Sobre o conceito de materialismo e conservadorismo e sua relação com o liberalismo

Trecho de "Debates"

Inevitavelmente faz parte do espírito crítico buscar respostas e esclarecimentos sobre suas próprias dúvidas, lendo aqui “A mentalidade anticapitalista” de Mises e “O caminho da servidão” de Hayek, cheguei em alguns progressos relativos ao problema, primeiramente, quanto ao meu conceito de materialismo, fundamental nesse contexto.

O Materialismo

“Não raro surgem os descontentes que atacam o capitalismo pelo que denominam seu sórdido materialismo” , assim Mises começa um capítulo de seu livro , com efeito, pareço me encaixar como um descontente do materialismo capitalista, não é , porém, o que realmente acontece . Primeiramente , a análise de Mises , e eu discuto ela especialmente porque pode ser a base conceitual de muitos ao pensarem em materialismo no capitalismo, se refere a uma crítica estética e uma a crítica ao foco essencialmente de produção econômica do capitalismo, é nesse ponto que ele defende o capitalismo , o que é importante discernir, portanto, que não é esse materialismo que trato , e que concordo absolutamente com os pontos de Mises. O materialismo que trato se relaciona muito mais a um sentido filosófico, como disse em outra parte da discussão, com acordo geral , e creio que com o do próprio Mises “que a sociologia e a economia são impossíveis como ciência sem uma antropologia, e que esta é impossível sem uma sólida filosofia” o que trato é do materialismo que , negando a metafísica , não possibilita justamente essa sólida filosofia que , possibilitando a antropologia, possibilita uma compreensão correta da sociedade e da própria economia, realmente, o materialismo é um conceito muito próximo ao de positivismo, idealizado por Augusto Comte , que enxerga a ciência como substituta da primitiva metafísica. Porque isso não é uma crítica ao capitalismo? Pois o que digo é que o materialismo, que inclusive é , visto na história, nocivo a ordem social ( vide a morte de tantas pessoas em regimes onde o materialismo impera ) possui [ o capitalismo ] o materialismo como elemento alienígena , nocivo , não essencial , exógeno à sua ordem, ou seja é , inclusive , contrário ao seus princípios , uma dessas razões é que não é possível, por exemplo, fundar a ideia de livre arbítrio num universo completamente materialista , entre outros diversos pontos. Então você diz [ Felipe ] que , sendo o materialismo e o positivismo ateus , que o ateísmo é antiliberal ? Não , o ateísmo não é necessariamente antiliberal, pode sê-lo, o é na medida em que não entende a realidade e não respeita outros princípios liberais , como a tolerância, o que é importante é termos uma capacidade metafísica e filosófica sólida , é por ser anti-metafísico que ele acaba sendo antiliberal, eu defendo, antes de defender a religião ( e ela é necessária ,existente em toda sociedade natural e com efeitos positivos sobre a ordem humana, ainda que não tenha validade ontológica como nos dizem análises sociológicas e psicológicas ) uma possibilidade da metafísica. Uma outra razão é que o materialista não pode, de forma alguma , aceitar juízos metafísicos, enquanto um metafísico, religioso ou não, pode aceitar os juízos materiais da ciência, enfim, somente ele [ o metafísico ] seria apto para um diálogo pleno entre todos as opiniões possíveis em uma sociedade , se tens dúvidas quanto a relação harmoniosa entre a ciência e a religião, basta acompanharem , por exemplo, a coletânea de artigos de filósofos e cientistas no livro “Religião e Ciência” da editora Cambridge Express, e da posição da historiografia moderna quanto ao assunto.

O Conservadorismo

Para entender plenamente o que digo , e que ele não é contraditório com as doutrinas liberais em si, a partir da discussão com o texto de Mises, julgo interessante discutir aqui um trecho de Hayek , tratando do movimento conservador ( que se relaciona diretamente , por sua vez, com a visão metafísica ) nos diz ele:

“Mas o verdadeiro liberalismo distingue-se do conservadorismo e é perigoso confundi-los. Embora elemento necessário em toda sociedade estável , o conservadorismo não constitui , contudo , um programa social; em suas tendências paternalistas, nacionalistas , de adoração ao poder, ele com frequência se revela mais próximo do socialismo que do verdadeiro liberalismo; e , com suas propensões tradicionalistas , anti-intelectuais e frequentemente místicas , ele nunca, a não ser em curtos períodos de desilusão , desperta simpatia nos jovens e em todos os demais que julgam desejáveis algumas mudanças para que esse mundo se torne melhor. Por sua própria natureza, um movimento conservador tende a defender os privilégios já instituídos e a apoiar-se no poder governamental para protegê-los. A essência da posição liberal, pelo contrário, está na negação de todo o privilégio, se este é entendido em seu sentido próprio e original, de direitos que o estado concede e garante a alguns, e que não são acessíveis em iguais condições a outros.”

Concentro minha análise em 4 pontos fundamentais do trecho, que mostram as formas reais com as quais se relacionam o liberalismo e o conservadorismo, não sendo, como de antemão se costuma pensar, uma relação necessariamente excludente.

1- “O conservadorismo é necessário em toda sociedade estável” linha 2. A afirmação, realmente, pode ser interpretada em um sentido geral e restrito, a continuidade do texto nos leva à interpretação II , restrita :

I- Uma sociedade sem conservação nenhuma seria puro caos, uma situação que excede o estado de direito, que , em si, é uma conservação, seria uma situação relativa à uma guerra civil.

II- O conservadorismo , como se dá na realidade como movimento histórico, é de alguma forma necessário para uma sociedade estável.

