíduo. O passado não conta, só o presente, e mesmo assim tudo está para ser reinventado, desde que as mãos sejam dadas.

Por origem, entende-se a vontade de o homem se inscrever numa ordem sócio-cultural que o ultrapasse e em que os valores individuais percam sua razão de ser, pois são indícios de mera e passageira insubordinação ou rebeldia. Só são eternos e válidos os valores superiores da tradição e do passado. Assim sendo, o indivíduo tira a máscara passageira de Robinson e descobre que, em si, não vale nada: ele só é alguma coisa quando se identifica e é determinado pelo seu clã. O conhecimento não é uma aventura robinsoniana, mas já está todo codificado pela tradição e lhe é oferecido gratuitamente, e o potencial humano - o seu próprio - já está predeterminado pela sua classe de origem. A curta aventura do indivíduo sobre a terra é uma aproximação infinita desse conhecimento, ou seja, o retorno do filho à casa do Pai, para que possa assumir, depois da insubordinação, o seu lugar, e a volta ao seio da Família, para que seja o patriarca. Tal forma de exigência social está autenticada pelo pensamento religioso. A transmissão dos bens culturais se dá pela herança, pela aceitação do Pai celeste. O homem, inserindo-se na família cristã e patriarcal, transcende a sua vida e o seu tempo, revelando seu eu verdadeiro na eternidade.

Coroando esse curto e, esperamos, instrutivo parêntese, chamamos a atenção para o fato de que o personagem-intelectual, narrador muitas vezes, central e reminiscente sempre, entre Proust e Marx, encontra-se nos romances já citados de Oswald de Andrade, na Bagaceira, de José Américo de Almeida, no ciclo da cana-de-açúcar de Lins do Rego, no Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, na Angústia, de Graciliano Ramos, em O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, em O Espelho Partido, de Marques Rebelo, no Encontro Marcado, de Fernando Sabino, etc. E reparem que não estamos mencionando o teatro de um Jorge de Andrade, enfeixado em Marta, a Árvore e o Relógio. Nem de longe tocaremos em problemas mais complexos, como o que envolveria uma leitura "literária" de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, clássico dos estudos sociológicos entre nós.

A postura memorialista do texto de ficção pode ser comprovada concretamente e sem truques, no exame da obra completa de dois representantes de grupos literários diferentes: Oswald de Andrade e Lins do Rego. Ambos, depois de publicarem no início da carreira romances memorialistas, como Memórias Sentimentais de João Miramar e Menino de Engenho, por exemplo e respectivamente, sentem a necessidade, já na velhice, de reescreverem o mesmo livro, o mesmo livro dado de presente pelo texto da lembrança, só que agora sem a moldura conivente de "romance": Um Homem sem Profissão e Meus Verdes Anos. Essa coincidência é tanto mais significativa porque nos mostra como são frágeis as distinções de escolas literárias (Oswald, do grupo de São Paulo, contra Lins do Rego, do grupo do Nordeste) e como são fluidas e pouco pertinentes as fronteiras entre discurso ficcional memorialista e discurso autobiográfico no contexto brasileiro.

Indiciadas como fluidas as barreiras entre um e outro discurso no Brasil, note-se que a lista levantada apressadamente em parágrafo anterior (não se esqueça, caro leitor, que não é intuito nosso dar o elenco de uma "história" da literatura) se agiganta, pois grande é o número de obras com nítido cunho autobiográfico escritas pelos modernistas. Citemos algumas: Infância e Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, A Longa Viagem (1ª e 2ª etapas), de Menotti del Picchia, Idade do Serrote, de Murilo Mendes, Antes que Me Esqueçam, de José Américo de Almeida, Baú de Ossos, Balão Cativo e Chão de Ferro, de Pedro Nava. E, de novo, estamos sendo parcimoniosos, já que nem tocamos o capítulo dos "depoimentos" de políticos e figuras importantes da cena nacional.

Parece ter sido Antonio Candido quem anotou com maior acuidade e consistência a importância dessa vertente no processo de maioridade da literatura brasileira. Possivelmente só o abandono por completo da máscara dúbia contida nas etiquetas "romance" e "personagem" e a aceitação das regras das memórias poderiam precipitar a reflexão crítico-burguesa (sua abrangência, limites e tabus), ou seja, ativar a participação de qualquer escrita, de qualquer livro, na vida intelectual e sócio-política brasileira. Oswald de Andrade, devidamente agradecido e encorajado, lembra, nas páginas iniciais de Um Homem sem Profissão, a frase e conselho do amigo e leitor: "Antonio Candido diz que uma literatura só adquire maioridade com memórias, cartas e documentos pessoais e me fez jurar que tentarei escrever já este diário confessional".

