O ensino de literatura e a formação de leitores críticos
Suzana Borges da Fonseca Bins
ver link: http://www.grupoa.com.br/revista-patio/artigo/10464/o-ensino-de-literatura-e-a-formacao-de-leitores-criticos.aspx
Os alunos do ensino médio precisam ler bons livros, mas oferecer o que já buscam por si mesmos em nada lhes acrescenta. A escola precisa levar-lhes aquilo que, se não fosse por ela, não conheceriam.
Falar sobre literatura é falar sobre leitura. E falar sobre leitura, se é entusiasmante, é bastante complexo: há muitas portas de entrada nessa discussão, muitos vieses. Neste texto está a minha porta de entrada, as minhas convicções, que, sendo convicções, constituem-se naquilo em que acredito e, em que pese serem minhas, são advindas de muitas outras pessoas com quem conversei, do que li, do que observei. Contudo, cabe sempre lembrar que, na caminhada de um professor, a reflexão é uma constante; portanto, a revisão de seu pensamento e de suas convicções também, o que significa dizer que, embora sejam minhas convicções no momento, elas não são o único caminho e estão passíveis de mudança.
Minha primeira convicção é a de que só gostamos daquilo que conhecemos. Isso vale para tudo na vida. Adaptando ao ensino da literatura, só gostamos daquilo que entendemos. E fazer os alunos entenderem literatura é papel da escola; ensinar os alunos a ler literatura é papel da escola. Mark Twain, escritor norte-americano do século XIX, disse que o homem que sabe ler e não lê bons livros não leva nenhuma vantagem sobre o homem que não sabe ler. Se ele está certo, o papel da escola é não apenas ensinar os alunos a ler literatura, mas apresentar a eles os bons livros.
O que são bons livros? Não há uma só resposta, mas eu começaria apropriando-me de uma frase de Ítalo Calvino em sua de definição de clássicos, na qual ele afirma: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (Calvino, 2007, p. 11). Em linguagem mais cotidiana, um clássico é aquela obra que continua atual ao longo do tempo, não só porque o que discute diz respeito à essência do homem, mas porque o diz com tal maestria que não morre quando morrem os modismos linguísticos, temáticos e editoriais de determinada época.
Os alunos do ensino médio precisam ler bons livros, mas oferecer aquilo que já buscam por si mesmos, em nada lhes acrescenta. A escola precisa levar-lhes aquilo que, se não fosse por ela, não conheceriam. Que livros seriam esses? Não é simples fazer um recorte em uma lista tão grande. Talvez facilitasse dizer que deveríamos ler os clássicos, mas quais clássicos? As epopeias gregas? Quem sabe Os Lusíadas? Arrisco-me a dizer que, se isso fizer sentido para o que o professor deseja alcançar com a sua proposta pedagógica, sim. Caso contrário, há inúmeras leituras importantes e interessantes que se encaixam no que se chama de bons livros.
Onde esbarra um ensino de literatura que capacite o aluno a ler literatura? Acredito que em algumas questões que mereceriam nossa reflexão. A primeira delas é o lugar destinado à literatura nos currículos escolares. Falo não só da carga horária da disciplina, mas sobretudo do que essa carga horária diz aos alunos e à comunidade escolar. Quando uma escola não tem em sua grade curricular a disciplina de literatura, mas imagina que a de língua portuguesa a englobe, ou quando uma escola tem as duas disciplinas separadas, porém dá à literatura uma carga horária ínfima — por exemplo, de um período semanal —, o que ela está dizendo é que esse componente curricular não é importante, pois, se o fosse, teria direito às mesmas três ou quatro horas semanais de física, matemática, química... O ensino, em geral, não confere à literatura a importância que ela tem como disciplina que envolve muitos outros saberes e propicia reflexões sobre a existência, sem apresentar o chamado “discurso do poder”.
