O HAIKAI - ESBOÇOS CONCEITUAL E HISTÓRICO.

ESBOÇOS CONCEITUAL E HISTÓRICO. MILLÔR FERNANDES E OS BAIANOS AROLDO RAMOS, ELZA MÉLO E JOÃO BOSCO SOARES DOS SANTOS; E A CARIOCA SÍLVIA MERCADANTE.

DO LIVRO TOCATAS. ENSAIO JÁ PUBLICADO NA REVISTA CADERNOS DE LITERATURA Nº 18, 2011,

EDITADA PELO GAC-BA, FUNDAÇÃO JOÃO FERNANDES DA CUNHA, LARGO DO CAMPO GRANDE, 8,

SALVADOR - BAHIA.

O HAIKAI aflorou no Japão. Dir-se-ia que é um poema de forma fixa, sem exigência de rima original. Foi o japonês JINSZKIKIRO MATSOU BASHÔ, filho de samurai (1644-1694), que, ainda no século XVII, no Japão, elevou o HAIKAI ao extremo da perfeição poética.

O primeiro HAIKAI de BASHÔ, data de 1662, quando tinha 18 anos.

Ei-lo: Haru ya koshi - Toshi ya yukiken - Kotsugomori

Traduzido: Chegou a primavera - Ou se foi o ano velho - Véspera do ano novo?

Em homenagem ao amigo Sengin, que morreu inesperadamente, BASHÔ compôs: Samazama no - Koto omoidasu - Sakura ka na

Traduzido: Quantas memórias - Me trazem à mente - Cerejeiras em flor

O livro Trilha Estreita ao Confim, Editora Iluminura, 2008, em tradução de Kimi Takenaka e Alberto Marsicano, assim descreve e estrutura o HAIKAI:

O HAIKAI é o olho do furacão, o profundo toque de um gongo de bronze, o irisdescente relâmpago que inesperadamente reluz na escuridão da noite. É o satori, o despertar zen que repentinamente surge no caminho. Deve conter pelo menos uma palavra que faça referência a uma estação do ano. Esta relação pode ser transmitida por expressões como “vento de outono”, “fim de verão”, “lua cheia de outono” ou indiretamente simbolizada através de fenômenos naturais ocorrentes durante as respectivas estações.

Eis mais alguns belos HAIKAIS extraídos daquele livro:

Ao sol da manhã - Uma gota de orvalho - Precioso diamante.

Em profundo silêncio - O menino, a cotovia - O branco crisântemo.

Murmúrio – Marmóreo - Do mar.

Solidão - Após os fogos de artifício - Uma estrela cadente!

Finda a viagem - Meus olhos rodopiam - Pelo seco descampado.

É possível que o HAIKAI tenha chegado ao Ocidente em 1905, em tradução francesa de Julian Vacance. Em 1920 a revista Nouvelle Revue Française publicou:

Le ciel noir - Lês nez rouges - Et La neige.

Tradução: O céu negro - Os narizes rubros - E a neve.

Um pouquinho antes, na Inglaterra, Oscar Wilde, em 1900, chateado com o papel de parede que jazia em seu quarto, escreveu:

Este papel de parede - Ou ele se vai - Ou me vou eu.

Em 1910 foi publicado um ensaio sobre BASHÔ. Em 1913, Ezra Pound, inspirado em BASHÔ, escreveu: In a Station of the Metro.

O beat errante Jack Kerouac, na década de 60, escreveu:

Pássaros cantando - No escuro - Chuvoso amanhecer.

Rainer Maria Rilk, em 1920, em alemão, escreveu:

Pequenas mariposas oscilam sinistramente pelo bosque

Morrem hoje à noite e jamais saberão

Que não era primavera.

Na Grécia, chega em 1929, e com a influência da concisa poesia de Safo. Ei-lo:

Escreve - A tinta se esvai - O mar se expande

Na Itália, surge pela voz do poeta Giuseppe Ungagaretti. Na Índia vem pela bela voz de Rabindranath Tagore, assim:

O pólen da primavera - Trouxe ao templo as flores - Que outrora lhe ofertaram.