É ainda o professor e crítico paulista que, em conferências recentes e inéditas em livro, nos mostrou a importância da escrita memorialista no processo de retomada da conscientização política operada pelo livro nos anos 70, partindo da análise da prosa de Murilo Mendes, da poesia de Carlos Drummond de Andrade e das memórias de Pedro Nava. É ainda e finalmente a Antonio Candido que devemos a percepção mais aguda de que este complexo, intrincado e variado feixe multicolorido de textos (todos os citados até agora) pode reduzir-se a um único e indiferenciado discurso de classe. Citemos, sem parcimônia, o parágrafo inicial do prefácio que fez, em 1967, para Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda:

A certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço no passado sem cair em autocomplacência, pois o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos, de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a princípio diferentes uns dos outros e vão, aospoucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas características gerais da sua época. Então registrar o passado não é falar desi; é falar dos que participaram de uma certa ordem de interesses e de visão do mundo, no momento particular do tempo que se deseja evocar.

De repente, uma voz não ouvida faz-se presente: "O senhor...Me dê um silêncio. Eu vou contar". Furtando-se, em significativo deslocamento, àquela voz abrangente e indiferente do discurso memorialista, senhorial e culto, sobressai o grande romance de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.

Torna-se pertinente assinalar que o lugar ocupado no discurso anterior pelo narrador-intelectual, agora se encontra preenchido por alguém que obedece e desobedece ao mando do senhor, o jagunço Riobaldo. Riobaldo que apenas pode falar, e fala "em ignorância" a este "senhor" que a todo momento aflora silencioso na narrativa. Com isso, passa o intelectual, citadino e dono da cultura ocidental, a ser apenas ouvinte e escrevente, habitando o espaço textual - não com o seu enorme e inflado eu - mas com o seu silêncio. O intelectual é o escrivão de "idéias instruídas", que só pode pontuar o texto de Riobaldo, como diz a psicanálise e o próprio narrador: "Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto".

Apesar das diferenças, a narrativa de Riobaldo conserva o mesmo aspecto autobiográfico precedente, só que o elemento autobiografado não pertence mais a uma "grande família" luso-brasileira, construtora de impérios e repúblicas. Pelo contrário: é ele o antípoda do "filho de fazendeiro", pois nem mesmo chegou a conhecer seu pai: "Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; quer dizer isso, pois eu nunca soube autorizado o nome dele". Deserdado pela sorte masculina e viajeira do sertão, deserdado ainda pelos sucessivos processos violentos da conquista, da colonização e do mandonismo local, sua vida é uma busca do nome verdadeiro, mas que nunca será o nome de família. Sem nome fixo, sem situação sócio-econômica definível, passando de chefe para chefe, vive a lógica da mudança, do percorrer e da transformação. Seus sucessivos nomes traduzem a dependência ao outro e as sucessivas metamorfoses da busca de significado: Cerzidor, Tatarana, Urutu-Branco...

O deslocamento narrativo acima assinalado concorre para que a fala do jagunço se afirme sem a certeza do mando e sem a tranqüilidade do poder, certeza e tranqüilidade encontradas nos textos memorialistas senhoriais e cultos e que ele, Riobaldo, procura exaustivamente no seu interlocutor silencioso. O falar de Riobaldo se caracteriza sintomaticamente por um constante gaguejar de dúvidas e incertezas, cujo bom exemplo seria esta passagem: "O senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso direito com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito". O "contar direito" não pertence ao dominado.

Esse titubear angustiado do narrador corresponde à situação ambígua, socialmente falando, que Riobaldo vive: sempre querendo afirmar-se como chefe, mas faltando-lhe a bravura e a hombridade necessárias. Daí também certas dúvidas quanto à sua própria individualidade, quanto ao seu nome próprio: "O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! - porque não sou, não quero ser". Transportado do meio agreste, circunscrito geograficamente como sertão, Grande Sertão: Veredas vai criando, à sua própria maneira, uma dimensão eterna que recobre os atos e fatos narrados, dimensão que era também característica do discurso memorialista culto, mas com uma diferença. Ao invés do catolicismo familiar e cultural, de que falávamos em Drummond ("as tábuas da lei mineira de família"), avança-se uma proposta de significação do discurso que é definida pelo uso especial da preposição sobre, anteposta a um substantivo concreto. Retomemos a citação do parágrafo anterior: "Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa. Agora, neste dia nosso, o senhor mesmo - me escutando com devoção assim - é que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido".