A segunda questão diz respeito ao modo de ingresso dos alunos no ensino superior, durante muitos anos restrito apenas ao vestibular, o qual tinha como base o conhecimento das escolas literárias, ou seja, não necessariamente o estudo da literatura, mas da história da literatura. Assim, os alunos começavam o ensino médio estudando trovadorismo, classicismo, barroco — textos difíceis muitas vezes até para adultos —, tendo de dar conta deles aos 14, 15 anos. Ao final do ensino médio, sabiam as características das escolas, seus autores, tinham lido alguns textos e feito exercícios de interpretação, mas continuavam sem saber diferençar poema de prosa, narrador de autor, eu-lírico de narrador, estrofe de parágrafo, nem conseguiam perceber que determinados livros eram de qualidade literária muito discutível por apresentarem clichês linguísticos, narrativos, estruturais, entre outros problemas. Concluíam o ensino médio sem saber o que determina a qualidade de um livro literário, sem saber reconhecer a importância de certos elementos estruturais responsáveis pelo brilhantismo do texto.
É certo que, com o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), está sendo apresentada outra proposta para o ingresso nas universidades. Apesar do mérito da proposta em si, a literatura continua mal-atendida porque, nas questões que se dizem de literatura, o que há, na maioria das vezes, é a interpretação de um texto, cuja resposta correta pode ser encontrada sem que, para isso, o aluno precise realmente de conhecimentos específicos de literatura.
A terceira questão a analisar é a da especificidade da literatura. Não é pelo fato de que envolve muitos saberes que ela perde essa especificidade, a qual diz respeito ao modo como o texto foi construído. Entre o leitor semântico que lê, decifra e contenta-se com isso e o leitor crítico, que lê, decifra e pergunta: “como isso foi construído?”, cabe ao ensino de literatura o papel de formar esse último. Significa que é absolutamente redutor apresentar a literatura como exemplificação de postulados de outras ciências com as quais ela apresenta pontos de contato.
A interdisciplinaridade deve ocorrer nas discussões sobre o texto literário, a partir das reflexões feitas pelos professores de literatura e das relações que os alunos, a partir de seus saberes, de sua capacidade de construir. Está equivocado, a meu ver, quem pensa estar fazendo estudo interdisciplinar de sua disciplina com literatura quando se limita a ter na literatura uma exemplificação. Tomemos por exemplo um professor de história que estuda o Brasil na mudança da monarquia para a república e inclui nas leituras obrigatórias de seus alunos Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Se ele apenas comenta rapidamente o enredo e volta às suas aulas de história, sem demonstrar o que há na estrutura narrativa de Machado que permite ver nessa obra as contradições daquela época, não está fazendo interdisciplinaridade, porque não está estudando literatura. Da mesma forma, um professor de química que, para introduzir a química orgânica, apresenta a seus alunos o poema Psicologia de um vencido, de Augusto dos Anjos, não está fazendo interdisciplinaridade, porque não está estudando literatura — apenas introduziu sua matéria de maneira diferente.
Então, o que fazer? É fundamental atribuir à literatura um lugar melhor do que aquele que hoje ocupa nas escolas. Ela deve ser um componente curricular distinto do de língua portuguesa e ter pelo menos duas horas semanais em cada uma das três séries do ensino médio. Feito isso, é preciso ensinar os alunos a ler literatura. Não significa que não se devam mais estudar as escolas literárias. Conhecê-las também é importante para entender por que determinados textos são como são, para perceber como o texto dialoga com a época em que foi escrito e em que medida esse diálogo se mantém — ou não — em relação à época em que o leitor o lê, porém seu estudo não deve ser prioritário.
Se só amamos o que conhecemos, precisamos dar aos alunos do ensino médio a oportunidade de conhecer o que é bom. Certa vez, um jornalista conhecido de Porto Alegre, onde moro, foi à escola em que trabalho fazer uma palestra para alunos da 8ª série. Lá pelas tantas, disse-lhes que tinham mais era que não gostar de literatura, porque mandavam que eles lessem Machado de Assis, que, além de nada dizer para eles, era difícil de entender. O fato repercutiu na escola. Meus alunos da 1ª série do ensino médio vieram me questionar, sentindo-se autorizados a repelir a literatura, já que tão famoso jornalista dissera aquelas sábias palavras. Eu os ouvi e apenas disse não concordar com a fala.
