Immanuel Kant (1724–1804) é referência do idealismo alemão, e, sob diversos aspectos, foi um admirador de Rousseau e da Revolução Francesa. O seu interesse alentava a expectativa de que a humanidade caminhasse melhor com as mudanças propostas pela revolução. A leitura do Emílio influenciou os escritos sobre a educação, como se comprova no texto Pedagogia (1803), que reúne anotações de aula de um de seus alunos e tem a edição autorizada pelo próprio Kant. É o seu último escrito.
       Para Kant, a tarefa da educação segue o mesmo caminho proposto por Rousseau e consiste no desenvolvimento da razão como sede natural que conduz o processo de melhoramento da espécie humana. “No homem (como única criatura racional sobre a terra), as disposições naturais que visam ao uso da sua razão devem desenvolver-se integralmente só na espécie, e não no indivíduo”. (1995, p. 23). A razão é a faculdade que amplia as regras e as intenções para além dos instintos naturais e visa ao desenvolvimento da espécie, e não do indivíduo. Ao propor a perfeição da espécie, e não do sujeito individual, Kant está considerando o progresso humano na sua progressividade que, devido à brevidade da vida do indivíduo, necessita de gerações que transmitam uma a outra os seus melhoramentos. Nos seus conhecimentos e nas suas intenções, o ser humano é perfectível e está sempre a caminho. Essa compreensão do ser humano como ser que se aperfeiçoa não deve confundir-se com a aquisição de conteúdos pelo simples cultivo das ciências e das artes. É na moralidade que a perfeição humana encontra o seu verdadeiro sentido. A moralidade não provém, na proposta kantiana, da cultura, como dado externo ou como resposta a um apelo da sociedade mesmo que do mundo jurídico, por exemplo.
        A educação, termo que possui significado idêntico ao de formação, em Kant (Bildung), necessita de uma disposição moral boa (interior) e de um período longo para a sua realização. Esse processo requer uma orientação da razão no seu uso teórico (do conhecimento) e prático (ética). Esse segundo uso é o mundo da moralidade, possível somente pela liberdade. A razão é a única capaz de conduzir a humanidade nesse processo libertador:
         O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.(1784, A 481, 482)
        É essa característica emancipatória da formação que conduzirá a proposta pedagógica kantiana. Cabe ao Estado, no segundo momento, como instituição legítima, assegurar a formação dos seus cidadãos, garantindo, como primeira exigência, a liberdade. Para Kant, o ser humano é o único que pode ser educado, sendo esse processo a atuação sobre a sua estrutura natural: é sensível enquanto constituída pela sensibilidade e é racional enquanto submetida à liberdade. A essas duas esferas se dedica a educação: “A disciplina converte a animalidade em humanidade” (1993, p. 29) e a instrução imprime positivamente a capacidade de permitir a coação da liberdade. Portanto, “unicamente pela educação o homem pode chegar a ser homem” (Ibid., p. 31), como uma arte que deve aperfeiçoar-se por muitas gerações, considerando a idéia de humanidade, da espécie humana e o seu melhoramento futuro. A educação deve conduzir o homem ao amadurecimento e torná-lo capaz de sujeitar-se à lei da liberdade.

A relação entre ética e educação

           A Pedagogia, para Kant, “é ou física ou prática” (Ibid., p. 45), a primeira é passiva para o aluno, sendo que a segunda forma o homem para viver e agir livremente. A educação prática compreende a habilidade, a prudência e a moralidade. Iniciando pelo hábito no modo de pensar, a educação deve alcançar a moralidade pela formação do caráter, que consiste em “firmes desígnios para querer fazer algo e também na execução real dos mesmos”. (Ibid., p. 81). A educação forma, pouco a pouco, a consciência da igualdade dos homens na desigualdade civil. Kant dedica muita importância ao outro, na moral e na educação, pela dignidade que possui o sujeito como fim em si mesmo. Na educação, deve-se desenvolver o amor aos outros e depois os sentimentos cosmopolitas.