O "contar corrigido" é a maneira como os fatos narrados transcendem o significado primeiro e corriqueiro, "sobem para fora do real", adquirindo um valor sobre, sobre-natural, se quiserem, servindo para inscrever o fato e o herói no panteão dos deserdados e inseguros do próprio valor. É assim que a narrativa de Riobaldo oscila, primeiro, entre o contar e o contar direito e, depois, entre o contar e o contar corrigido. Oscila entre a "travessia" que é o real, a vida-vivida e a cegueira também, e os pontos de saída e de chegada (a arché e o telos da tradição grega). Essa oscilação traduz uma curiosidade e um indagar além-do-fato, dimensionando em última instância a escrita como busca teleológica: "Ah, tem uma repetição que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas - e no meio da travessia não vejo! - só estava entretido era na idéia dos lugares de saída e de chegada".

Vemos então como o romance de Guimarães Rosa (à semelhança de Os Sertões, de Euclides da Cunha, dentro do pré-modernismo) assinala uma imprescindível e importante vertente dentro do discurso memorialista da classe dominante, pois aqui o intelectual apenas serve para colher o discurso do indivíduo não-citadino, do ser não-incorporado aos valores ditos culturais e europeizados da sociedade brasileira, do cabelo enfim. Experiências semelhantes, embora sem o radicalismo silencioso do interlocutor de Grande Sertão, encontram-se em Lins do Rego, em Ariano Suassuna (A Pedra do Reino), em Autran Dourado (Os Sinos da Agonia e Novelário de Donga Novaes), em Clarice Lispector (A Hora da Estrela). Essa vertente nacional-popular (como talvez a chamaria Alfredo Bosi) da literatura brasileira, completamente diferente do discurso a que chamamos populista e de denúncia, vai se afirmar de maneira bastante positiva no quadro geral da cultura brasileira. Note-se que não se pode desentranhar de Guimarães Rosa, por exemplo, uma definição de popular e, por extensão,de povo, segundo uma concepção marxista. Seu deixar falar o outro comporta ainda uma visão elitista da literatura, visão da classe dominante: o contar direito e o contar corrigido. A própria concepção que tem das significações profundas dos atos e fatos dramatizados é bem pouco materialista, sendo antes naturalmente idealista e espiritual, como assinalamos. O povo é dado a conhecer através das suas próprias manifestações: casos, contos, romances, provérbios, etc. Dado a conhecer pela sua produção poética (no sentido amplo).

No entanto, é essa mesma vertente popular que vai sustentar as possibilidades de um discurso que atualize, sem preconceitos e sem demagogias, o elemento indígena. Atualize-o sem negá-lo, pois ele não é apenas uma tabula rasa, metáfora utilizada pelas cartas jesuísticas para caracterizá-lo culturalmente. Atualize-o sem cair na idealização romântica de José de Alencar ou de Gonçalves Dias. Atualize-o sem destruí-lo, ao contrário de Machado de Assis: "É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dela recebeu influxo algum: e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos de nossa personalidade literária". Ao contrário ainda de um Graça Aranha em plena efervescência "pau-brasil": "O Brasil não conheceu herança estética dos seus primitivos habitantes, míseros selvagens rudimentares".

Na medida em que o romancista apenas escuta a produção poética popular, apenas quer servir de veículo para que esta manifestação não-privilegiada se faça ouvir longe do local de enunciação, servindo de alerta para o nosso esquecimento cultural e de riqueza para a literatura, é que seu trabalho se assemelha ao de um antropólogo. No caso de Euclides da Cunha, sabemos como manteve uma Caderneta de Campo, sabemos ainda como mudou de opinião sobre o massacre ao presenciar o dia-a-dia dos homens do Conselheiro, sabemos como anotava com minúcia de lingüista as expressões e o falar caboclos. No caso de Guimarães Rosa, sabemos das suas constantes viagens pelo sertão mineiro, dos seus informantes, do seu ouvido de carne-e-osso e do seu ouvido mecânico, gravador que usava para capturar com maior precisão a voz escorregadia e cheia de dúvidas do jagunço.

Dois exemplos outros e mais contundentes serviriam para assinalar melhor a dívida do romancista brasileiro para com a Antropologia. Trata-se de Macunaíma, de Mário de Andrade, e do recente Maíra, de Darcy Ribeiro.

Cavalcanti Proença, no indispensável Roteiro de Macunaímai, chama a atenção, em capítulo com o sugestivo título de "Os Livros-guias", para as três principais leituras feitas por Mário para alimentar o seu romance: "O maior número de motivos foi colhido nas lendas reunidas no 2º volume da obra de Koch-Grünberg [Von Roraima zum Orinoco], e que na maioria dos casos fornecem o tema central, a que se agregam, como temas secundários, elementos de outras fontes. Trabalho que anda esparso em quase todo o livro e fornece o tema central do capítulo IV e do capítulo XIII é o livro de Capistrano de Abreu Língua dos Caxinauás. Quanto à 'Velha Ceiuci' o tema é fundamentado na lenda do mesmo nome que Couto de Magalhães registrou em O Selvagem". No caso de Maíra, seu autor é por demais conhecido como antropólogo e cientista social para que se coloque em dúvida a legítima ambientação etnológica sobre a qual se erige o discurso ficcional.