Na Espanha, antes de Frederico Garcia Lorca (1898-1936) que reluziu com:

A noite esporeia - Suas negras ancas - Cravando-se estrelas,

Luis de Gôngora (1561-1627), já deveria ter iluminado os céus da Europa com este HAIKAI: Solo es real la vida - Solo es real - La muerte.

No México José Juan Tablada, poeta e diplomata, assim brilhou, em 1919:

Peixes voadores - Ao golpe do ouro sola - Estalam em farpas o vidro do mar.

E o nosso querido e admirável argentino Jorge Luis Borges, registra:

Em vão espero - As desintegrações e os símbolos - Que precedem os sonhos.

Em Portugal, Camilo Pessanha, que viveu e estudou cultura e literatura oriental em Macau (ex-colônia portuguesa na China), assim escreveu:

A hora do jardim - O aroma de jasmim - A onda do luar.

No Brasil, o poeta maranhense Sousândrade (1933-1902), assim se expressou:

Num relâmpago - O tigre - Atrás da corça.

Mas foi Afrânio Peixoto que, no Prefácio do seu livro Trovas Brasileiras, apresentou o HAIKAI ao Brasil, dessa forma:

Uma pétala caída - Que torna a seu ramo - Ah! É uma borboleta.

Depois seguiram-lhes: Osvaldo de Andrade, Guilerme de Almeida, Murilo Mendes, Drumond, Haroldo de Campos, Guimarães Rosa, Dalton Trevisan e Leminsk com: Nuvens brancas – Passam - Em brancas nuvens.

No Japão, porque se derivou do clássico Tanka, poema japonês de 31 sílabas, os poetas geraram o costume de fazer o HAIKAI coletivamente. E esses versos coletivos eram chamados de RENKA. Com o decorrer do tempo, a primeira parte do TANKA, de 5, 7 e 5 sílabas, tornou-se independente. Eram poemas curtos, satíricos e repletos de jogos de palavras. Ficaram famosos. Tinham três versos, somando 5, 7 e 5 pés métricos, respectivamente, e podiam resumir uma impressão, um conceito, um drama, um poema, às vezes de modo profundo, mas, na maioria, provocavam delícias poéticas.

Abrasileirado, o HAIKAI tende a concentrar em um reduzido espaço uma idéia ou pensamento, poético ou filosófico, ou os dois, simultaneamente. Pode ser impessoal, não-subjetivo, sem intelectualismo, sem metáforas. Mas o seu tempo é sempre o presente.

Millôr Fernandes, o grande escritor brasileiro, autor de tantos e muitos bons livros, e que, por muitos anos, brilhou na falecida Revista o Cruzeiro, com sua seção PIF-PAF, em seu HAI-KAIS, L&PM POCKET, 2007, registra que o Haikai é um pequeno poema japonês composto de três versos, dois de cinco sílabas e um – o segundo – de sete. No original não tem rima, que geralmente lhe é acrescentada nas traduções ocidentais. A época do seu aparecimento é controversa e sua popularização deu-se no século XVII, com a produção de JINSKIKIRO MATSUO BASHÔ, simbolista inspirado profundamente em impressões naturais (sobretudo paisagísticas) e adepto do Zen. E transcreve dois dos HAIKAIS deste simbolista:

A nuvem atenua – o cansaço das pessoas – olharem a lua.

Em cima da neve – o corvo esta manhã – pousou bem de leve.

E prossegue: contudo há quem afirme que BASHÔ foi ultrapassado, tanto em popularidade quanto em inspiração, pelo poeta do século posterior (XVIII) YATARO KOBAYASHI (ISSA), com HAIKAIS como estes:

Vem cá passarinho – e vamos brincar nós dois – que não temos ninho.

Bem hospitaleiro – na entrada principal – está o salgueiro.

Apesar de sua forma frágil, quase volátil, dependendo da imagística mais do que qualquer outra poesia, uma implosão, não uma explicitação, o HAIKAI é, contudo, uma forma fundamentalmente popular e, inúmeras vezes, humorística, no mais metafísico sentido da palavra:

Roubaram a carteira – do imbecil que olhava – a cerejeira.

Eu vi meu retrato – bem no fundo do lago – diz o olhar do pato.

