O Grito dos Hipócritas
Eis que no meio da praça, ouve-se a voz a bradar por justiça. Serpenteando por entre todos que ali estão, ninguém, mesmo que padecesse de surdez, não poderia afirmar que nada ouvia. A potente voz, como se retumbasse todos os sinos da Catedral, reverberava para além daquele espaço tomado pela multidão. A indignação, somada a um potente brado que se misturava à autoridade que tamanha performance agregava, não levantava dúvidas de que algo tinha que ser feito. Tudo era lindo, tudo era untado com o mais puro dos sentimentos, tudo, que dali se ouvia, provinha de uma certeza: que daquele que falava, se preciso fosse, e considerando que a “verdade” que seus lábios pronunciavam, ninguém, absolutamente ninguém, colocaria em suspeição a premência de que algo tinha que ser feito. A comunhão de desejos sucateados em nome de acordos celebrados às escondidas, e ainda, a potente voz, amparada por garantias que nunca mais seriam rescindidas, a todos que da praça ouviam, faziam acender no espírito de cada um a crença inconteste no que se ouvia. Tudo se transformava, tudo despertava aquela multidão para algo há muito adormecido. Eram a certeza e a verdade estampadas em cada rosto, em cada olhar, em cada ruga que apareceram antes do tempo, provocadas por anos de sofrimento. Então, ali, naquele espaço donde só se viam a silhueta e os gestos, porém, não desmereciam o autor daquelas palavras Não se poderia negar: o grande líder sabia hipnotizar a massa, mesmo que para poucos, bem poucos, o grande líder não encarnava a vivência daqueles que ele julga representar.
Assim, desde que a urbe necessita de ídolos e heróis, não se pode afirmar que todos os avanços são obra exclusiva destes. Bem ao contrário: na história não faltam exemplos de que, uma vez que o líder se projeta a tal posição, seu oposto, ou seja, aquele que lhe deu causa, não perde tempo em lhe oferecer posto ou posição de destaque. A isso se dá o nome de cooptação. Porém, querer afirmar que todos se dobram a esse projeto, seria negar que há líderes que não se vendem, pois, o que os levou a tal posição, foi menos a necessidade de se projetar, e dai tirar os dividendos correspondentes da nova posição, e mais a crença de que o objetivo coletivo deve ser o único caminho a ser seguido.
O mesmo acontece noutras praias. Não há diferença nesses líderes de massa e aqueles que se dedicam às causas mais gerais da sociedade. Esses tem seu campo próprio, e por isso mesmo, menos sujeitos às investidas do povo, pelo menos no dia a dia, ao contrário daquele que desenvolve sua atividade em ações diretamente ligadas a uma determinada categoria profissional. O líder político, isto é, aquele que desempenha sua performance num partido e ou no parlamento, exatamente por estar circunscrito a esse pequeno universo, tem a seu favor o afastamento natural das massas. Essas só são chamadas, pelo político, em épocas de eleição, afinal, visitar o rebanho e prometer-lhe o que lhe falta, é sua melhor e única ferramenta de convencimento. O líder político é tão hipócrita que basta que uma crise se instale, ele e seu partido, que durante anos esteve às voltas com o governante, seja em qual governo fosse, não se ruboriza em dizer que sairá da base daquele governante em nome de certa moralidade que ele nunca questionou. E, pior, dá sinais que apoiará saídas extra-institucionais, ressuscitando medidas noutros tempos levadas à cabo e que deixaram marcas indeléveis na vida da nação.
Não menos importante, e por isso mesmo merecedor do mesmo exame, o líder religioso, apoiado numa determinada entidade divina, não pode, e não deve, contrariar os anseios de seus fiéis. Este se diferencia dos demais, somente porque sua plataforma de atuação não é por ele, e nem por seus seguidores, determinada segundo seus valores. Pode-se dizer que essa já vem desde muito antes, pois, justifica-se por uma tradição e também por atributos que não exigem comprovação; sua base de sustentação orienta-se na crença e na disposição de trazer para si todas as convocações necessárias para que a consagração se estabeleça.
No entanto, há algo em que os três tipos de líder se assemelham. O líder de uma categoria, para que seu projeto tenha sucesso, não precisa de outra estratégia senão saber fazer a ponte entre o que “seus representados” necessitam e ao mesmo tempo, sem que suas intenções o denunciem, saber demandá-la ao patrão sem pôr em risco seu capital. E, ainda, para que sua representatividade se mantenha e se justifique sempre necessária, esse líder deve saber falar a mesma linguagem de seus representados, mesmo que para isso, lhe custe, e isso faz parte de toda sua performance, ser taxado de demagogo e ou entreguista. Saber lidar com essas “dicotomias” sem se deixar abater, é garantir por muito tempo sua atuação. Esse líder nunca é forjado na luta, ele se forja numa espécie de oportunismo, ou seja, aparece em determinado momento de um movimento paredista e ali, quando todo seu projeto, ao menos aquele que lhe garante estabilidade financeira já estiver assegurado, ele, que não é nenhum alienado, apenas assim se manteve o tempo necessário para contemplar-se dos ganhos de determinado cargo, vê no movimento paredista a oportunidade de atuar. E consegue, pois, sabe lidar com as palavras e os anseios daqueles que ele ignorava.
O líder político, em linhas gerais, não deferência do líder de uma determinada categoria. A única, e talvez, a que lhe garanta certa tranquilidade, se dá exatamente porque sua atuação se verifica noutro espaço, e cujo objeto de seu empenho seja indeterminado, pois, sendo a política sua espada e seu escudo, o objeto de seu empenho se encontra disseminado por toda a sociedade sob as mais variadas convicções e interesses em jogo. Porém, no bojo desse embate sempre estará o Estado, pois, mesmo que a demanda tenha por princípio a vida privada das pessoas, é no interesse do público que o Estado sempre justificará sua eficiência e ou demora em encontrar a solução apresentada.
O líder religioso, nesse aspecto não passa pelas mesmas indiciocrasias dos outros dois, pois, a demanda que se lhe apresenta não está diretamente relacionada com as demandas dos demais. Seu campo de atuação se insere no campo da metafísica, e por isso, isento de constatações empíricas, o que lhe garante certa acomodação no que se refere em prestar contas, ao menos no plano terreno, das suas ações e ou contradições.
Enfim, tendo nos chegado em responder, ou melhor, denunciar o que é, e onde se encontra esse grito dos hipócritas, não nos isentamos de sabermos que nem tudo o que se acaba de ler, seja uma verdade absoluta. Sabemos que discordâncias virão, sabemos que eventualmente rosnem em nossa direção, mas, não nos furtaremos em dizer que o gritos dos hipócritas se apresenta tão logo seus baluartes saem às ruas a gritarem por mudanças que, quando as puderam encampar, preferiram o silêncio em nome de interesses e ou prêmios que lhe garantiram o conforto. Mas que, como isso já não está em risco, saem às ruas para gritarem por posturas que noutros tempos se recusaram assumir porque o trono, onde assentavam-se com seus “iguais”, era mais atrativo.