Tão importante quanto constatar este cruzamento da narrativa erudita com a narrativa popular ou mítica, seria dizer que, em ambos os casos, trata-se da busca de um discurso que seria exemplar da cultura brasileira, em toda sua extensão e com todas as ambigüidades. Macunaíma, o herói sem caráter, não é apenas uma figura retirada de uma lenda; é antes o cadinho onde Mário funde o complexo povo brasileiro tal qual o vê e o concebe com a sua ironia, picardia e erudição. Um povo que - como afirmou em Prefácio, que acabou não publicando - "está que nem o rapaz de vinte anos: a gente pode mais ou menos perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma". Mário abandona o Prefácio e essas palavras, mas nelas se indicia o paternalismo da reflexão erudita sobre a produção popular, aparecendo o povo brasileiro como o jovem Alcebíades às voltas com a palavra dialética e sábia do romancista Sócrates.

Macunaíma, o romance que se quis "rapsódia", é semelhante às Bachianas, de Villa-Lobos, obras que navegam tanto em águas européias quanto em peculiarmente nacionais, exibindo-se finalmente como um périplo de descoberta do Brasil às avessas. O europeu caminhou do mar para o centro do país. Macunaíma caminha de dentro do país para o mar. Esse entrecruzar de périplos dá origem, no romance, ao esplêndido capítulo IX, "Cartas pras Icamiabas", onde, através do pastiche e da paródia, o romancista deixa que se entrecruzem o texto da Carta, de Pero Vaz de Caminha, e o seu próprio texto satírico.

É neste entrecruzar de discursos, já que é impossível apagar o discurso europeu e não é possível esquecer mais o discurso popular, é neste entrecruzar de discursos que se impõe o silêncio do narrador-intelectual e que se abre a batalha da paródia e do escárnio, é aí que se faz ouvir o conflito entre o discurso do dominador e do dominado. É neste pouco pacífico entrelugar que o intelectual brasileiro encontra hoje o solo vulcânico onde desrecalcar todos os valores que foram destruídos pela cultura dos conquistadores. É aí que se constitui o texto-da-diferença, da diferença que fala das possibilidades (ainda) limitadíssimas de uma cultura popular preencher o lugar ocupado pela cultura erudita, apresentando-se finalmente como a legítima expressão brasileira. É ainda neste entrelugar que o romancista vê no espelho, não a sua imagem refletida, mas a de um antropólogo. Um antropólogo que não precisa deixar o seu próprio país. E como tal, o romancista vive a mesma ambigüidade e a mesma contradição desse cientista social, tão bem expressa por Lévi-Strauss, em Tristes Tropiques: "Volontiers subversif parmi les siens et en rébellion contre les usages traditionnels, l'ethnographe apparait respectueux jusqu'au conservantisme, dès que la société envisagée se trouve être différente de la sienne".

Na dubiedade do subversivo e do conservador pode-se perceber certo atraso do discurso literário com relação aos valores mais atuantes do discurso sociológico. Este mais rapidamente assimilou e tem utilizado as categorias atuais e universais da compreensão da estratificação social e dos desequilíbrios econômicos impondo, com a sua leitura "revolucionária" da sociedade brasileira, um modelo de ação para as classes não-privilegiadas bastante diferente da atitude paternalista, ou socrática, que estamos encontrando nos romances esquematicamente analisados. Não resta dúvida de que, se o discurso sociológico incita a uma prática imediata que seria responsável por uma guinada violenta na conduta social do protelariado, o discurso literário-antropológico - pelo seu lado conservador - se inclinaria a constituir templos de saber, que serviriam para guardar e preservar toda a produção verbal que estaria para sempre destruída graças às boas e às más modernizações.

Mas, no momento em que se invertem as realidades sociais a serem discutidas, percebe-se ainda, não sem certa malevolência, que o discurso sociológico é muitas vezes cego com relação aos valores pequeno-burgueses que carrega consigo, tornando-se assim muito "respeitoso" no que toca aos valores da classe de origem do sociólogo. Não só respeitoso, mas ainda e também reacionário, porque esses valores, transmitidos à ideologia da luta de classes, se encontram solidificados e empedernidos pela certeza dogmática da palavra científica.

É aí que o bisturi literário, mais impiedoso e menos comprometido com as instituições burguesas (tanto a universidade quanto os cenetros de pesquisas), mais anárquico e bandido, mais marginal enfim, pode cortar com rigor e vigor as carnes esclerosadas da classe dominante brasileira. Pena que o conhecimento praticado por essa cirurgia fique restrito a uma edição de 3 mil exemplares num país de 110 milhões de habitantes. Que eficiência pode ter?

Silviano Santiago.