          A fundamentação da ética kantiana resulta de um exame crítico da razão prática. Admitindo o uso prático da razão, Kant assume a distinção de Hume entre proposições descritivas e proposições prescritivas. A razão prática, como Kant a denomina, significa a capacidade de escolher a própria ação, independentemente das motivações, dos impulsos, das necessidades e das paixões sensíveis, das sensações de agrado e desagrado. A razão, portanto, orienta o conhecimento, enquanto deve permanecer nos seus limites, e também a prática, enquanto fundamenta a vontade. Kant entende que a vontade distingue o homem dos outros animais:
          A vontade não é algo irracional, uma força obscura que nasce de “ocultas profundidades”, senão algo racional: a razão em referência ao agir. A vontade é o que distingue o homem como um ser racional dos seres naturais como os animais, que se orientam por leis dadas pela natureza e não por leis concebidas por conta própria. (1986, p. 164).
        Os impulsos e necessidades possuem nos seres naturais um significado de pautas que regem a conduta, necessariamente. Como o seu impulso é uma urgência interna, os seres naturais possuem vontade em sentido metafórico. Seguem seus próprios impulsos, «a vontade da natureza», mas não uma vontade própria. Somente a capacidade de agir segundo leis dadas pelo próprio sujeito permite falar de uma verdadeira vontade. O termo «vontade» não significa a capacidade de destruir os impulsos naturais, senão se distanciar deles e suspendê-los como motivação última do agir. É a razão que determina a vontade: “A vontade é concebida como faculdade de se determinar a si mesma, agir conformemente à representação de certas leis. E tal faculdade só se pode encontrar num ser racional” (Ibid., p. 90). O princípio ético tem sua sede e origem na razão totalmente a priori. Consequentemente, a moralidade, no sentido que Kant pretende fundamentar, somente pode ser concebida a partir de um ente racional que existe como fim em si mesmo.
         Essa regra, porém, para um ser no qual a razão não é o fundamento único da determinação da vontade é um imperativo, isto é, uma regra designada por um ‘deve ser’ (ein Sollen) que exprime a compulsão (Notigung) objetiva da ação e significa que se a razão determinasse totalmente a vontade, a ação ocorreria indefectivelmente segundo essa regra.(Id. Ibid.)
         A afirmação da necessidade da determinação da vontade como imperativo e o seu oposto conduz a retomar a motivação do agir em função do objeto. Os princípios práticos que supõem um objeto como fundamento de determinação da vontade, são empíricos e não podem proporcionar qualquer lei prática. Ao negar a possibilidade de fundamentação empírica como condição do agir, Kant nega a tese do empirismo ético, segundo o qual se pode agir meramente sob motivações empíricas, como se os princípios da moral dependessem da experiência. Mais ainda impossibilita um fim para a ação moral que possa ser identificado com a felicidade. Desse modo,
        Kant realiza em sua fundamentação da ética, quatro tarefas fundamentais: determina o conceito de moralidade, aplica-o à situação dos seres racionais finitos, desembocando no imperativo categórico, descobre a origem da moralidade na autonomia da vontade e busca demonstrar com o fato da razão a realidade da moralidade; desse modo, depois de rebater o empirismo ético, considera ter superado também, radicalmente, o ceticismo ético. (Höffe, 1986, p. 165).
       A afinidade com Rousseau recai sobre a importância da liberdade enquanto fundamento da ação humana. Para Kant, a liberdade é o único fim digno de ser colocado como fundamento da ação: “Eu afirmo que a todo ser racional dotado de vontade devemos atribuir necessariamente também a idéia da liberdade, mercê da qual somente ele pode agir” (Ibid., p. 113).

Liberdade e educação

      A educação ou a Pedagogia possui, na reflexão kantiana, um significado complementar à moralidade, ao criar as disposições necessárias para a formação de um sujeito autônomo. A tarefa da formação tem como finalidade a moralidade, devendo evitar o conflito ao se colocarem os objetivos a ser tomados para a realização do homem como fim em si mesmo. A felicidade, enquanto fim a ser alcançado pela ação humana, dá lugar à liberdade. Para a Pedagogia, essa exigência leva a uma importante conclusão: o processo pedagógico não visa a conteúdos, mas a disposições que brotam da decisão do sujeito, expressão da sua autonomia e dignidade.