Deixei passar alguns dias e levei para a aula o conto Missa do Galo. Propositadamente, suprimi das cópias distribuídas aos alunos o nome do autor. Disse a eles que leríamos o que eu considerava um dos textos mais sensuais da literatura brasileira, sem que, no entanto, contivesse uma única palavra ou descrição agressiva. Querem maior isca para alunos na faixa de 14, 15 anos? Pedi a colaboração de dois alunos, um menino e uma menina, para representar o texto à medida que eu o fosse lendo.
Rapidamente, com classes e cadeiras, montamos a sala em que se passa o diálogo entre Conceição e Nogueira. À medida que eu ia lendo, ia colocando no quadro e comentando os dados importantes: hábitos da casa, hora em que Conceição havia ido dormir, hora em que levantara, descrição de seus olhos como olhos de quem parecia não ter dormido, enquanto os alunos iam representando. O silêncio e a atenção eram totais. Quando acabei a leitura, eles continuavam mudos. Até que um aluno disse: “Genial! Quem escreveu isso?”. Então eu respondi: “Queridos alunos, apresento a vocês Machado de Assis, o autor que não tem nada a dizer para a juventude de hoje e que é dificílimo de entender”.
O leitor de literatura deve ser capaz de ir ao mais profundo do texto, de reconhecer que a sua significância está relacionada à escolha do vocabulário, do tipo de frase, da estrutura narrativa, das figuras (ou da ausência delas), das rimas. Vejamos, por exemplo, na música
Cálice, de Chico Buarque de Hollanda, a seguinte estrofe:
“Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta”
Sem temor algum, posso dizer que a outra a que ele se refere é a puta. O que me permite afirmar isso é o fato de que, nessa estrofe, com exceção desse verso, todos os versos pares terminam por uma palavra paroxítona, cujo som final é uta. A outra é o contrário da santa, o que, mantendo o esquema das rimas e do ritmo, só pode ser puta. Isso não é a minha interpretação: isso é o que o texto está me dizendo. No entanto, para ler o que o texto está me dizendo, eu tenho de aprender a ler suas informações literárias. E ensinar isso é papel da escola.
Penso que mais acertado do que falar em interpretação de texto é falar em análise de texto. Precisamos desconstruir os textos com os alunos, de forma que estes vejam o que antes estava escondido no modo como foram construídos. Assim, torna-se mais fácil de explicar que os textos têm, sim, algumas leituras que são corretas, não sendo possível, portanto, aceitar toda e qualquer leitura que deles se fizer. As possíveis leituras são aquelas respaldadas pela construção linguística e estrutural do texto. Logo, a frase tão comum dos alunos, “Mas, professora, essa é a minha interpretação”, tem como ser discutida. É preciso mostrar-lhes que bons textos permitem algumas leituras, mas vindas da análise dos elementos que o constituem.
Feito esse trabalho de formação do leitor literário, é hora então de apresentar as escolas literárias. De posse de toda a caminhada já construída, o que virem no estudo delas será mais facilmente compreendido, fará sentido e complementará o conhecimento literário de um modo mais significativo.
Assim imagino o ensino de literatura no ensino médio: formação de leitores críticos, garantindo à literatura o tratamento da sua especificidade e um espaço maior para levar os alunos a estabelecer as relações interdisciplinares que ela propicia por conter em si muitos outros saberes. Dessa maneira, o apelo dos textos literários à transformação das realidades pessoal e social será mais facilmente compreendido, e a literatura manifestará sua função humanizadora naturalmente.
Suzana Borges da Fonseca Bins é mestre em Literatura da Língua Portuguesa e professora de literatura no Centro de Ensino Médio Pastor Dohms — Unidade Higienópolis, em Porto Alegre (RS). csrrbins@terra.com.br
REFERÊNCIAS
CALVINO, I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.