Ensaios críticos ao atual modelo nacional de transferência de recursos da União para ações de segurança pública
Não é de hoje que o modelo orçamentário nacional que serve à Segurança Pública deveria ter sido modernizado. É emergente se estabelecer um sistema integrado de segurança pública, com provimento federal de recursos públicos de maneira programática. O modelo existente já serviu ao seu propósito. Um novo paradigma deve ser inaugurado, o qual, além de isonômico, deve se manter alheio a qualquer questão de ordem não técnica ou que atente contra o interesse público.
Embora seja do desconhecimento da maioria da população, um projeto de lei transita pela Câmara Federal (PL nº 3734/2012), cujo texto "disciplina a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, nos termos do § 7º do art. 144 da Constituição, institui o Sistema Único de Segurança Pública - SUSP, dispõe sobre a segurança cidadã, e dá outras providências" substituiu todos os demais PLs (4) nesse mesmo sentido naquela Casa de Leis. A redação do referido projeto passou a ser construída em balizas "pronascianas" (com o advento da Lei Federal nº 11.530/07) e, depois de audiências e debates com os órgãos de segurança e com a sociedade, através da Primeira Conferência Nacional de Segurança Pública (CONSEG), foi apresentado em Abril de 2014 à Câmara Federal. Contudo, sua última movimentação foi somente em 1º de Dezembro do mesmo ano. Diante das outras prioridades “mais prioritárias”, já se foram dois anos e nenhum espasmo no trâmite do PL3734.
Quanto ao seu teor, no que concerne aos financiamentos públicos da atividade estatal de segurança pública, esse PL pouco esclarece sobre qual é a sistemática de transferência de recursos do Tesouro Nacional para os entes federados. Tão somente cita como dever do Ministério da Justiça, no inciso I, do Art. 12, apoiar os programas de aparelhamento e modernização dos órgãos de segurança pública do País. Primeiramente, cabe ressaltar que são órgãos de segurança pública “do País” a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Ferroviária Federal. E, mais diretamente, no Art. 14, indicando que "a aplicação de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública - FNSP deve respeitar a competência constitucional dos órgãos que integram o SUSP e critérios científicos que contemplem os aspectos geográficos, populacionais e sócio-econômicos dos entes federados.” Complementado pelo Art. 15, que diz que “as aquisições de bens e serviços para os órgãos integrantes do SUSP terão por objetivo a eficácia de suas atividades e obedecerão a critérios técnicos de qualidade, modernidade, eficiência e resistência, observadas as normas de licitação e contratos.”
Logicamente, se espera que, na regulamentação a posteriori, haja maior esclarecimento quanto a esses termos. Atualmente, o Decreto Federal nº 6.170/07 regula a transferência de recursos da União para Estados, Municípios e entidades do terceiro setor. Vale lembrar que o Fundo Nacional de Segurança Pública é o cofre que financia ações nos estados e municípios, porém, depende, para isso, de projetos (convênios ou contratos de repasse – no caso de obras) previamente elaborados pelos entes interessados, mesmo sendo eles oriundos de recursos liberados por emendas parlamentares.
São habilitados a apresentar propostas no âmbito do FNSP (SENASP/MJ) os entes da Administração Pública dos Estados, Distrito Federal e Municípios, inclusive em forma consorciada. A dinâmica é a seguinte: O MJ elabora edital para selecionar propostas de convênios para desenvolvimento de um determinado objeto padronizado, definindo então os critérios de seleção técnica e documental para poder selecionar os contemplados com os recursos. Além de caracterizar a localidade, o cenário social, diagnosticar o problema, indicar o planejamento de como pretende tratá-lo, definir as metas a atingir e os meios de aferição de resultados, a proposta de convênio deve cumprir com diversos itens de pontuação definidos no dito Edital do órgão concedente para que tenha chances de sair entre os vitoriosos. Esses critérios se referem tanto ao ente interessado (proponente), como também sobre os programas e ações que este desenvolve no âmbito da segurança pública em sua localidade. O processo seletivo, invariavelmente, é bem concorrido. No caso de municípios, quando se abrem editais a concorrência é excepcional, normalmente, mais de 350 propostas para uma seleção de, aproximadamente, 20 cidades (quando muito). No caso dos Estados, a concorrência não é tão grande, porém, também existe e pode ser definitiva para obtenção dos recursos, pois, se os critérios e prazos não forem cumpridos, não há transferência. O jargão da “caneta mais poderosa que a arma” nos conduz a pensar que a diferença entre a vida e a morte das pessoas sucede de um crivo meramente burocrático positivista.