E a seguir, alguns HAIKAIS do Millôr Fernandes:

Olha – entre um pingo e outro – a chuva não molha.

Morta, no chão – a sombra – é um a comparação.

No aeroporto, puxa-sacos - se despedem – dos velhacos.

A palmeira e sua palma – ondulam o ideal – da calma.

Soluço e fuço – verso e reverso – tá tudo ruço.

Nem grilo, grito, ou galope – no silêncio imenso – uma rã mergulha – Plop!

Passeio aflito; - tantos amigos – já no granito.

Esnobar – é exigir café fervendo – e deixar esfriar.

Envelhecendo, cheio de saudade – ando na multidão – sempre na mesma idade.

É tudo natural – a galinha, poedeira; - o galo, teatral.

Meu sonho é mixo; - ter a felicidade – que outros põe no lixo.

Com que grandeza – ele se elevou – às maiores baixezas.

Probleminhas terrenos – quem vive mais – morre menos?

Pensa o outro lado: - só quem tem fama – é difamado.

O pato, menina, - é um animal – com buzina.

Tão pequeno o piguimeu; - nem a mãe sabe – que ele nasceu.

Aroldo Ramos, a quem tive a alegria de conhecer, autor de excelentes HAIKAIS e já é falecido, nasceu em Condeúba – fruto de árvore retorcida, em seu excelente livro - Faces da Mesma Canção, confessa que buscou produzir seus cânticos poéticos seguindo o rigor formal do HAIKAI. Mas, quanto ao conteúdo e às mensagens, considera ser impossível penetrar e poetar a alma e com a alma haikaina japonesa e, menos ainda, no mesmo clima e com o mesmo sabor poético do SOL NASCENTE. E, convicto de que foi preciso, contido e pequeno, buscou expressar o seu cantar liricamente belo, em versos de apenas 17 pés métricos. E, com as belezas poéticas do seu Faces da Mesma Canção, deslumbra-nos e espraia doçuras musicais sutis, quase emitindo cores e sentimentos, elevando os seus HAIKAIS para muito além dos horizontes audíveis.

Eis alguns deles:

As foices das asas - no céu azul de mormaço - ceifam as distâncias.

Vi a primavera - ir passando alegre e solta. - E eu no meu outono.

Tobogã dos ventos - há desperdício de verde - nos canaviais.

A noite em labuta - enquanto transpira orvalho - planta pirilampos.

As garças, em bando, - brancas asas destendidas, - são lenços que choram.

Nos grotões da vida - vão ficando aqui e ali - pedaços de rios.

No lombo do rio - peixes, às vezes, não sabem - se nada, se voam.

Um raio de sol - a vidraça atravessando - grita em meu olhar.

No pó dos caminhos - ficando vão os vestígios - das quimeras mortas.

Não as tente nunca. - Ora vãs, ora terríveis - palavras são vespas.

Uma pedra dorme - no fundo do mar revolto - seu sono de pedra.

O tempo, implacável - bota neve nos cabelos - e mapas na face.

Vou colher cantigas - em outra morada - As minhas já murcharam todas.

Outra “haikaísta” excelente e muito amiga nossa, que alguns dos meus confrades trovadores tiveram a oportunidade de conhecer, é a carioca Sylvia Mercandante, que costuma visitar Salvador e participar da reuniões do grupo cultural GAC-Ba e da UBT, União Brasileira de Trovadores. Publicou alguns dos seus HAIKAIS em dois dos seus livros, no Rio de Janeiro:

Sylvia Mercadante Alves da Cunha é natural do Rio de Janeiro, onde concluiu o curso de Magistério, na Escola Normal Instituto de Educação em 1966. Exerceu vários cargos de magistério, inclusive ministrando aulas e cursos em diversas escolas do Rio de Janeiro. Em 1995 lançou na Bienal do Livro do RJ, Palavras Transformadas, Ed. Litteris. Publicou crônicas e poesias no Brasil e no exterior e outros livros.

Seus HAIKAIS são mais sentenças, conselhos e reflexões, quase sempre providos de rimas. Alguns são poeticamente tocantes e mais que belos.

Vejam alguns deles:

Pingo inusitado... - Imagem de líquido lacerado - atravessando minha solidão.