      A liberdade é o conceito central da filosofia kantiana e o elo de unidade do seu sistema, apresentada na sua implicação moral na Fundamentação da metafísica dos costumes. A definição da liberdade como “independência da vontade em relação à lei natural dos fenômenos” e como “independência em relação aos conteúdos” da lei moral, é o seu sentido “negativo” (ou seja, aquilo que ela exclui); se agregarmos a essa significação a conotação de que a vontade também está em condições de determinar-se por si própria e de autodeterminar-se, temos o sentido “positivo” e específico da liberdade. A esse aspecto positivo da liberdade, Kant denomina “autonomia” (= determinar-se a si mesmo a sua própria lei). O seu contrário é a “heteronomia”, ou seja, fazer que a vontade dependa e seja determinada por algo que provém de fora do sujeito.
      Na secção teórica do seu sistema, Kant apresenta a questão da liberdade na terceira antinomia, concluindo a impossibilidade de se conhecê-la. No entanto, o homem pertence ao mundo da necessidade causal ou fenomênica e ao mundo absoluto da liberdade, noumênico. Essa pertença a dois mundos é a solução que encontra Kant para resolver a terceira antinomia. Na esfera do mundo fenomênico, as leis naturais da necessidade não podem ser deixadas de lado e a liberdade não possui possibilidade de ser contemplada nessa esfera dos acontecimentos, pois corresponde ao acaso natural. Na esfera do mundo noumênico, a liberdade é pressuposta como condição, dado que o homem participa desse mundo, enquanto ser racional, e é nessa esfera que é verdadeiramente livre. A felicidade é um estado contingente que deve ser merecido pelo sujeito, desde que a sua ação seja realizada segundo o princípio da moralidade. O princípio da moralidade é que faz conhecer a liberdade. A moralidade, e não a felicidade, é a condição para a realização daquilo que somos enquanto indivíduos.
      Como um ato pode ser definido como moral? Essa pergunta está no centro de duas obras de Kant: a Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) e a Crítica da razão prática (1788). A resposta a essa questão segue o rigor necessário à fundamentação: “é moral o ato livre que pode ser universalizado, isto é, que pode valer para a humanidade inteira. (1964, p. 67). A moral em questão não tem como fim um conteúdo como a felicidade, a justiça ou o bem-comum. É formal, enquanto considera apenas a forma racional da ação, independente da experiência. Trata-se de extrair, como vimos, a fórmula geral de todo ato moral possível, depurado dos conteúdos empíricos, variáveis, heterogêneos. A forma da lei é que pode garantir a moralidade do agir. Por ser universal, o princípio moral implica necessariamente a objetividade, e não somente se relaciona com a pura intenção subjetiva.
      Kant estabelece que o poder prático não se reduz ao seu uso especulativo. A ação moral não depende do grau atingido pelo saber teórico de cada um. Não basta ser esclarecido para agir moralmente, a ação não é uma consequência analiticamente contida no conhecimento. Todo homem é capaz de reconhecer que, no campo da ação moral, o que vale absolutamente, sem condições, não é nem a inteligência, nem o talento, mas a boa vontade. Esse poder prático da razão como boa vontade que pertence a todos significa que nenhum homem está excluído da posse do universal. Kant sabe que, nesse ponto, recebe a herança da revolução operada por Rousseau, “esse Newton do mundo moral”. (Crampe-Casnabet, 1994, p. 68). A lei fundamental da razão prática que tanto encantou Kant apresenta-se deste modo: “Procede segundo máximas tais que possam ao mesmo tempo tomar-se a si mesmas por objeto como leis universais” (1964, p. 100). O ato moral é aquele que se realiza no acordo entre a vontade e as leis universais que ela dá a si mesma.
      A conclusão da Pedagogia reúne o que significa educar para Kant: “há algo em nossa alma que faz interessar-nos: a) por nós mesmos: b) por aqueles entre os quais crescemos, e c) pelo bem do mundo”. (1993, p.93) Essa alegria pelo bem geral deve ser suscitada na criança, mesmo que os benefícios próprios não sejam realizáveis imediatamente. Essa atitude recorda constantemente por que é digno agir moralmente, ou seja, segundo a liberdade.

Conclusão

     A partir desses pontos sobre a educação na Filosofia moderna, gostaria de concluir, ressaltando o significado das contribuições dessa tradição para a atual reflexão sobre o papel da educação e da Filosofia na educação.