Em suma, o mais alto direito dentre os fundamentais que é o direito à vida, cabalmente tutelada pela Constituição Federal, cujo da sua exegese se depreende a maior razão de ser e dever dos órgãos de segurança pública, deve se submeter aos critérios objetivos e subjetivos de análise feitos por servidores do MJ. Usualmente, esses servidores já estão atarefados com suas rotinas funcionais e acabam tendo de se entrincheirar entre as propostas sob sua responsabilidade e correm contra curtos prazos para alimentar o sistema federal de Convênio (SICONV). Isso mesmo! Embora organizadas, não existem “linhas de produção” de análise de propostas de convênios. Elas são distribuídas, às pilhas, aos diversos analistas que, num esforço hercúleo e até sobrenatural, fazem a revisão e emitem pareceres de aceitação ou não das propostas e os respectivos lançamentos em sistema.
O problema é que os Estados e, também, Municípios (especialmente os do interior) encontram muitas dificuldades para produzir tais documentos, na forma e com o conteúdo que são exigidos pelos editais de convênios. Aliás, estão mais ocupados com suas tarefas diárias, no caso da segurança pública, combatendo o crime, do que disponíveis para sentar à escrivaninha e transcrever suas necessidades em palavras adequadas e calcular os valores mais precisos, numa peça que convença aos "técnicos" de que os recursos são necessários. Alguém tem alguma dúvida, diante do cenário nacional de cometimento de crimes, de que esses recursos são necessários? Não fosse o bastante, nesse sistema se exige que tudo seja devidamente previa e completamente descrito em termos de referência, que devem ser acompanhados minimamente de três orçamentos. Isso gera um grande obstáculo, pois, há muita dificuldade para Municípios menores de encontrar fornecedores legalmente estabelecidos, regulares com suas obrigações legais e que desejem oferecer tais orçamentos, o que dá margem para desvios não tolerados pela legislação.
Diferentemente da Saúde (SUS), da Educação (FNDE) e, mais recentemente, da Assistência Social (SUAS), onde os recursos são descentralizados para execução local, com definição de metas e prestação de contas a órgão federal, a Segurança Pública, que goza do especial status de direito garantido pelo Artigo 5º da CF/88, não tem a mesma possiblidade. Destarte, para que possa obter maior eficácia na entrega de seus “produtos”, ou seja, êxito na economia de vidas, redução das lesões físicas, psicológicas, bem como, patrimoniais e ambientais, deve estar entre os “vencedores” de um processo burocrático selecionador. Não há como deixar de lembrar o porquê numa paráfrase à máxima malthusiana de que os recursos são limitados e as necessidades ilimitadas, ou seja, muita violência e pouco dinheiro para dela prevenir-se, bem como, para se capacitar para poder enfrentá-la. Enfim, este sistema se encontra esgotado, como também não atende ao atual interesse público por mais investimento em segurança pública, em especial nos locais onde a violência tem sido endêmica.
Uma remodelagem geral carece ser feita. Transferências fundo a fundo seria a melhor alternativa. Os Municípios e Estados deveriam estabelecer seus fundos específicos para receber recursos programáticos do FNSP, a exemplo da Saúde, Educação e Assistência Social. Poderiam ainda ser realizados, pelo Governo Federal, repasses com base em critérios sim, porém, estes devem ser discutidos e aceitos previamente pelos entes. Por exemplo, locais onde há grande incidência de crimes contra a vida podem ser beneficiados em programas destinados à equipar os IMLs e as Polícias Científicas. Também, nos Estados onde o crime organizado é mais notado é necessário investir mais em tecnologias de investigação, capacitação policial, infraestrutura, sistema penitenciário e etc. Além disso, é hora de o Governo Federal juntamente com os recursos para aquisição de capital (material permanente) sejam acompanhados de verbas de custeio (consumo e serviços) para manter o bem adquirido com as transferências. Não é aceitável o contribuinte ver viaturas paradas por falta de combustível, manutenção, muito menos policiais com munições fora do prazo de validade ou coisas do gênero ou, numa pior hipótese, deixar de atender uma ocorrência contra a vida por falta do mínimo de estrutura para sua resposta.
Emprestando termos da medicina, é possível afirmar que a expertise do governo estadual, a partir do conhecimento apurado das próprias peculiaridades, lhe permitirá uma intervenção “cirúrgica” contra o crime, na medida em que ele se apresenta com mais frequência, podendo ser redirecionado conforme a necessidade; mais adentro, os municípios podem investir em ações preventivas primárias com mais intensidade e implantar ou qualificar suas guardas municipais para atuar dentro de suas competências, recentemente regulamentadas pela Lei Federal nº 13.022/14, a qual se silenciou quanto ao sustento financeiro para desempenho das atribuições elencadas para esses órgãos municipais. Neste caso, a possibilidade de haver a transferência fundo a fundo também seria uma forma de suprir tal carência.
Neste formato, o MJ poderia se manter no que diz respeito a Estados e Municípios numa posição estratégica primordial que é a de, além de emanar as diretrizes nacionais para a Segurança Pública, acompanhar as execuções locais, monitorando resultados e tecendo ajustes num ciclo de melhorias das políticas públicas voltadas para a segurança brasileira.