Pouse o seu olhar - sobre alguém que precise.- E se enterneça.

Alegre-se com a vida; - nunca a deixe fugir. - Não esmoreça.

Despreze a má idéia - o mau conselho a insensatez.- Se esclareça.

A lágrima já vem com tempero salgado - para poder cicatrizar - sentimento exacerbado.

Reparemos em nossa fala: - É límpida, generosa e alegre? - Ou contida, medida, amarrada?

Uma choupana a me abrigar. - Uma rede a me embalar - absorta fico, assim, a cismar.

As estrelas pequeninas - mergulham nas águas soturnas. - E faíscam em blue!...

Outros encerram, de modo maravilhoso, mais de uma sentença, como:

Linda pintura (nos céus se inicia). - A natureza cria. - É dia.

A baiana ELZA DE MÉLO, escritora, poeta, nobre confreira, autora de várias obras poéticas e exímia trovadora, também é uma excelente haikaísta, como provam esses seus HAIKAIS:

Passa a brisa amena - despetala uma rosa franzina - pequena.

O vento ligeiro - sacudiu impiedoso - o meu jardineiro.

O pássaro canta - e a sua melodia - a todos encanta.

E este autor, também já se adentrou, audacioso, com e pelo universo haikaiano, com estas tentativa, mais abrasileiradas e mais próximas da trova:

Vida é redemoinho - em difícil caminho - de mistério e indagação.

Lá vem o barco voltando - pelas águas resvalando - com muitas novas prá cá.

Vem vindo o cavalo andando - pela estrada trotando - com o cavaleiro de cá.

Dura pouco o meu sonho - e outra vez de pé me ponho - prá realidade enfrentar.

Voltando à realidade - meu universo de saudade - restringe-se ao que me restou.

Desenganos são - só folhas que se soltam - quando em quando.

O que é preciso fazer - logo ao amanhecer - para melhor se ser?

Logo ao anoitecer - busque na noite tranqüila - toda a razão de viver.

O que devo dizer - depois de agradecer - por tão feliz ser?

Coloque em todo ser - a força do bem-querer - como centelha e flor.

E OS HAIKAIS NATALINOS deste autor:

Natal é o amor com alegria - afeto com magia - paz em reflexão.

Natal é DEUS abraçando o mundo - com SEU sentimento profundo - repleto de compaixão

Natal é a beleza da fé - colocando-nos de pé - gargalhando de emoção.

Natal é nossa vontade firme - robusta e inflexível - repleta de afeição.

Natal é, da vida, a parada - aniversário da morada - que chamamos coração.

Natal é o belo instante da vida - primavera preferida - vivo encanto da paixão.

Natal é a energia da vida - a volta, o ficar, a partida - da alma em ressurreição.

Natal, somos nós enternecidos - abraçados comovidos - celebrando a união.

Natal é o cantar da vida - a melodia querida - que eterniza a gratidão.

Natal é o perfume do universo - com toda beleza do verso - poesia do coração.

Como percebemos, o HAIKAI, abrasileirado, pode ser um pequeno conto; um aforismo; uma curta sentença; algumas sentenças, formando ou não um aforismo; uma pequena poesia; ou, ainda, um retrato escrito de um instante visto, sentido ou imaginado com os olhos e o coração da emoção, mas sempre com encantos e vibrações poéticas, mesmo que não contenha rimas rígidas ou metáforas.

Concluindo, ouso reiterar o que já disseram e afirmaram:

O HAIKAI talvez seja uma belíssima versão oriental da nossa TROVA; ou vice-versa?.

Fontes: BASHO, Matsou, Trilha Estreita ao Confim, Editora Iluminuras, 2008;

FERNANDES, Millôr, HAI-KAIS, Editora L&PM, 2007.

MÉLO, Elza, Fragmentos do meu ser, Editora do Autor.

MERCADANTE, Silvia, Palavras Transformadas, Ed. Litteris.

RAMOS, Aroldo Pereira, Faces da Mesma Canção, Selo Editorial, 2003

SANTOS, João Bosco Soares dos Santos, Cantares e Tocatas, ambos editados pelo Autor.

João Bosco Soares
Enviado por João Bosco Soares em 16/03/2015
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