2- “em suas tendências paternalistas, nacionalistas , de adoração ao poder, ele com frequência se revela mais próximo do socialismo que do verdadeiro liberalismo.” Linha 3. O que é dito aqui é claro, o conservadorismo esta mais próximo do socialismo que do verdadeiro liberalismo na medida em que possui tendências paternalistas, nacionalistas e de adoração do poder. Ora , sem essas três tendências, o conservadorismo se aproxima do verdadeiro liberalismo, o que digo é que essas três tendências, ainda que tenham se manifestado historicamente sobre a nomenclatura conservadora, não são necessárias essencialmente ao conservadorismo, ou seja , são exógenas, não endógenas, não essenciais, sendo perfeitamente possível e não só possível, racional e desejável, que um conservador não mantenha essas três posições.

3- “e , com suas propensões tradicionalistas , anti-intelectuais e frequentemente místicas” [ ... ] [ são contrários a ] “mudanças para que esse mundo se torne melhor” . Linha 5 . Primeiramente , a tradição pertence ao conservadorismo no mesmo sentido em que há uma necessidade de conservação no próprio liberalismo, a tradição que se refere não tem , necessariamente, de contrariar nenhum dos pontos e valores liberais. O anti-intelectualismo e o misticismo são coisas, realmente, não essenciais ao conservadorismo, como exposto nas reflexões sobre o materialismo. O argumento de que o conservadorismo é contra mudanças é algo que não encontra eco real no conservadorismo, como vemos em Kirk e em outros autores, que , ao contrário, defende mudanças , sendo praticadas , como dizia Platão e Burke, com prudência ( tanto que a metáfora usada é a de um ser vivo , que precisa, para viver , da mudança, da evolução ). Cabe notar novamente que a contrariedade às mudanças se relaciona na medida em que o conservadorismo seja tradicionalista num sentido antiliberal , anti-intelectualista e místico, sem esses aspectos, ele não é contrário ao liberalismo.

4- “Por sua própria natureza, um movimento conservador tende a defender os privilégios já instituídos e a apoiar-se no poder governamental para protegê-los.

Aqui é um ponto crítico, Hayek diz que em sua própria natureza, ou seja , essencialmente, o conservadorismo defende privilégios incompatíveis com o liberalismo , independente de se apoiar no governo ou não, esse ponto é crítico e sério. Discordo de Hayek , aliás, amplio a discussão, não há necessidade da defesa de nenhum privilégio, essencialmente, no conservadorismo, nenhum que não tenha necessidade de ser reconhecido pelo próprio liberalismo por ser racional, ainda que tenham existido na história manifestações contrárias a isso. O próprio Hayek antevê essa interpretação ao dizer que o conservadorismo “tende” , olha, tender não é uma necessidade, nesse sentido não discordamos também nesse ponto. Quanto a manifestação na história, pode ser levantado o mesmo argumento usado contra os marxistas , ou seja, que estou dizendo que nenhum conservadorismo histórico foi o verdadeiro conservadorismo, não, isso é um simplismo, houve já conservadores dentro desses moldes, ainda que não tenham sido uma grande força histórica, além de que isso é plenamente possível, ao contrário do dito “marxismo correto” que é , por leis próprias da sociedade, impossível de ser posto em prática , ao menos, com os resultados pretendidos. Caímos aqui em uma outra questão, se não existem diferenças essenciais entre os dois, conservadorismo e liberalismo, que os tornem incompatíveis essencialmente , qual é a diferença?

Sobre a Diferença e sua relação

É um assunto complexo que ainda não tenho meios de esgotar, entretanto, sendo assim, sem uma relação de exclusão necessária, eles parecem complementares, e é em sua complementaridade que podemos entender sua diferença e semelhança. O conservadorismo é uma análise necessária da realidade não-econômica, necessária ao liberalismo, enquanto o liberalismo é uma análise da realidade econômica , necessária ao conservadorismo. Mas, Felipe, existe um conservadorismo em países não liberais, ora, o liberalismo, entendido como conceito, também sempre existiu , ainda que sem domino pleno , em todas as sociedades, além de que existe um progresso do conhecimento humano sobre si mesmo, ainda que o conservadorismo tenha um significado relativo a uma época, o que avaliamos aqui , ou tentamos, é pensa-lo em sua máxima generalidade, analisamos o conservadorismo real, de hoje e que pode ser sim estendido ao futuro. Enfim, as relações podem ser três , de exclusão, de indiferença e de complementaridade , ora, dissemos lá em cima, e creio que de forma clara, que não são excludentes necessariamente um do outro, o sendo só naqueles casos supracitados , conforme concordamos eu e Hayek, de indiferença é impossível , como diz o próprio Hayek, porque :

1- “O conservadorismo é necessário em toda sociedade estável”

2- “[ são contrários a ] “mudanças para que esse mundo se torne melhor”

Percebemos nesse ponto que a partir do momento que existe uma relação ou benéfica ou prejudicial , a relação não pode ser indiferente, resta-nos a de complementaridade, que se expressa na seguinte conclusão - Que o conservadorismo racional é necessário e complementar ao liberalismo e que o conservadorismo irracional é contrário a ele ( e isso não é argumento contrário ao conservadorismo, vejam que sendo o liberalismo uma ordem racional, de certa forma , qualquer irracionalidade pode perverter-lhe a ordem, o prejudicando e o corrompendo ) e o que é o conservadorismo racional? Uma parte da sólida filosofia , que engloba o liberalismo, que é a sólida análise racional da realidade econômica.

Felipe Venturini Arcêncio
Enviado por Felipe Venturini Arcêncio em 19/01/2015
Código do texto: T5106952
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