     Em primeiro lugar, parte-se do princípio de que o processo educativo abarca o ser humano na sua totalidade e, ao agir sobre o sujeito, a formação o considera na sua condição de pluralidade: o ser humano possui um fim que se realiza no geral, e não somente no particular e individual. Em segundo lugar, a tarefa da educação, como sugerem Rousseau e Kant, implica a moralidade, em primeira instância. A educação do caráter “significa que a pessoa deduz a regra de suas ações a partir de si mesma e da dignidade do gênero humano”. (Ibid. p. 106). Um bom coração e bons sentimentos possuem sentido, se ordenados por princípios. Mesmo que consideremos as dificuldades que apresenta o formalismo kantiano, o ideal construído na modernidade possui atualidade e vigência, pois se fundamenta em condições que apontam para o ser humano na sua irredutível dignidade. Os fatores coercitivos externos, mesmo considerados legítimos, não são suficientes para garantir o surgimento do cidadão livre e autônomo.
     Outra constatação importante é que, se há um sentido para a Filosofia e para as demais áreas do saber na educação, esse sentido não se reduz à mera e simples apropriação de conteúdos, mesmo que aprendamos ou conheçamos o mundo e os seus objetos. Kant afirmava que não se ensina Filosofia, mas a filosofar. A Pedagogia é proposta como exercício ou, numa expressão fluente nos meios educacionais, questão de método. O método supera a aplicação de técnicas, e revela-se teoria em curso, aberta aos acontecimentos e situações concretas sem perder a relação com princípios fundamentais de todo o agir humano. Ensinar a pensar é inserir-se no processo ousado da auto-reflexividade que requer disciplina e princípios aceitos universalmente. A importante atitude crítica diante do conhecimento, tão desejada nos nossos dias, necessita do seu retorno ao sujeito que se reconhece nas suas atitudes e decisões. Parece que Kant entendeu bem esse caráter necessário do processo educativo. Na ausência de um princípio unificador, somente agregamos elementos da cultura e conteúdos a serem memorizados, dispensáveis e inúteis e, em muitos casos, prejudiciais. Esse processo educativo, que denomino aqui auto-reflexivo, somente pode ser proposto na aceitação da pessoa como sujeito, na sua constituição incondicional a partir da liberdade. A ausência da Ética no processo de formação do sujeito finda por romper a fundamental autonomia do sujeito enquanto ser que determina suas ações.
     Considerando positivamente o papel do ensino da Filosofia no Ensino Médio, algumas situações devem ser superadas. Torna-se premente o diálogo que aproxime as Instituições de Ensino Superior e a Escola, no primeiro momento, para entender o que realmente se deseja quanto à formação do professor filósofo e qual o seu perfil. Desse diálogo, a Universidade não pode esquivar-se, pois é importante formadora de professores filósofos, e a Escola não pode ser dispensada desse diálogo por ser a unidade formadora e o lugar de atuação privilegiada dos profissionais da Filosofia. Há uma especificidade nessa discussão que deve ser retomada com vistas a um diálogo permanente e criativo, a saber, a construção da cidadania e da sociedade pelo conhecimento e pela ação. A lacuna existente, entre esses dois ambientes, torna a Filosofia na escola sempre mais enfadonha e insuportável, principalmente para os alunos e a formação do professor filósofo, cada vez mais distante das questões de ensino na sua própria instituição.
      O desafio que se apresenta a nós é a formação do professor filósofo, pois implica habilidades, formação cultural sólida, metodologia, domínio de conteúdos, compromisso ético, etc. Para finalizar, desde seus primórdios, a Filosofia apresentou-se como atividade, como pensar, como reflexão e argumentação. Como tal é aberta e não permite uma afirmação dogmática definitiva daquilo que é. Essa atitude permanece como sendo a mais digna da humanidade e tarefa insubstituível da Escola, enquanto lugar privilegiado da formação do ser humano e do seu destino. Estamos sempre renovando esse desejo de sabedoria, do filósofo como o amigo da sabedoria, mesmo que não possamos dar uma definição da Filosofia que responda a essas questões: “uma tal filosofia assinalaria o fim da atividade filosófica e a morte da própria Filosofia”. (Caygill, 2000, p. 152). Podemos, justamente por essa abertura, indicar caminhos para que a Filosofia possa desempenhar o seu importante papel na Educação.
Mari S Alexandre
Enviado por Mari S Alexandre em 24/04/2015
Código do texto: T5218648
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