O Anúncio
O ANÚNCIO
Certo dia, em um coletivo em São Paulo, vi um anúncio que me chamou a atenção. Nele estava a imagem de um homem que dizia: “Sou vendedor e garanto, andar de ônibus é um bom negócio. Você paga um preço justo, recebe um bom serviço e é tratado como cliente.”
Diante dessa “magnífica” afirmação fui tomado por um sentimento árduo de revolta, mas não uma revolta daquelas cheias de ira cada vez mais constantes na vida dos nativos de cidade grande, acostumados —mas sem se acostumar— a conviverem com as mentiras, tragédias, injustiças, impunidade. Essas coisas básicas da nossa realidade que todo ser humano que se preze contribui com sua revolta quotidiana, soltando daquelas frases feitas que aqui podemos chamar de 4F´s (famosas frases de frustração e fobia), como por exemplo: “que absurdo”; “o quê que é isso”; “onde vamos parar?”; “que mundo nós estamos?”; etc.
Não, não é deste tipo de revolta que eu falo, mas daquela revolta irônica, aquela do tipo "rir para não chorar".
O mais provável é que a intenção do anunciante fosse convencer aos supostos clientes que naquele exato momento, utilizando-se do transporte, estavam fazendo um bom negócio. No meu caso, isso foi tudo que não consegui pensar.
A primeira coisa que me veio à cabeça foi: quanto aquele homem ganhou para falar isso ou apenas expor sua imagem ali?
Depois só consegui lembrar dos ônibus lotados que já embarquei, de quantas vezes criei “raízes” nos pontos esperando o ônibus que a muito tarda e as vezes falha; das expressões faciais de muitos motoristas e cobradores diante de nós - clientes- enquanto arrancam com o veículo quando ainda estamos embarcando nele ou quando nos olham —com aquele olhar vago— ficando para traz no ponto de ônibus com nossas raízes e com o braço estendido fazendo sinal sem sucesso. Ignorados e atrasados ficam os que protagonizam - clientes - essa triste história, enquanto seus coadjuvantes - cônjuges, patrões, etc - se preocupam e desconfiam. “Que mundo nós estamos?” ops!
Não esqueçamos que o anúncio também dizia que pagamos um preço justo. O único problema aqui é o de ponto de vista, afinal, justo para quem? Se for para o cidadão assalariado que depende deste transporte, a única coisa “justa” é o seu orçamento mensal, se é que me entende!
Também não esqueçamos que o autor da afirmação é um vendedor, ou seja, pessoa experiente em ludibriar e convencer os clientes.
Convenhamos, o objetivo do anúncio talvez fosse apenas para convencer as pessoas a continuarem fazendo uso do transporte coletivo e evitar que usem seus próprios carros, ajudando assim na questão do trânsito de São Paulo. Olhando por este lado, a intenção até que poderia ser boa, mas o que adiantaria se os ônibus já circulam lotados além do limite? Acredito que não deveriam tentar convencer com anúncios e sim com boas soluções.
Mas como resolver a questão dos ônibus lotados se nem o trânsito é capaz de absorver mais ônibus? Pense, como os países desenvolvidos conseguem? Se é que conseguem. Seria transporte subterrâneo? Infraestrutura? Compromisso sério das autoridades responsáveis? A própria população?
Como todos conhecemos o nosso país, talvez a intenção do anunciante fosse apenas melhorar o estado de espírito dos clientes, afinal, acreditar que fazemos um bom negócio nos deixa orgulhosos, em paz.
Até certo ponto é louvável a intenção dos responsáveis pelo anúncio, afinal, muitas pessoas não tem nem escolha. O que parece é que estão acrescentando mais uma na relação de 4F´s, a frase: “fazer o quê?”. O problema é que isso só serve para dar mais espaço para injustiças. Por isso devemos pensar sempre em buscar e exigir melhorias, senão os anúncios passarão a conter frases ao estilo malufista (rouba mas faz), por exemplo: “Tá ruim, mas podia ser pior” ou “É o que tem. Se não gosta, vá a pé”.