Pentimentos
Pentimento é o termo empregado para o aparecimento, em telas, de pinturas ou desenhos feitos anteriormente sobre uma pintura em restauração. É comum que os restauradores de obras de arte encontrem, por debaixo de uma famosa pintura, uma outra pintura ou desenho feito pelo próprio artista. O pentimento denuncia o arrependimento, o erro inicial, a mudança de idéia do artista.
Muitas vezes temos pentimentos com relações a outras pessoas. Um livro de Lillian Hellman, com este nome, fala de seus pentimentos com relação a membros de sua família. Às vezes aquele tio engraçado, bem humorado, é descoberto como ranzinza ou até mesmo mau-caráter, gerando profunda decepção. Às vezes os pentimentos são positivos, quando descobrimos por trás de uma pessoa, sobre a qual temos um mau conceito, alguém com uma enorme capacidade escondida para resolver uma determinada situação ou de caráter admirável.
Os pentimentos, no meu ponto de vista, são decorrentes de imagens internas que fazemos dos outros, ora idealizando-os, ora subestimando-os. Quando estas imagens internas são confrontadas com a realidade, muitas vezes nos descobrimos fazendo o papel do restaurador, surpresos com o desenho escondido, que pode ser melhor ou pior que a imagem inicial.
Há muito tempo tive um pentimento importante. Foi quando o Prof. Rubem Alves, famoso educador brasileiro, esteve em Rio Grande, no Centro Municipal de Eventos e eu lá compareci. Fui movido pela atração causada pelos seus livros, por suas idéias, por sua sensibilidade, por sua eloqüência literária, por sua clareza, por sua vontade sincera de mudar a Educação. Muito havia aprendido com ele e uma de suas idéias mais marcantes, para mim, foi a de que o nosso corpo possui seus sensores que nos permitem fazer os melhores testes de qualidade que podemos para a nossa Qualidade de Vida. Esta idéia é perfeitamente coerente com o que defendo e acredito, mas foi dita de forma clara, sensível e poética por ele.
No entanto, quando ele entrou no Centro de Eventos, percebi que não havia empatia com o público. Cansado? – pensei. Imediatamente ele me chocou com o pedido de não queria ver ninguém escrevendo, tomando notas, dizendo ser isto uma ação ineficaz, porque imaginava que as pessoas jamais iriam recorrer às anotações mais tarde. Eu que tinha defendido uma tese que havia iniciado justamente com anotações que fiz durante uma palestra (e que guardo e recorro até hoje), fiquei um pouco decepcionado com a sua constrangedora exigência. Vi muita gente guardando seus blocos, desapontada.
Mais tarde, durante a palestra, recebi o golpe de misericórdia. O Prof. Rubem Alves afirmou que a beleza das ações humanas poderia ser encontrada facilmente na diferença entre a beleza de um jardim, construído pela ação humana, e a beleza inexistente em uma floresta. Fiquei profundamente decepcionado com esta idéia. Então, ele não conseguia ver a beleza de uma floresta? Como eu já havia visto, cheirado e sentido a beleza da Amazônia, não conseguia admitir que ele pudesse estar dizendo aquilo, defendendo a beleza artificial e programada dos jardins. Sem dúvida os jardins podem ser belos, como forma de arte, mas nunca comparáveis à beleza natural das florestas. Seria uma arrogância quase sacrílega.
Foi quando me dei conta que estava julgando. Julgando com meus próprios dados, com meus próprios conhecimentos, como se eu estivesse utilizando um mapa para me deslocar numa região e este mapa era diferente do dele, com outras informações, outros caminhos.
E compreendi que o pentimento pode ocorrer, o que não deve ocorrer é o julgamento.